terça-feira, 6 de abril de 2010

MEMÓRIA ORAL (84)

GABRIELA, A DASPU E O HOTEL PARIS
A história de Gabriela Leite já é por muitos conhecida, líder das prostitutas brasileiras, ficou famosa ao levantar a bandeira da regulamentação da prostituição no país, com o projeto da ONG Davida. Levantou a bandeira e produz muita poeira, pois não se esconde, fazendo questão de continuar apregoando ser prostituta até morrer. Do seu livro de memória, “Filha, mãe, avó e puta” (editora Objetiva, 2008), uma lição, a de brigar pela utilização do termo “prostituta”, onde e com quem estiver. Foram tantas as vezes que, de forma escamoteada ao ser anunciada em eventos variados, a designação era outra, obrigando-a a colocar os pingos do “is”, ou seja, deixar claro que a denominação era essa e ela também mais uma delas.

Conhecer essa agora senhora, de 58 anos, sempre foi uma curiosidade, aumentada com a chegada em Bauru da professora universitária Ana Bia Andrade, cujo doutorado tem como tema a Daspu, docente na Unesp local e durante muitos anos, exercendo uma espécie de “faz tudo” na grife, um projeto Davida, comandada por Gabriela e seu companheiro, o jornalista Flavio Lenz, 55 anos. A sacada do nome Daspu é do conhecimento de todos, pois surgiu como um contraponto à marca Daslu, grife dos ricos. O nome pegou e o negócio frutificou. Teve altos e baixos, ajudando muito a solidificar a diminuição da discriminação de uma categoria sempre tratada aos trancos e barrancos. Li o livro, escrevi para ela, conversei muito com a Ana, mas nada de concreto sobre uma possibilidade de trazer Gabriela e um provável desfile da Daspu para Bauru.

Na ida ao Rio, o que ocorre de concreto é conhecer Gabriela e o local atual onde a Daspu está instalada. E o local não poderia ser mais adequado, o primeiro andar do Hotel Paris, nome dos mais conhecidos da prostituição carioca, encravado na mais movimentada esquina da Praça Tiradentes, bem ao lado do Teatro João Caetano, centro da cidade. Final de tarde de uma terça de março, reencontrei Carlos Latuff, o amigo e chargista ativista bem defronte ao Cine Odeon, na Cinelândia e após colocarmos as conversas em dia, lhe pergunto: “Vou conhecer a Gabriela, a líder das prostitutas. Quer ir junto?”. Não precisei falar duas vezes e numa rápida caminhada lá estávamos diante de tão famosa pessoa.

Sentada diante de um computador, sem acesso a internet (“o dono do hotel fica com a luz desligada durante o dia e à noite liga para seu negócio, a putaria e ainda não conseguiram se conectar por aqui”, me disse Ana), com as costas voltadas para uma imensa janela totalmente aberta para a famosa praça, Gabriela nos recebe sorrindo e com um cigarro entre os dedos, que não foi apagado um segundo sequer. Foi empatia à primeira vista, pois tanto Latuff, como eu, parecíamos velhos conhecidos. Falamos bastante, declaramos nossa admiração e fomos escutando pedaços de sua história. Num momento difícil, consegue o espaço, que possui a cara da Daspu e de uma hora para outra, tudo foi transportado para ali. “Aqui é nossa casa, nossa cara e será daqui o renascimento Daspu”, diz.

Havia voltado dias atrás de um congresso na Alemanha e estava prestes a embarcar para outro, convidada que fora a participar como expositora de um Encontro dos Pontos de Cultura, em Fortaleza CE, organizado pelo Governo Federal, no final de semana seguinte. Nessa terça a agitação acontece ali mesmo nos três antes quartos, hoje escritório e loja Daspu, onde acontece a primeira reunião do grupo de apoio à candidatura de Gabriela à deputada federal pelo PV carioca. Sim, ela foi picada pela “mosca azul” da política, mas diante de nós, esclarece algo: “Sempre fui autêntica, não irei mudar agora. Vou lá para representar as prostitutas brasileiras, seus interesses e questões. Chegou a hora, é agora ou nunca mais. Numa pré-pesquisa feita, apareço em segundo lugar, somente atrás do Sirkis (Alfredo Sirkis, escritor e ex-secretário municipal do ex-prefeito César Maia)”. Fala também de Marina, a candidata do PV à presidência, de sua admiração pela postura e da saída do PT, que ajudou a fundar: “O PT exercia um controle louco sobre nosso pensamento. Eram os únicos a estar certos, difícil pensar e agir diferente. Acho que me libertei ao cair fora”.

De sua fala algo a registrar, uma aparente sinceridade expressada nos gestos e olhar, sempre diretos e não se esquivando de nada, opinando sobre tudo, sem medo ou receio. “Já vivi de tudo nessa vida. Conheço tudo. Sei da história da Eni lá de Bauru, li o livro do Lucius de Mello. Ela não era prostituta, era a cafetina, mas não explorava como muitas outras. Ainda iremos para Bauru falar de nós, da vida que escolhemos para viver e da Eni”, segue dizendo. Latuff promove uma pausa, pouco antes de nos retirarmos, pois não iríamos participar da reunião e lhe diz: “Estou me colocando à sua disposição para o que precisar. Sua causa me toca, sinta-se à vontade para me pedir o que precisar. Desenho para a sua causa, de forma espontânea, não gosto de pegar leve, jogo pesado e me achando útil, meu traço poderá lhe ser útil”.

A reunião tem início, Latuff se despede e junto de Ana vou conhecer as dependências do Hotel Paris, ainda quase sem movimento naquele começo de noite. Espanta-me os quartos, todos com uma pia, sem banheiro, tudo à moda antiga e revestidos com uma vistosa grafitagem, feitas sob o tema da prostituição, bem colorida e chamativa. No saguão, um elevador, daqueles com grades de ferro, fora de serviço e uma portaria de madeira, a recepção aos clientes, que chegam vindos de uma escada de mármore em formato de caracol. Ali é acertado o valor por um determinado tempo de uso do quarto, que não pode ser excedido, gerando nova cobrança e batidas insistentes na porta, quando alguém tenta ultrapassar o combinado. Para mim, um caipira do interior, circulando pelo centro do Rio há mais de 20 anos, uma novidade, ter conhecimento in loco do símbolo que representa aquele hotel e estar dentro dele. Olhar a movimentação das ruas por aquelas janelas foi como viajar e sonhar com tudo o que ali já foi vivido. Fiz isso por alguns instantes.

No fim da reunião, ficamos eu, Gabriela, Flavio, o jornalista Paulo Giacomini e Ana. Descemos às escadas e fomos bebericar algumas cervejinhas num botequim na esquina seguinte, onde circulavam algumas prostitutas, mas o grosso do movimento eram estudantes, que “gostam muito de lugares como esses para suas horas de lazer”, diz Gabriela. Flavio me explica mais sobre Daspu, Ana faz planos sobre prováveis desfiles da grife pelo interior paulista e Gabriela, participa da conversa, com um olho no que estava sendo discutido e outro num aparelho de TV, onde ocorria um dos denominados “paredões” do BBB. “Vou te contar uma coisa. Minha saída do PT me libertou de algumas coisas e uma delas foi essa. Passei a ter liberdade de assistir programas desse tipo sem me preocupar com as cobranças que receberia. Assisto para analisar o comportamento das pessoas e isso me distrai, uma espécie de fuga para a seriedade do que enfrento no dia-a-dia", conclui.

7 comentários:

  1. Gabi e Flavio são mesmo pessoas muito especiais com quem tenho o prazer de conviver e compartilhar idéias, ideais, amizade e muito carinho. Além deles, nossas meninas - Jane, Maria, Val e Nilza - (além do meu orientador - prof. Ronald Arendt é claro)foram as pessoas que me permitiram dar mais alguns passos na carreira que escolhi . Congressos nacionais e internacionais - com Daspu sempre aceita - e a conclusão da tese foi o que me permitiu estar hoje como efetiva em Design na Unesp. Vale mencionar, pra quem tiver maior interesse em Daspu, o livro do Flavio (Daspu a moda sem vergonha - ed. Aeroplano) e os sites (beijodarua.com.br - jornal editado pelo Flavio e daspu.com.br). Fiquei muito feliz em poder ter compartilhado com Latuff e Henrique o primeiro reencontro pra matar as saudades desde que mudei de vida. ana bia

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  2. Oi Henrique,

    Adorei este...td de bom!

    Gostaria de sugerir a vc, quando da vinda de GABRIELA a Bauru, que o CONSELHO possa participar do encontro e ainda, fazermos uma homenagem a ela, seria algo de muito bom grado.

    bj,

    maria luiza carvalho
    conselho condição feminina de bauru

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  3. Henrique,

    Achei excelente idéia da Luisa em homenagear a Gabriela,essa mulher fantástica,assumida, guerreira.
    Seria muito interessante localizar para esse encontro algumas ex prostitutas da "Casa da Eni"aqui de Bauru ,que hoje teriam muitas coisas a relatar.
    Mostrar para nossa sociedade preconceituosa e hipócrita, que são mulheres hoje que atuam na política,escritoras,acadêmicas,empresárias e até outras atvidades ,no mercado de trabalho.
    Lutam pela igualdade social nesse país.

    Bjs

    Maria José

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  4. fico feliz em encontrar outras mulheres aqui em bauru que compartilhem do meu pensamento quanto a inserção feminina nas sociedades. este é o meu trabalho - em termos pessoal e acadêmico. visibilidades e invisibilidades femininas. a pensar. e, cada um tem o seu espaço - sempre conquistado - com características e individualidades. o que não exclui o caráter de solidariedade e o sentimento quanto à comunidade. será muito bacana a participação de3 mulheres desta minha nova terrinha quando eu e henrique conseguirmos concretizar a idéia de trazer gabi por aqui. sem dúvida, ela terá muito a dizer a todas nós - por sua experiência, prática e ativismo na vida. recomendo tam´bém o livro dela - o qual henrique mencionou. está a venda em bauru ! encontramos aqui no shopping para oferecer de presente a uma amiga. gabi é uma pessoa muito accessível e realmente está em pauta fazermos por aqui algo que possa tratar do tema feminino. faz parte do meu projeto acadêmico e de vida - no qual henrique tem me ajudado bastante. até porque são questões que perpassam um outro monte de temas e posturas diante da vida que algumas pessoas tem em comum. daí pessoas se encontram. como é o título principal da minha tese - com atitude e catiguria... assim as mulheres guerreiras (meu primeiro capítulo) vão vivendo na sociedade pós, hiper ou nada moderna. vou tentando assim me virar em uma cidade do interior de são paulo - bauru. não deixando de expor meus pensamentos e ideías e informações que trago de um projeto de tese recém concluído e caminhando em outro espaço. mas sempre fiel a princípios e escolhas que fiz e sempre continuo fazendo acreditando em possibilidades de uma condição feminina com respeito e dignidade. abracitos da ana bia (abpa).

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  5. Caro Henrique
    Li sobre a Gabriela, Daspu. É uma lenha, hein. Grato
    Isaias Daibem

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  6. Caro amigo Henrique,
    Você sabe que sou fã de seu trabalho e talento jornalístico!
    Quem dera houvessem mais pessoas com esta disposição para informar e apresentar ao público matérias tão interessantes e ao mesmo tempo, desprezadas pela imprensa normótica.
    Siga em frente, sempre!
    Com disposição e talento, dando voz e vez aos grandes brasileiros que encontra em sua caminhada!

    um grande abraço
    de seu amigo

    João Nicodemos
    www.poemasdonicodemos.blogspot.com/

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  7. Nossa como e diversificada a web. Com tanta idiotice sendo publicada todos os dias me deparo com este espetacular Blog. Parabéns a Gabi e Flavio a coragem determinacao e compromisso de mostrar a todos um Brasil que poucos conhecem torna o nosso pais cada mais sério e maduro. Nesse processo as suas presencas e que fazem a diferenca. PARABENS o seu trabalho é lindo. Toda sorte do mundo para voces.

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