MEMÓRIA ORAL (116)
SAGA MOÇAMBICANA: DA ORIGEM PORTUGUESA À VIVÊNCIA EM BAURU
Paula Alexandra Moutinho Loureiro é de família toda portuguesa. Nasceu em 1963, em Moçambique, então colônia portuguesa encravada em terras africanas e aos 15 anos desembarcou no Brasil, morando desde então em Bauru, terra onde seus avós já estavam instalados. Sua trajetória foi a dos colonizadores portugueses, com avô colonizador, pai português e mãe nascida na África, mas com sangue todo luso. “O portugueses não se fixavam em lugar nenhum. Eram viajantes, descobriram muitas terras, colocavam os marcos e voltavam ao mar. Faziam questão da rota, do mercado. Como não tomavam posse, atrás deles vieram os holandeses, ingleses, esses sim com um perfil bem conhecido de colonizadores. Moçambique e Angola não interessaram aos que buscavam lucro rápido e Portugal acabou ficando com eles. Não faz parte da característica de Portugal a batalha e sim, a aventura. Pouca guerra em sua história, um povo mais ingênuo, generoso. O inglês, sim, mais estrategista”, o início do relato de sua instigante saga.
“Moçambique era talvez um dos mais pobres na época. Meu avô morreu de tuberculose em Moçambique. Quando ele faleceu minha mãe tinha um apenas ano, voltou para Portugal, sendo ali criada. Aí um hiato de minha família na África. O Portugal colonizador sempre existiu, mas existia uma demora na ocupação de fato de algumas de suas colônias. Na ditadura de Salazar, esse resolveu dinamizar ao seu modo, enviando para Moçambique uma grandiosa equipe de funcionários públicos, que deu vida nova ao lugar. A urbanização lá ocorrida é toda portuguesa e dessa época, com edificações importantes e majestosas. Lourenço Marques (nome de um colonizador), a capital, que hoje se chama Maputo se parece muito com Santos, arquitetura dos anos 60. São cidades relativamente modernas. Lá não existem cidades como Ouro Preto, pois a urbanização é recente e tudo aconteceu de fato após os anos 60. Meu pai, que sempre trabalhou na Polícia, foi designado para trabalhar numa espécie de Polícia Federal em Moçambique e minha mãe no serviço público de Saúde. Na minha infância não convivi com a pobreza, pois lá entre os brancos só havia a classe média e os ricos. Os negros viviam nas tribos, em lugares mais afastados. Muitos trabalhavam na cidade, permaneciam dias em quartos nos fundos da casa dos brancos e voltavam para seu habitat aos finais de semana”, continua seu relato, para que entenda como foi sua formação.
A Frelimo, a frente guerrilheira comandada por Samora Machel, o líder local a instigar a libertação do país exercia uma constante resistência à colonização, tanto que num certo momento, Paula afirma não se lembrar de um momento onde estivesse ausente. Moçambique era uma espécie de província ultramarina, até que em 1974, acontece em Portugal a Revolução dos Cravos com a chegada ao poder do general Spínola e do social-democrata Mario Soares. Esses colocaram em prática a descolonização africana. “Chegaram à conclusão de que as colônias davam muito trabalho para serem administradas. No famoso encontro de Lusaka, Portugal fecha acordo de entregar o país à Frelimo. Tudo ocorreu sem transição nenhuma e os portugueses que lá residiam se viram momentanemente desorientados, tudo de um dia para o outro. E uma geração como a minha que nasceu lá se viu toda desamparada. Tinha então 14 anos e minha família no meio da ação do Movimento Moçambique Livre. Tudo gerou grande instabilidade e a falta de comunicação era imensa. Existiam os negros que queriam a libertação, os que não queriam e nós, os brancos portugueses no meio. Esse levante foi logo abafado e tudo voltou relativamente à normalidade até a independência do pais tempos depois. Não existe como negar que a colonização portuguesa salazarista foi um período dinâmico, de uns vinte anos, onde Moçambique melhorou muito. Tudo ainda estava em transformação, avanços a cada dia. Eu nasci lá, mas tínhamos que acatar o pedido de ‘Portugueses retornem', sem discussão”, prossegue Paula. A independência do país ocorre em 25 de junho de 1975, gerando uma Guerra Civil que duraria aproximadamente dez anos.
Sua vida sofre uma transformação imensa a partir daí. Tudo aquilo que havia sido construído é perdido da noite para o dia, tudo se esvai com num castelo de cartas. Tudo é deixado para trás. “Meu pai é detido pelos portugueses e como a comunicação era precária, ouvíamos uma única transmissão, a do Movimento Moçambique Livre, pelo rádio, propondo que todos se unissem por um país ao estilo do Brasil. O slogan era ‘Queremos fazer daqui um Brasil’. Fugimos da cidade, minha mãe, eu e minha irmã. O Movimento libertou meu pai e esse fugiu para a África do Sul. Morávamos em Inhambane, pequena cidade e de lá fomos para a capital, quando um primo do meu pai nos abrigou e embarcarmos num trem de carga, ajudados por uma família indiana e com destino a fronteira com a África do Sul. Fugimos com uma pequena mala, a roupa do corpo e algumas joias que minha mãe levava em sua bolsa. Nossos empregados, depois nos contaram, ficaram dias chorando sentados na sarjeta diante da casa abandonada”.
Uma viagem cheia de riscos e com o passar do tempo, nem 10% dos portugueses permaneceram em terras moçambicanas. Quando o trem cruza a fronteira, numa parada num campo de refugiados, não conseguem se comunicar através de um número de telefone enviado pelo pai e já desesperadas o avistam entre os que conseguiram alcançar a fronteira. “Ficamos num imenso pavilhão, parecido com o recinto da Expo aqui de Bauru. De lá permanecemos três meses num quarto da casa de um alemão até meu pai conseguir um emprego e mudamos para um apartamento. Ele conseguiu emprego como funcionário já qualificado, ganhava bem, mas minha mãe nunca mais conseguiu trabalhar. Foram três anos em Pretória, na África do Sul e mesmo com a vida estável, meu pai tinha medo do que poderia acontecer quando do fim da Apartheid. Eu aprendi logo a língua inglesa, mas meus pais não. Não dava para voltar para Portugal, pois muitos o fizeram ao mesmo tempo e como meus avós maternos moravam em Bauru já há uns 20 anos viemos para cá”, continua sua descrição.
Todos aportam em Bauru e o choque foi imediato. Recebidos por Álvaro Rodrigues de Azevedo e Alda Abrantes da Fonseca Azevedo, os avós, saíram da África para o interior paulista. “Meu avô comandava o Hotel Português, na rua Alfredo Ruiz, ao lado de um posto de combustível e a seguir também o Hotel Estoril no começo da Rodrigues. Com dois dias meu pai me pediu para escrever uma carta em inglês pedindo para voltar. ‘Que cidade é essa?’, era nossa pergunta. Achávamos tudo uma velharia por aqui, as ruas de pedra, que não conhecíamos, esburacadas, casas mal pintadas. Tanto em Moçambique, como na África do Sul existia um zelo e aqui o oposto. Com um mês mudamos de idéia e quando chegou a resposta da aceitação para que voltássemos, já não queríamos mais”, conta.
Seu pai, Joaquim Pereira Moutinho (a mãe Maria Helena Moutinho) começou a vida num bar defronte a antiga estação ferroviária e rodoviária, na praça Machado de Mello e depois, por anos comandou o Bar Rio Tinto, na rua Gerson França esquina com a Batista de Carvalho. Ali ganhou fama, sendo muito conhecido os petiscos portugueses do seu Joaquim. Os dois conseguiram receber respectivas aposentadoria pelos serviços prestados à Portugal e as filhas foram se abrasileirando cada vez mais. Nenhum nunca mais pisou os pés em nenhum país africano e Paula, primeiro acentua algo mais sobre o choque cultural, depois ameniza aquela primeira impressão que todos tiveram de Bauru: “Vivi na África outro tipo de pobreza, onde não existia a necessidade de consumismo, havia mais alegria. Sentia que o pobre daqui tinha uma necessidade de ter coisas, muita vaidade, preocupação com roupas. Diferentes dos de lá, se preocupavam muito com a aparência e muito pouco com o enriquecimento cultural. Pouca preocupação com a linguagem, onde com uma limitação de no máximo a cem palavras diziam tudo. O português era mais rebuscado. Porém havia algo no povo brasileiro diferente de tudo o que havíamos visto até então. Nunca mais falamos de ir embora, algo irresistível. O relaxo mesmo, isso te deixa a vontade, traz consequências negativas e por outro lado um baixar a guarda, algo a permitir a pessoa ser mais ela. Você fica a vontade, mais calor humano. Vidas caóticas, provocadas pela falta de cultura, mas muito de viver com o coração aberto”.
Paula perdeu o sotaque logo no primeiro mês de Bauru e com alguns meses na cidade, aos 16 anos, já ministrava aulas de inglês em cursos locais. Casou, teve dois filhos, um morando aqui e outro em Londrina. Inesquecível o relacionamento com o músico Xitão, falecido anos atrás. Lembranças muitas, quando pertenceu à banda Contrabando e a convivência diária no Bar 3 x 4, ao lado da igreja Santa Terezinha. Longe de Bauru por mais de dez anos, voltou e hoje ministra aulas de inglês, tentando também reencontrar uma Bauru que muitos dizem já não mais existir. Olha para seu passado e faz essas reflexões todas sem pedantismo e sem buscar culpados e inocentes no vivido: “Sou fruto de uma época. Estive no meio desse turbilhão e não tenho como fugir disso. Revejo isso naturalmente”.
OBS.: Esse texto não tem a pretensão de julgar ninguém, mas de prestar um serviço. Um relato a contribuir para que a história seja contada nos seus mínimos detalhes, abordando uma das possíveis interpretações de um acontecimento histórico. Algumas nos satisfazem, outros nos desgostam. É dessa forma, confrontando tudo, que a verdadeira história é escrita. Paula viveu a sua dentro de um desses lados e seu relato é dignificante. Essa história mereceria ser contada com uma riqueza muito maior de detalhes. Esse aqui poderia ser somente um pontapé inicial.
legal! gostei, hpa...
ResponderExcluirrosangela maria barrenha
Muito legal a história da Paula. Sou muito feliz por ser amigo dela, sempre aprendo coisas novas com suas experiências, afinal, a História não é a mestra da vida? Adorei o post. Parabéns!
ResponderExcluirGRANDE MESTRE HENRIQUE.
ResponderExcluirPARABÉNS PELO ARTIGO. FANTÁSTICO.
QUANDO SERA A CONTINUAÇÃO?...................
DO AMIGO DE SEMPRE,
prof. TOKA
Henrique, gostei muito, saga moçambicana foi legal mesmo. Algumas correções: nasci em 63 rsrsrs, o meu pai sempre trabalhou na Polícia, achei q o "foi designado" dá outra impressão..., os negros não viviam isolados mas sim em locais mais afastados, a tranquilidade foi quebrada pela primeira vez pela Frelimo também não corresponde aos fatos já q a Frelimo sempre exerceu resistência à colonização, não m lembro de um tempo onde não houvesse uma resistência....,"os portugueses d lá s viram sem emprego" aconteceu na verdade durante o movimento moçambique livre, houve a instabilidade, a falta de comunicação, após isso tudo voltou ao normal até à independência do país um tempo depois," a colonização foi de fato curta, sete anos" não, a colonização sempre existiu, a ocupação mais dinâmica ocorreu depois do salazar, foram uns 20 anos...., a minha familia não estava instalada no meio de uma guerra civil, era apenas o movimento moçambique livre, um levante q foi logo abafado. A guerra civil aconteceu depois da independencia no governo negro e durou 10 anos. O meu primo não nos ajudou, minha mãe não quis ir c ele, fomos c uma familia amiga, de trem.
ResponderExcluirEra muita informação, entendo q algumas informações não ficaram claras. Agradeço demais Henrique, adorei tudo o q escreveu, fez milagres em resumir tudo e foi muito lindo o seu comentário pessoal. Um abraço.
PAULA LOUREIRO
PAULA,
ResponderExcluirReconheço meus erros e o pior deles foi o de revelar sua idade (as mulheres odeiam isso). Quanto aos demais, preferi não fazer as correções no texto já publicado, pois foi inicialmente enviado para muitas pessoas. Essas correções, ficam registradas aqui com sua mensagem e dão um melhor entendimento para os fatos históricos narrados. Como você mesmo me disse, só a história dos seus pais mereceriam um livro, que talvez um dia você mesmo possa fazê-lo. Publico esse blog sempre na pressa, entre os intervalos de meu trabalho e nem sempre tenho tempo suficiente para corrigir e checar todas as informações publicadas. Estarei atento para que errinhos como os ocorridos no texto sobre sua história não continuem a ocorrer nos próximos a serem publicados aqui no blog.
Um abracito do
Henrique - direto do mafuá
Henrique
ResponderExcluirVocê me conhece.
Leio seu blog e outros durante o dia e hoje queria te sugerir algo.
Suas histórias de memória oral são boas, essa das melhores, internacional.
Li o texto e depois o que a Paula te escreveu sobre algumas correções.
Voce disse que preferia não corrigir.
Eu acho que deveria.
O seus escritos vão permanecer por tempo indeterminado na internet.
Nem sempre quem os lê vão ler também os comentários.
Acredito que deva rever seu posicionamento e dar a corrigida, deixando o texto correto.
Os que já foram enviados, as pessoas que já o receberam por email, entenderão.
O certo é você ir adequando o escrito conforme vão chegando mais informações.
Que acha?
Aurora
Linda a história da querida Paula, a quem tive a honra de conhecer nos anos 80.
ResponderExcluirMenina bonita, inteligente e talentosa, nos encantava nos belos vocais que fazia com o Contrabando/Wild Country Band. Tive o privilégio de estar no grupo que foi tentar a sorte em São Paulo [o Contrabando + Super Liga Kathólika], na esteira do festival de Música da TV Cultura, do qual participamos juntos.
Paula merece todas as homenagens, pela adorável pessoa que é. Obrigado Henrique pela sensibilidade de retratá-la nestas páginas.
Abraços!
Linda a história da querida Paula, a quem tive a honra de conhecer nos anos 80.
ResponderExcluirMenina bonita, inteligente e talentosa, nos encantava nos belos vocais que fazia com o Contrabando/Wild Country Band. Tive o privilégio de estar no grupo que foi tentar a sorte em São Paulo [o Contrabando + Super Liga Kathólika], na esteira do festival de Música da TV Cultura, do qual participamos juntos.
Paula merece todas as homenagens, pela adorável pessoa que é. Obrigado Henrique pela sensibilidade de retratá-la nestas páginas.
Abraços!
Eraldo B. Marques
HENRIQUE
ResponderExcluirBela história. Posso não concordar com o papel dos colonizadores, mas o que a Paula viveu não é um retrato de um posicionamento e sim, de algo que ela viveu como testemunha. Ela estava dentro do momento histórico e a sua versão é até desapaixonada. Ela não se pocisiona ao lado de um ou outro lado. Claro, que ela não desmerece os pais, mas não deixa transparecer mágoa com o regime que foi implantado no país com a saída dos portugueses e pela vida deixada para trás. Bela história.
Reescreva sim os tópicos onde ocorreram o mal entendido de transcrição. Não será legal alguém encontrar esse texto na internet daqui há um ano e vê-lo com incorreções. Deixe publicada a versão já corrigida.
Um abraço do André Ramos
Paulinha, lindona, tudo de bom pra você!!! S2
ResponderExcluirPAAAULA, guereirissima sempre né!
ResponderExcluirADOREI A ENTREVISTA!
paraaaaabéééééns!
super beijo
Bela historia de seus avós e pais... parabens.Muito legal a reflexao entre consumismo x alegria.
ResponderExcluirBeijo
Marco Buchecha
Saudades, Henrique!
ResponderExcluirE um recadinho para a Paula:
Linda sua história, Paula. Fascinante para quem, como eu, estuda migrações internacionais. Muitas figurinhas para trocarmos!Todo o carinho! Bjs.
Dalva Aleixo
Linda sua história, Paula. Fascinante para mim que estudo migrações internacionais. Muitas figurinhas para trocarmos. Tem minha admiração e te ofereço mas que a amizade do face. Todo o carinho! Falamos mais. Bjs.
ResponderExcluirDalva Aleixo
"Oi Paula Alexandra Moutinho Loureiro, uma vida inteira relatada com maestria. Me fizeste recordar o meu passado em Moçambique; não tão atribulado quanto o teu, mas me trouxe lembranças, as quais, me fazem sentir orgulho em ser um Moçambicano nato e também com muitas coisas para contar, quem sabe uma hora eu relato. Parabéns. bjs. Um abração Tawan Lima"
ResponderExcluirEste belo resumo da historia da Paula, entrelacada a tantos acontecimentos historicos da ao leitor uma ideia de tamanhas provacoes enfrentadas por ela.
ResponderExcluirPara quem teve/tem o prazer de conhecer a Paula pessoalmente, como eu, tomar conhecimento desta historia, so confirma o que esta pessoa maravilhosa nos transmite: muita forca, coragem, luta, determinacao e acima de tudo tamanha docura!
So mesmo uma pessoa tao iluminada como ela, para nao deixar que acontecimentos tao dificeis apaguem o brilho que traz nos olhos e no coracao!
Paula, um super beijo e minha admiracao!
Rosane
cara Paula:
ResponderExcluirReescrevi o texto seguindo o que me postou e relendo alguns fatos históricos. Aprendi um pouco mais. Releia e me diga se não distorci mais nada. Te envio para que possa definitivamente enviar para alguns de seus colegas, amigos e mesmo outros moçambicanos que vivenciaram situações similares à sua. Sua história é instigante e deveria produzir um outro texto, mais detalhado. O que fiz é só o pontapé inicial e se existir outros relatos, passe para mim postar nos Comentários do blog. Na junção de todos, cada um contando à seu jeito e maneira é que a verdadeira história será escrita. Não se esqueça de dizer aos que enviar o texto, que no blog do Mafuá é postado um texto por dia e que esse, escrito e publicado em 28/02 não estará mais em sua primeira página, mas com uma breve consulta será facilmente encontrado nas seguintes. Queria enviar seu texto para consulta de publicação junto a uma revista semanal. Posso fazê-lo, sem compromisso de publicação? Esse texto revisto já está no blog.
Um abracito do HPA - direto do mafuá
Belo, Paulinha!!! Voltei à nossa infância.. e lembrei da praia do Tofo de areia branquinha... e do mar azul.... da pastelaria Alvorada onde tomavamos chá com torradas.... da sopa alentejana ... dos finais de tarde à beira mar, brincando enquanto os pais conversavam.... eta tempinho bom!!!!
ResponderExcluirBjus irmã