segunda-feira, 17 de agosto de 2009

MEMÓRIAL ORAL (70)

GRAFITAGEM, FERRÉZ, TATOO E UMA GALERA DOMINICIAL
Recebo via e-mail e vejo sendo distribuído aos borbotões pela cidade um panfleto com uma charge em destaque, “Impunidade”. Nele são informados telefones para denunciar pichadores e duas frase de efeito: “Você quer isso para seu filho?” e “A cidade não aguenta mais”. Também tenho minhas críticas para a pichação, porém nenhuma para a grafitagem. Não distribui o panfleto, nem divulguei o tal e-mail. Preferi esperar um evento grandioso promovido pelo SESC de Bauru, o “Cultura de Rua”, onde em oficinas, palestras e filmes, seria desvendado um pouco do universo dessa importante manifestação cultural. Sou muito mais o caminho da educação do que o da repressão.

Vejo pela cidade pichações horrorosas, que abomino. Por outro lado, vejo grafites lindos, como o pintado num muro diante da rodoviária. Esse, muito colorido, com uns 30 metros de extensão, nunca foi pichado. Sei que existe um código de ética entre os adeptos, mais ou menos assim: Não se picha um grafite. No caderninho da programação do SESC está lá o convite, seguido do texto: “O grafite é uma forma de expressão visual em que o artista aproveita os espaços públicos e interage com a cidade. Com Ricardo Tatoo – bacharel em programação visual pela Universidade Mackenzie...”. Perdi o primeiro domingo, dia 06, mas nesse último, dia 16, bati cartão e fui conferir o trabalho e o envolvimento dos jovens.

A novidade da programação é a presença de Ferréz, o famoso escritor oriundo da periferia paulista. Por onde circula fala muito de sua aldeia, Capão Redondo. Ficou famoso pelos textos anti-burguesia, primeiro na mensal Caros Amigos e depois em sites, blogs e nos livros, sempre divulgados nos meios alternativos. Os fundos do SESC estiveram um rebuliço, pois tudo lá foi transformado para transpirar e respirar algo sobre o tema. Com uma cobertura de folhas de papel craft no chão e com imensos painéis, fixados um ao lado do outro, o palco está montado. Uma moçada girando na entrada da maioridade preenche os espaços.

O DVD documentário “Ferréz – Literatura e Resistência” é exibido num telão e alguns depoimentos vão impactando os interessados, sentados no chão ou nas poucas cadeiras disponibilizadas. “A única mensagem de paz que a gente pode mandar é que todo ódio a burguesia é pouco”, diz um, sendo seguido por uma mulher, numa escola, após tomar conhecimento do trabalho revolucionário do escritor, “Tudo melhora a partir do momento em que a gente parar de limpar bunda de rico”. Para quem não conhecia o trabalho de Reginaldo Ferreira da Silva, o Ferréz, mais viria, com algo dito na Espanha, quando convidado para uma palestra: “O ódio é o que move o mundo”.

Mal termina a exibição, sobe ao palco Rodrigo, responsável pela programação cultural do SESC e apresenta Ferréz ao público. Sua fala é sobre literatura, mas uma denominada marginal, periférica, com elos de ligação com nomes famosos, como José Louzeiro, Lima Barreto, João Antônio, Plínio Marcos, Mário Quintana, Ziraldo, Rubem Fonseca e outros. Citou muito o alemão Hermann Hesse e o norte-americano Bukowisk. Se diz um revolucionário pela informação. Convida para subir ao palco com ele, Ricardo Tatoo. “Vivenciamos uma verdade nas ruas, outra em casa, outra no trabalho e uma outra na TV, no altar cheio de luz em nossas salas. A história não nos é contada porque foi imposta. Tudo o que é do estrangeiro é valorizado. Não dá para chegar em casa e ouvir na TV um discurso de que quem não tem o celular xis não está com nada”, diz Tatoo, além de divulgar seu site, o http://www.tvkills.com.br/ .

Uma moçada trabalha intensamente nos murais, bem ao lado da discussão rolando com um forte cheiro de tintas no ar, pois tudo está sendo parido ali ao lado, ao vivo e a cores. Não é fácil ficar com um olho nos trabalhos, sendo feito moldes de papelão, cortados com estilete e aplicados na parede e outro no debate. Os que donimam o traço aplicam o spray de tinta diretamente na parede branca. Do outro lado, Ferréz continua com sua bela pregação e sobre as poucas oportunidades de trabalho para quem defende o povo, diz: “Quem defende o povo não tem outro futuro. É o de ser perseguido. Cresci na favela, na quebrada e não consigo ficar ao lado da elite. Tenho postura de classe e não vou mudar. Meus projetos são todos independentes, ou seja, aqueles que mais dependem dos outros. Cheguei a brigar com a Caros Amigos por causa de anúncios da Coca-Cola na revista, mas eles e a Carta Capital são as únicas coisas que prestam hoje em dia”. Vende seus livros, mas faz questão de dizer que para os sem grana, basta irem na internet e lá encontrarão tudo gratuito no http://www.ferrez.blogspot.com/ . “Meu sonho é ver a favela consumindo cultura. Precisamos muito de dignidade”, diz no final do debate, divulgando também a IDASUL (http://www.1dasul.com.br/), a marca da periferia que o tem por trás e livros a preços de R$ 5 reais no Selo Povo, produção independente, com lançamento previsto para uns 15 dias.

Para quem ficou alguns minutos desatento ao trabalho dos grafiteiros nos murais, nas oficinas feitas pelo Tatoo, cada nova olhada é precedida de muita surpresa, transformação total. Dois jovens, Edgard e Mariana, alunos do quarto ano de Desenho Industrial da UNESP de Bauru trabalham com moldes. Ela fez um com uma lagartixa e ele com uma fita-cassete. O difícil foi localizar um espaço livre para aplicar o trabalho de ambos. Muito bem feito, Ferréz se interessa em levar o molde consigo, mas Edgard não cede: “O quero para mim. Demorei tanto. Não dou não”. Outro que me vê fotografando e puxa conversa é o grafiteiro bauruense, Luiz Gustavo: “Você é fotógrafo? Não quer conhecer mais de perto o que faço? Divulgue meu trabalho. Não pintei nada hoje, auxiliei o Tatoo e preciso vender o que já tenho feito. Posso te passar por e-mail, para você publicar no blog?”. Confirmo e divulgo seu e-mail: www.fotolog.com/l7m . Ganho um papelão com um desenho do Tatoo, Ferréz leva outro, do bauruense Luiz. Do lado, alguns aplicam em camisetas o resultado de moldes. Saem vestindo a própria obra.

Na saída, já na calçada, reencontro Ferréz e dois amigos a observar uma imensa galera de jovens postados há uns 30 metros de distância do portão principal do SESC. Digo que escolheram o local para seus encontros dominicais, não entram no SESC, ficam ali em frente, em grupinhos, vindos de todos os locais periféricos da cidade, com poucas opções de cultura, lazer e esportivas. “Olha lá a polícia já está junto deles. Parece controlar tudo. Deviam é pressionar para eles terem mais opções para se encontrarem, com locais mais propícios”, me diz. Passo no meio deles à caminho do meu carro e lembro do folheto contra os pichadores, seco e duro, sem propor soluções. E essa imensa galera de jovens? O que querem? Poucos procuraram entender os motivos dali estarem. E para onde irão? O SESC de forma corajosa propôs discutir uma alternativa, mas muitos deles nem ficaram sabendo, pois permaneceram do lado de fora. Ferréz e Tatoo voltam para São Paulo, eu vou para minha casa e aquela multidão irá se dispersar quando a noite vier. Volto pensando no que havia presenciado, tendo gente que não anda fazendo a lição de casa direito. Uns fazem, outros não. Uns querem reprimir, outros educar, esclarecer, municiar, preparar...

4 comentários:

  1. VALEU.
    VOU DIVULGAR TEU BLOG TAMBÉM VC QUE FOTOGRAFOU UMA FOTO EU O FERREZ E O TATTOO
    SE VC REGISTROU ELA MANDA PRA MIM POR E MAIL ABRAÇO
    GOSTEI DO BLOG!



    LUIS GUSTAVO MARTINS
    lgm_hf@hotmail.com
    www.fotolog.com/l7m

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  2. Gostei do que você escreveu, Henrique. É bem mais adequada a educação (convencimento acerca da responsabilidade do ato) do que a punição! Um forte abraço.

    Célio Parisi

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  3. Gostei muito da sua discussão da questão cultural em relação às pichações, mas gostaria de trazer uma contribuição para este debate, levando em consideração a humanidade existente em todos nós. E como tal, somos seres que desenvolvemos pensamento e linguagem, e estamos condenados a aprender a valorizar isto, se queremos avançar como seres humanos, caso contrário retrocedemos a condição animal, na qual não há relação humana, apenas extintos.

    Numa sociedade classista, onde a tônica já é a violência usada pelo poder como fim, fica muito difícil não ter aqueles, que de alguma forma terão posições contrárias. E necessitam de espaços para expressar, se não nos dão, vamos conseguir na marra!!!!!!! Por vezes, essa é a minha reflexão quando vejo uma pichação.

    Qual o significado e o sentido que tem aquela ação para o pichador? O que ele está querendo dizer? O que ele quer que vejamos, que saibamos, que sentimos? Do que ele reclama? Enfim, penso que o ato de pichar é forma de expressão do pensamento, numa linguagem que não é hegemônica em nossa sociedade e tão pouco intelegível para nós, os que estamos do lado de cá.

    Quando penso que a maioria dos pichadores são adolescentes, me vem um cenário assim: a quase todos os lugares que vamos há espaços destinados aos homens e mulheres em idade produtiva. Algumas coisas destinadas às crianças, como os parquinhos e sala de pinturas etc.Tente buscar o que tem nos espaços privados e públicos destinados aos adolescentes e aos idosos, em alguns casos???

    Vamos a um outro cenário.Como é visto o adolescente pelos outros grupos etários?
    Podemos nos indagar do ponto de vista psicossocial. Como entendemos o seu sentir, o seu pensar e o seu agir? De uma maneira mais cotidiana de responder esta questão, eu lhe digo: um sujeito em crise, sem direções, sem compromissos, que anda em grupos, muito preocupados com a sua sexualidade, que enfrentam a autoridade etc.

    Sim, o dito acima vale como resposta. Mas não é a única e nem expressa a complexidade que é ser adolescente no momento atual. É uma resposta imediatista, baseada apenas naqueles comportamentos externos, biologicistas, que não levam em consideração a historicidade da existência do adolescente. E não estou falando da história individual de cada um, essa não existe apartada da história social, do metabolismo da sociedade na qual ele está inserido.

    Concluindo, meu amigo Henrique, eu não quero nem para minha filha, nem para o seu filho, e nem para o filho de qualquer ser humano, o que diz o panfleto.Mas não penso que apenas oferecendo cursos culturais e educacionais, palestras resolverá uma questão que é estrutural em nossa sociedade: não temos o que oferecer aos adolescentes que não são potencialmente consumidores! E nesse caso, cabe a nós que compreendemos esta complexidade, lutar muito para livrar nossos contemporâneos dessa visão penitenciarista!

    Um abraço
    Nilma Renildes

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  4. Ótima matéria! Obrigado pela sua presença no evento.
    Com certeza fizemos uma parceria para essa luta pelo direito direito à cultura e ao lazer.
    Fiz uma texto sobre o panfleto que você publicou.
    Mais uma vez obrigadoe parabéns!

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