quarta-feira, 27 de novembro de 2013

MEMÓRIA ORAL (151)


O CASAL DESBRAVADOR DO RECIFE VELHO – AROEIRA PURA COM MUITA NOSTALGIA

Conhecer o Recife Antigo acompanhado de alguém sendo cumprimentado em cada esquina naquele quadrilátero é um raro privilégio. Esse alguém é URIAN AGRIA DE SOUZA, professor de Desenho, escritor, poeta e pintor, um paraense que já rodou boa parte do Brasil e depois de certo tempo, resolveu temporariamente acampar na dita Veneza brasileira. Junto de sua companheira de todas as horas, a educadora sertaneja CARMEN LUCIA BEZERRA BANDEIRA, oriunda da fronteira da Bahia com Pernambuco formam um casal dos mais reconhecidos nas ruas do trecho entre o rio Capibaribe e os arrecifes do Oceano Atlântico, onde casarões estão passando por um processo de restauração e onde existe uma forte resistência da verdadeira cultura local, concentrada e sobrevivendo com certo apoio institucional. Mesmo na adversidade, o reduto continua cheio de encantos e de personagens riquíssimos em algo peculiar, mestres na cultura popular e cheios de muita história. O histórico pedaço pulsa história e trombar com tipos populares é algo mais do que natural.

Urian é um desses indomáveis cabras da peste, com parada incerta e não sabida. Já viu quase de tudo na vida e só se deixa levar pelas coisas de antanho, daí encontrou em Carmem algo similar, formando uma simbiose como a cunha e o cunhão. Vivem num entrelaçamento bonito de ser visto. O encontro com eles não foi assim tão casual. Ana Beatriz, minha parceira foi sua aluna no Rio de Janeiro e desde os tempos dos cursos por lá continuaram num relacionamento de muita conversa e afinidades intelectuais e de linha de pensamento. Quando aportamos pelo Recife por motivos outros, lá estavam os dois para nos apresentar a cidade, o u melhor, o Recife Velho. Marcamos numa de suas beiradas, no hoje Shopping Paço Alfandega, ao lado de um dos poitns de encontro de gente em busca de conversa, a Livraria Cultura. Foi ali, num local que antes abrigou um famoso hospital, lugar escolhidos para tomarmos nossas primeiras cervejas.

Caminhamos pelas ruas e isso é indescritível para um forasteiro. Queria ir parando em cada canto, fotografar tudo, registrar cada tipo que ia parando o casal para os cumprimentos de praxe. Fomos para a beirada do mar, lá do lado de lá uma ilha e cheia de obras do Brennand. Caminhos mais que demorados, paradas constantes em vários lugares, explicações detalhadas de algo que por ali tenha ocorrido no passado e até as repercussões até os dias atuais. Tudo inebriante, envolvente. A famosa sinagoga israelita, a primeira do Brasil, uma feira bem diante dela, tomando calçadas, produtos artesanais em abundância de cores e ofertas. A primeira parada mesmo foi num lugar dos mais propícios para se explicar algo mais daquilo tudo, o Bar e Restaurante teatro Mamulengo. Fomos um dos primeiros a chegar e dali a pouco, tudo à nossa volta é tomado de gente.

É que ali acontece todos os domingos à tarde a apresentação do Teatro Mamulengo, linda manifestação popular tendo à frente uma só pessoa, o mamulengo Jurubeba, José Júlio, desdobrando-se em por detrás dos panos representar o papel de mais de vinte personagens, passando depois o chapéu para coletar o que a praça cheia quer pagar pelo apresentado. Ao lado dessa apresentação rola outra, a do grupo Forró de 1 Real, comandado pelo Douglas Donato e interagindo com o outro espetáculo. São dois num só, tudo pelo preço do que você quiser colocar no chapéu. A praça ferve, a criançada se diverte e os artistas fazem algo muito simples, sem grande embromação, tanto que gente como Urian, escolado pela vida faz questão de ali aportar e permanecer, pois sabem que é nessa simplicidade que reside as grandes coisas. Foi ali que nos levaram e ali conhecemos mais gente da melhor envergadura recificience. Cada um que ia surgindo à nossa frente, além dos cumprimentos de praxe ao casal, tinham algo rico para expor aos presentes. Douglas canta forró que é uma maravilha e ainda tive tempo de gravar algo dito por ele: “Tá pensando que isso aqui é o Rock in Rio, nada disso, a gente tem cultura por aqui. Quem t´pa fazendo temporada lá o tal do Michel Telló. Ninguém mais aguenta isso. Nós estamos em outra. O cara mais underground que eu conheço se chama Zé Ramalho”. E aproveita para tocar uns forrós dele.

Quem vem nos atender é o garçon Barack Obama, uma espécie de gerente da casa, aproveitando-se de uma nesga de semelhança com o presidente norte-americano, trabalha travestido com as cores daquele país, mas fica na sua quando lhe perguntam sobre gravar as conversas alheias. Como sabe que o presidente yanque não vive um bom momento, fala o mínimo possível e quando perguntado responde sempre que “o forró é que vale mesmo a pena”. Junto dele e até dando umas canjas em certos momentos está um senhor de aproximadamente uns 70 anos, que poucos sabem o nome, mas todos conhecem o apelido, “Lampião”. “Um ser do lugar, vive de favores, mora em lugares aqui e ali, mas nunca lhe falta um teto e nem comida. Virou uma instituição daqui, uma pessoa querida por todos”, conta Urian. Lampião circula com um chapéu cravejado de moedas e muitos já lhe ofereceram grana alta pela peça, ele se aproxima de nós e diz: “Essa é minha preciosidade. Não vendo, não troco e não empresto”. E sai dali para bater bumbo junto dos músicos.

José Júlio quando o espetáculo termina me deixa conhecer sua mala, onde guarda todos seus apetrechos de trabalho. “Eu já viajei muito, mas hoje o povo daqui me faz feliz. Saio para apresentações quando sou convidado. Esse pouco ganho aqui me satisfaz. Não preciso de muito e sim de muito calor humano e isso não falta por aqui”. Cada um fala algo que toca lá no fundo e o casal que li nos levou, Urian e Carmen pouco falam nesses momentos, mais observam. Sabiam que nos trazendo ali teríamos esse choque cultural e deixou a coisa rolar até não mais poder. Quando a noite começava a escurecer a praça, disse que era chegada a hora de caminhar para outro ponto e lá fomos nós, olhar aqueles prédios todos, alguns sendo restaurados, outros ainda semi abandonados, mais cheios de vida. Voltamos todo o trajeto feito inicialmente e fomos aportar lá perto do shopping, num barzinho onde uma inusitada banda iria começar a tocar dali a instantes. Lá do outro lado um forró, do outro um jazz na calçada. De queixo caídos ficamos observando o que ia se consolidando ali diante de nossos olhos.

Um mestre do sopro ali diante de nós e tocando de tudo, junto de mais três músicos. O rei da malemolência tem nome e sobrenome, trata-se de Edson Rodrigues, uma daquelas sumidades que já tocou com a cidade inteira e gosta de estar ali na calçada, numa tarde quente de domingo, pois sabe que ali seu trabalho será reconhecido. É verdade, enquanto tocam uma legião fica absorta ouvindo-os sem conversar. A música entra por aquelas vielas, sai por outras e deixa todos por ali meio que em plena levitação. No intervalo não resisto e vou bater um papo com um dos músicos, o contrabaixista Nando Rangel. Digo ter ficado impressionado com a música deles. “Não vivo disso aqui não, todos tocamos porque gostamos, eu sou professor universitário de música e não consigo abandonar de tocar com gente igual a esses aqui. Nós nos atraímos”, conta e me presenteia com seu CD, o da banda “Contrabanda”, com a participação também do maestro Edson. Urian não me vigia, deixa a coisa ir rolando, pois sabe que iria impressionar a todos. Ao seu lado não param de surgir gente que faz questão de cumprimentar, efusivos abraços. Não resisto e compro o tal do pirulito de metro e também uma luneta estreboscópica, a do Caleidoscópio Fantástico, que não visualiza nada, mas tudo vê. Coisas de quem faz e vive de pequenos negócios pelas ruas. Como dizer não para tão simpáticas pessoas.


Saímos de lá já com a hora bem adiantada e já no dia seguinte seria o dia do retorno. A despedida foi numa segunda e num lugar bem longe do centro e de tudo o que tenha a cara de modernidade. O casal nos levou para a última cerveja e  uma comidinha pra lá de nordestina no Mercado da Encruzilhada, um lugar cheio de ervas, flores, cheiros agradáveis e gente com a cara de que o lugar é de muita responsa. Ali ganho um livro com poemas do Urian e fico de retribuir enviando o meu (o que faço quase um mês depois). Num momento em que a conversa ameniza aproveito e dou uma folheada nos versos, lá encontrando essa jóia mais que rara, seu poema Fóssil: “As águas se foram/ e me guardei pedra./ Anos, séculos, milênios,/ Integrados,/ somos um só minério;/ um velho desenho,/ uma escrita,/ uma lição/ de solidariedade”. Parece que tudo havia sido escrito para nós ali naquela mesa da periferia do Recife, um bando de fósseis vivos, todos em busca de um porto seguro, cada um se segurando na solidariedade do outro. Nos despedimos com aquele sabor de quero mais. Urian é tão enfronhado com as coisas de lá que não nos deixou pegar um taxi qualquer, liga para um seu amigo e esse nos leva para o hote e de lá para o aeroporto. Já sentado no avião, olhando pela janela o Recife leio a dedicatória que me fez: “Henrique, sertanejo como eu, navegando nas águas desse povo fantástico – Recife 16/09/2013”. Eu chorei, pois após seis dias no Recife só fui conhecê-los no penúltimo dia. Perdemos muito com isso, mas ganhamos tanto em tão poucas horas.

6 comentários:

  1. Sr. Henrique
    Belíssimo relato. Sou amiga desses dois há mais de 30 anos. Pelo menos da Carmen Lucia. O Urian conheci um pouco depois. Já fizemos boas farras. Eles são maravilhosos. Que bela homenagem .
    Rejane cavalcanti

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  2. Quanto aos meus errinhos de concordância e de português:

    As correções faço com o tempo. Escrevi tudo de uma só talagada e Ana me cobra a presença em sua casa. Já são 21h41 e daqui 20 minutos começa Flamengo x Atlético PR. Tchau, amanhã corrigo tudo.

    Pretendo cumprir o prometido ainda hoje.

    Henrique - direto do mafuá

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  3. HENRICÃO

    NÃO LIGUE PARA SEUS ERROS.
    FAÇA AS CORREEÇÕES NA MEDIDA DO POSSÍVEL, JÁ HAVIA EXPLICADO ISSO AQUI.
    DEU VONTADE DE CONHECER AQUELE PEDACINHO DO RECIFE.
    MAS ME DIGA: NEM FORAM PARA AS PRAIAS?

    VALÉRIA

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  4. É isso aí, querido Henrique... uma coisa é a vivência, a outra, o tempo que a escrita precisa para sair assim de uma talagada só... tá muito legal o texto e assim casadinho com as fotos, dá a exata dimensão do que foi o nosso encontro, além do que, você captou muito bem com qual desses ARRECIFES nos identificamos... e o pirulito, como foi que conseguiram acomodar essa pela rara nas malas? Conversei com Ana Bia sobre as possibilidades de vocês virem novamente, o melhor tempo, essas coisas... é claro que no tempo certo, vamos não só repetir a dose mas descobrir novos e variar os sabores... um grande abraço
    Carmen Lucia Bezerra Bandeira

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  5. Henrique e Ana Bia,
    Urian acaba de ler o Casal Desbravador e ver o álbum... está emocionado e manda beijos, agora não e está em condições de escrevinhar.
    Carmen Lucia Bezerra Bandeira

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  6. Também me emocionei muito, Henrique!
    Cláudia Lucciola - Rio RJ

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