quarta-feira, 26 de setembro de 2007


MEMÓRIA ORAL Nº 3


O FUTEBOL DAS GATAS QUE AZARAM
O time de futebol feminino, até ontem na cabeça de Rosemeire Maria Martins, ou simplesmente Rose, 34 anos, uma aguçada líder comunitária, adentrou o campo no último domingo de forma bastante positiva, dando o pontapé inicial a um velho e acalentado sonho. O bairro onde reside essa militante política, sindical e umbandista, o jardim Mendonça é nas profundezas da periferia de Bauru SP, passando por todos os problemas de uma comunidade distante dos centros e, consequentemente, das benesses de uma cidade com aproximadamente 350.000 habitantes. Problemas são o que não faltam por lá e Rose continua a seu modo tentando resolver a grande maioria deles. Inquieta por natureza ia vendo aquele amontoado de meninas desgarradas, fruto de famílias desestruturadas, mal constituídas, todas sem rumo na vida e sabia que algo precisava ser feito para tirá-las da marginalidade. Uma tentativa que fosse para devolver a dignidade para a maioria delas.
Foi quando tomou conhecimento que a Liga Bauruense de Futebol Amador estava organizando o I Campeonato de Futebol Feminino, com inscrições abertas para os times interessados na disputa. O click foi dado e mesmo sem nenhum recurso disponível a decisão foi tomada: “Não conhecia nada de futebol, mas algo precisava ser feito para elas, que viviam sob o fio da navalha. Meti os peitos e o resultado é esse aí. Fiz tudo, não para levar nome, mas para ajudar, trazendo mais esporte para o bairro e na valorização delas”. O tal resultado foi que, aos trancos e barrancos, os recursos mínimos foram levantados e o time abriu a 1ª rodada com uma sonora goleada sobre o time do jardim Ouro Verde, demonstrando que Rose estava certa em acreditar no potencial de cada uma daquelas meninas.

O trabalho das últimas semanas havia sito intenso. Junto do marido e massagista do time, Alcides Chamorro e a sobrinha, zagueira e vice-presidenta, Ricieri Alexandre, 21 anos, uniram esforços e tiraram leite de pedra. Realizaram uma verdadeira revoada coletiva aos comerciantes do bairro para conseguir uniformes, chuteiras, pagamento das inscrições e outras despesas. “Eu sempre acreditei. Consegui levar um patrocinador num treino e ele não assumiu nada. Pediu para ver os resultados dos três primeiros jogos para depois decidir. Uma empresa de ônibus urbano acabou doando um jogo de camisas.Um político, mal adentrei sua sala, falei que havíamos montado um time feminino, não havia pedido nada e ele foi logo dizendo que havia esquecido a carteira em casa”, desabafa a presidente Rose. O nome escolhido para o time foi Gallathazaray F.M. de Bauru e perguntei dos motivos do time turco ter tido a preferência. Rose disse que a decisão foi coletiva, onde muitas opinaram: “O começo lembra gatas, que somos nós mesmas e o final a palavra azarar. Ficou sendo as gatas que azaram, dominam a noite, muito paqueradas e chamando a atenção”.

Entre risos ela lembra também que sua vida sempre foi muito dura e que nem por isso deixou de realizar o que tinha em mente: “A luta no bairro sempre fiz sem dinheiro. As pessoas acreditam no que faço, porque faço. Sempre acaba dando tudo certo. Tem dia que não tinha dinheiro para o ônibus, mas quando via a situação delas, abandonadas, se perdendo na vida, sem rumo, decidi que faria algo. E fiz”. Com muita conversa, num verdadeiro trabalho psicológico, uma por uma, foi conseguindo uni-las em torno do objetivo comum. Quem não parece ter entendido muito bem o espírito da coisa foram às respectivas famílias das agora atletas, pois quase nenhuma participou do processo, não acreditando na recuperação delas dessa forma. O sonho, mesmo assim, se tornou realidade e a estréia foi a consumação da primeira etapa.
Vendo elas chegarem ao campo em três carros superlotados e outras a pé, dá para perceber o quão está sendo importante isso tudo. O time oponente, de outro bairro periférico, o Ouro Verde possui melhor estrutura, enche o alambrado com faixas de patrocinadores e possuem seis garotas no banco de reservas. O Gallathazaray são as onze que estão em campo, massagista, a técnica Juliana Pedrotti, a presidente Rose e uns quinze torcedores. Ninguém pode se machucar, pelo menos por enquanto, mas isso não tira o entusiasmo de ninguém. “Não adianta desgastar todas elas agora”, tenta justificar Rose.

Depois de um rápido aquecimento, entram em campo com um juiz homem e duas bandeirinhas mulheres, vestidas com camisas cor-de-rosa. Mal o jogo começa, Rose não se segura de contentamento, pois o time corresponde em campo a todas suas expectativas. O Ouro Verde não consegue passar do meio de campo, não tem padrão de jogo e o primeiro gol sai logo, com Denise, a nº 7, também conhecida por Periquito, por causa do topete no alto da cabeleira. Outros gols foram saindo naturalmente e no final do 1º tempo até a goleira Angélica, que não havia recebido um chute a gol, faz o seu de pênalti.

O time posa para uma foto no intervalo e Rose não para de exaltar o bem que estava proporcionando a elas: “Converso com todas, são crianças, ajudo no psicológico. Se todas as associações fizessem o que estou fazendo, tiraríamos muita gente da marginalidade. Elas estavam largadas, na perdição. Eu falo e elas captam tudo, uma beleza. A média de idade é dos 12 aos 22 anos e algumas já estiveram internadas na Casa de Nazaré, se recuperando de problemas, inclusive drogas. Os pais de muitas saíram de casa e elas não se identificam muito com os homens. Outras já tiveram experiência com futebol, num time da vizinha cidade de Agudos. Eu as compreendo.” Rose chama na beira do alambrado Jéssica, 15 anos, que todos apelidaram de Modelo, pois vive a desfilar. Pede que pergunte a ela o motivo de não estar em campo: “Meus pais viajaram e na volta ainda tive que dar uma convencida para me assinarem a ficha”. Não dá tempo para entrar em detalhes, pois o segundo tempo começa logo a seguir.

O martírio do Ouro Verde continua, só mudando o lado. Vivendo de chutões para os lados, sua melhor jogadora é a goleira, muito exigida. O massacre continua, sem trégua e Rose, eufórica, parece querer por para fora algumas coisas que estavam um tanto entaladas: “Rasguei cartão de dois políticos que queriam tirar proveito do time. Não posso expor elas agora. Muitas não entendem isso. São frágeis até nisso. Descarto aproveitadores, elas não merecem. Prefiro ajuda da cidade. A camisa da goleira veio nº P e não serviu. Emprestei de um conhecido. Tudo foi assim. Fui nas reuniões da Liga e dos doze times, só o meu tinha presidente mulher. Impus-me, como faço aqui com elas. Tenho muitos outros planos. Queria poder dar uma cesta básica para as que não faltam aos treinos, não falam palavrões e deixarem de criar problemas em casa. Elas já possuem um monte de problemas e quando não os resolvem, passam a render menos em campo”. Ela fala mais, muito mais e enquanto isso o time faz mais três gols.

Um torcedor do time adversário, bêbado, se aproxima do alambrado e diante do time masculino, que atuaria no jogo de fundo, desfere: “Vejam bem o que essas meninas estão fazendo, para ver o que farão depois”. Aproveito para dar uma geral nos torcedores e não vejo nenhuma família acompanhando o jogo delas. O envolvimento familiar e o calor humano, que faltam do lado de fora, existem do lado de dentro. O jogo termina em 7 x 0 e todas se abraçam alegremente no meio de campo, oram e abraçam a Rose de forma bastante calorosa. Só não a jogam para cima, por ser um tanto pesada. A festa é grande e as comemorações ocorrem ao lado do vestuário, somente com água e nada mais.

O grupo está de alma lavada. O primeiro passo havia sido dado. Todas sabem que isso é apenas o começo. Na segunda-feira recomeçará a luta para colocar o time em campo no segundo jogo, juntando os R$ 40 reais da taxa de arbitragem, outro jogo de camisas, mais chuteiras, gazes, medicamentos, novos patrocinadores e no convencimento junto às famílias, de que o caminho da recuperação é esse. Uma pastelada e outros eventos estão nos planos. Tendo no cartel os 7x0, elas acreditam que a missão será menos desgastante. Além disso, os dois jornais locais lá estiveram e devem falar do que viram. Ansiosas aguardam mais meninas se juntarem ao grupo e mais recursos no caixa.

Ao vê-las lotando os carros para o retorno ao jardim Mendonça, a certeza de que Rose acertou e a de que o futebol feminino é mesmo uma grande festa, pelo menos por enquanto e de encher os olhos. Se não existe muita técnica, sobra dedicação e muitos sonhos. Rose provou que não espera as coisas caírem do céu, arregaça as mangas e vai à luta, mesmo sem a mínima condição. Faz e pronto. Sabe que precisa fazer, tira a bunda da cadeira e faz. A lição é essa, fazer. Elas todas entenderam a lição e venceram a primeira batalha. Domingo que vem tem mais.

Serviço:
Telefones: Rose 14.97995206 / Ricieri 14.97028619
Endereço Rose: Av. Rosa Malandrino Mondelli nº 15-11 Jd. Mendonça Bauru SP


Henrique Perazzi de Aquino, 24 de setembro de 2007

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