CONVERSAÇÕES DEBAIXO DE UMA ESTAÇÃO FÉRREA
Os Encontros Ferroviários realizados em Bauru, esse o 5º,
são na verdade, motivo mais do que usuais para reencontros mil. Bauru, como
sabido, é terra de um famoso entroncamento férreo, unindo e interligando linhas
da Noroeste do Brasil, Sorocabana e Cia Paulista. Isso por si só já é uma
enormidade, algo mágico, lúdico, cheio de possibilidades, o grande
impulsionador do seu progresso, porém, imagine quando tudo isso converge para
debaixo do resistente teto de cobertura da gare da glamorosa estação da NOB,
localizada no coração da cidade e desde a privatização das ferrovias meio alijada da cidade. Dela, Ignácio de Loyola Brandão disse certa
vez tratar-se da “mais bonita estação do interior paulista”. Orgulhoso disso
todo bauruense deveria ser (o ferroviário sempre foi), mas em dias como esses,
28 e 29 últimos, muitos passaram pelo bucólico lugar e confirmaram o veredicto do famoso
escritor, tanto que o fervilhamento alcançou decibéis inimagináveis, motivo de
novas histórias acontecendo ali naquele rico quadrilátero.
O que chama sempre a atenção dos que lá circularam são as
pessoas e suas histórias. A demonstração inequívoca de que a chama ferroviária
continua mais acesa do que nunca é o que vai sendo observado em cada novo
contato. A composição da Maria Fumaça, com dois carros, um de primeira e outro
de segunda classe é sempre um dos maiores atrativos, com cem vagas em cada
viagem. Mais de duas mil pessoas passearam de trem nos dois dias, tudo
gratuito, bancado pelo projeto Ferrovia para Todos, órgão ligado a Secretaria
Municipal de Cultura, um dos apoiadores do evento, esse idealizado, organizado
e levado adiante pela APFFB – Associação de Preservação Ferroviária e de
Ferromodelismo de Bauru. É o caso de Joaquim Vieira, 81 anos, nunca foi
ferroviário, mas ama a causa e a estação. Ouviu no rádio e veio passear de
trem, trouxe um poema com o tema “Paixão” e o entregou para funcionária do
Museu Ferroviário: “Eu saio de casa todo o dia em busca de gente que me ouça e
distribuo minhas poesias para esses. Essa estação cheia de gente é um retorno
ao passado”.
Pessoas com atitudes idênticas ao de seu Joaquim é o que
mais se vê. Do nada surge uma moça morena, lágrimas nos olhos, não diz o nome,
nem quis se identificar, mas diante de um grupo diz: “Meu pai foi maquinista.
Ele me trouxe aqui para conhecer o seu local de trabalho quando era muito
pequena. Eu subi numa locomotiva aqui nessa estação há trinta anos atrás, era menina e
hoje ao ver isso aqui do jeito que está me deu uma tristeza imensa”. Um dos que
a ouviu atentamente foi Buccalon, superintendente aposentado do Banco do Brasil,
chegando a contar uma piada de maquinista para acalmá-la. Quando ela se vai,
conta uma história sua passada nos trens: “Era jovem e fomos jogar no Mato
Grosso, uma equipe inteira de trem e na última hora chega um que não estava na
lista. Embarca clandestino e o escondemos na ida e na volta, em certos momentos
enfiou-se no bagageiro e na volta, com o bilheteiro cheio de desconfiança, em
certo trecho ficou dependurado do lado de fora do trem”.
Álvaro Scarco foi maquinista e encosta junto a um grupo para
trocar ideias, quer também contar a sua, ouve a de muitos e deixa escapar o que
também é o pensamento da maioria dos ali presentes: “Esse abandono causa dor,
dilacera por dentro. Os trens chegavam e saiam daqui como um reloginho. Quem se
espanta com os horários precisos dos trens europeus não sabe como era isso
aqui, tudo tinha um horário rígido e quase não ocorriam atrasos”. Audren
Victorio passou para fazer a abertura do evento, trabalho de cerimonial e quase
foi obrigada a cantar algo com tema férreo. Da conversa com um dos
organizadores, Ricardo Bagnato, deu para extrair algo assim de soslaio: “Não
existe nada igual a essa estação aqui na cidade”. Ricardo sabe bem disso, tanto
que tinha na ponta da língua algo mais para a abertura, quando instigaria o
prefeito sobre a viabilidade de apressar o restauro da estação. O prefeito não
veio e a cobrança acabou ficando para outro dia e instância.
José Carlos Aguado foi jornaleiro nos trens que iam de Bauru
até Corumbá, isso no período de 1960 até o início de 1965: “Era muito jovem e a
empresa que trabalhava, a Distribuidora de Revistas e Jornais Salomão Gantos
ficava ali naquele lado. Vendia jornais e revistas pendurados pelo corpo e pelo
corredor dos carros. Lembro de tudo ao voltar aqui, tinha um vagão onde
descansávamos por alguns instantes, mas gritávamos muito no trecho todo. Isso
tudo não me sai da memória”. Ele é apenas mais um, Reginaldo outro. Morou em
Bauru por alguns anos vindo de São Paulo e aqui veio por causa do amor aos
trens. Morou num hotel e vendia revista num sinal vestido de palhaço para sobreviver,
participando das reuniões da Associação e diariamente circulando pelos trilhos.
Causou até desconfiança, mas tudo não passava de puro amor. Ficou até quando
deu, mas ao conhecer a atual esposa, foi-se para Jaú, distante 100 kms e hoje
dedica-se à causa férrea mas na nova cidade escolhida para morar.
O falante e espevitado Geraldo Silva Carvalho, negro,
mirrado, de terno o tempo todo, fala pelos cotovelos, traz a bíblia debaixo do
braço e envolta num saco plástico, sempre cheio de sugestões para apresentar as autoridades sobre o que
fazer com tão bela estação. “Se o prefeito aparecer por aqui vou lhe dar uma
sugestão que não vai ter como não executar. Eu só quero ajudar, estou aqui
desde os 16 anos e não suporto mais ver essa estação fechada. Não sei se sabe
mas vendo doces pelas ruas e em cada lugar que passo, converso muito, ajudo as
pessoas a não se desviarem do bom caminho. Se me permitirem, ajudo com boas
ideias para isso aqui não ficar mais abandonado”, conta para os que lhe dão
atenção. Sentada numa das lanchonetes da estação está uma distinta senhora
envergando uma camiseta com escudo do Noroeste de Bauru: “Fui faxineira,
merendeira e trabalho no Noroeste faz um tempão. Lá tem muita coisa que foi feita
por ferroviários e quando venho aqui, entristecida lembro-me da situação hoje
do time e vejo que é quase a mesma dessa estação. Não tem como não ficar triste”.
Fábio Pallotta é professor e defende a causa do Patrimônio
Histórico, acaba de voltar de um evento do mesmo nível em Rio Claro: “Lá
participei de algo com prefeito, vice, presidente da Câmara e muitas
autoridades locais. Eles querem fazer algo e já por lá, aqui vejo que tudo
demora demais para acontecer”. Ricardo Fronteira é apaixonado pela causa e faz
questão de tirar um foto ao lado da locomotiva Wanderléia (sainha rodada, curta
como a da cantora): “Como demora para acontecer as coisas relacionadas à
ferrovia no Brasil. Olhemos para os exemplos de fora, mas isso tudo parece não
fazer sentido aqui, uma pena”. E assim como esses são quase todos os presentes, cada um querendo dar uma opinião, falar do seu envolvimento com a ferrovia, dizer dos motivos de
ali estar. Foi assim o tempo todo, gente disposta a conversar, expor ideias,
apresentar sugestões, discutir o momento atual e o futuro dos trilhos no país.
Gente como Mariza, Vinagre, Roque, Jesus, Bento, Joana, Antônio, Tião, José, Chico, Orlando, Oscar
e tantos outros. Gente interessada e disposta e dedicar boa parte do seu dia a
dia ao tema trens. Gente querendo que a a linda estação e os trens de passageiros voltem a funcionar.
no livro "O verde violentou o muro", o grande Ignácio fala com carinho das lembranças de nossa estação...
ResponderExcluirSilvio Selva
Henrique
ResponderExcluirFiquei muito grato em saber do paradeiro do Reginaldo, aquele moço que se vestia de palhaço e ficava no cruzamento da Nações Unidas com a Nuno de Assis vendendo para sobreviver aquelas revistinhas infantis de pintar. Li tempos atrás no seu facebook sua preocupação sobre o desaparecimento dele e perguntava se alguém sabia dele. Ninguém o respondeu e agora ele aparece no encontro realizado na estação, casado e morando em Jaú. Um boa notícia.
Alvarenga