EXPERIÊNCIAS DE COMO IR DESATANDO ALGUNS NÓS... – ANDANDO NA
CONTRAMÃO E PELAS VICINAIS
Outra vez uma pessoa chegada recentemente à Bauru me faz a
mesma pergunta feita por Ana anos atrás: “Mas o que existe de fato para se
fazer nessa cidade? Gosto muito de sair, mas não vejo assim tantas
possibilidades...” ( estudante Lili). Existir elas existem, diria que até aos borbotões, mas
necessitando serem escavadas, algumas vezes até com as próprias unhas. Diante
do que nos apresenta jornais, TVs e rádios como Agendas de atividades, existe
um algo mais, ainda escrito nas entrelinhas e é por essa linha que sigo e não
me arrependo. Conto aqui, nas próximas linhas somente três atividades pelas
quais tive o prazer de botar o “bloco na rua” nesse final de semana. Segunda
talvez seja um dia propício para começarmos com falatório mais sério, centrado,
mas como ainda não conseguei me desvencilhar por completo de tudo o que me
aconteceu no final de semana, acredito que para desatarraxar esse nó terei que
por para fora um bocadinho do vivenciado nesses dias. Vamos aos relatos:
EXPERIÊNCIA 1 – O TEATRO DE RUA DO SILVIO SELVA – No
convite feito por Silvio Selva estava
embutido um algo mais. A peça que ele dirige chama-se “A farsa do advogado
Pathelin”, baseada na fábula “A raposa e o corvo” e seria apresentado ao ar
livre, mais exatamente debaixo das árvores do parque Vitória Régia, sábado e
domingo, sempre às 17h e com elencos distintos nos dois dias. Ter a
possibilidade de assistir algo baseado no teatro feito nas praças da Idade
Média, aquele que viajava de cidade em cidade, chapéu na mão a recolher
dinheiro, tudo instigante. Na sinopse isso: “O texto critica e satiriza os
costumes de duas das mais fortes classes sociais da França do século XV, os
comerciantes, os homens de leis e o fanatismo religioso, apesar de medieval, se
destaca pela sua atualidade. Os personagens são todos canalhas e mentem
descaradamente para conseguir vantagens”. Levei o filho, que lá encontrou
vários amigos. Assisti ao lado de duas pessoas especiais, Geraldo Bergamo e
Roque Ferreira, contando com um agradável papo com Paulo neves e também de
Silvio Selva. Não podia esperar nada mais agradável. Da peça em si, o que já
esperava, uma similaridade muito grande com as injustiças provenientes da convivência
com o viver hoje dentro de um estado neoliberal, onde o deus dinheiro está
acima do bem e do mal, tudo pode e tudo permite, desde que para atender seus
interesses. Impossível não fazer comparações com a atuação inescrupulosa
vislumbrada em muitas ações de poder espalhadas por todos os cantos. Cobra
comendo cobra, um deus nos acuda, pega pra capar, terra do “ladrão que rouba
ladrão tem cem anos de perdão”.
O Silvio parece ter escolhido o texto a dedo, pois padece
dos mesmos males que eu. O ter consciência de classe hoje em dia é mesmo algo
muito doloroso, sofrimento ampliado, dilacerando os que ainda insistem em
lutar, em lançar suas lanças contra inexpugnáveis moinhos. Mesmo assim
continuamos insistindo. A montagem passou a mensagem a que se destina. Deu o
toque. Os atores deram o máximo de si, alguns se iniciando no mundo das artes
cênicas, muitos de outras cidades espalhadas pela região e algo que muito me
tocou. O juiz foi interpretado por um ator, que durante o dia exerce a função
de jardineiro, um operário na acepção da palavra. Um amante das artes, que tudo
fez para ali estar naquele dia e realizar seu sonho. Nada mais gratificante do
que numa modorrenta tarde de sábado, a existência de um algo assim, um
acontecimento sui generis dentro de tudo o que estava programado para acontecer
em Bauru naquele dia. Umas cem pessoas, todas saindo de suas casas com o
intuito de ver algo diferente, algo que não teriam mais a possibilidade de ser
visto com frequência em outras oportunidades. De tudo, para mim, além do papo
com o diretor e o ator no final do espetáculo, um algo mais, papo debaixo das
árvores com nada menos que Bergamo e Roque. “Saio cada vez menos de casa, pois
encontro cada vez menos possibilidades como essas, onde flui um papo com
assuntos específicos, agradáveis”, confessa Roque, referendado por Bergamo.
Isso, ainda bem, é possível em certos lugares, com certas pessoas, muitos ao
acaso, como o ocorrido entre nós.
EXPERIÊNCIA 2 – UMA GRAVAÇÃO DE FILME COM SAMBA UMBANDISTA –
Sábado à noite, quando a roda de conversa do Convívio se desfaz, Ana me convida
para irmos numa gravação de um documentário feito por alunos do 2º ano de Rádio
e TV, curso de Comunicação Social FAAC Unesp Bauru. Havíamos participado semana
passado no bar La Pinguetta de algo com eles, tendo como pano de fundo a
apresentação do grupo de samba eminentemente umbandista, o Balaio de Sinhá. O
repertório deles é daqueles preparados com o maior afinco, cuidado, esmero, só
músicas que tem algo mesmo a ver com o sentido da existência do grupo. Pois não
é que, ao chegarmos ao local da gravação, o arborizado recanto do bar Aldeia, onde
atuaríamos como figurantes, quem está se apresentando no palco é o grupo Balaio
de Sinhá, tendo como cantora a Joelma Moura, toda paramentada com as vestimentas
brancas de praxe. Uma bela recepção pelo grupo de jovens estudantes, um cenário
de bar, gente conversando enquanto rolavam as cenas no balcão e no meio do
salão. E a divina possibilidade de desfrutar novamente de um samba tocado e
cantado com dignidade, empenho e algo buscado lá do fundo de cada um dos
integrantes. Fico ali embasbacado com cada detalhe, cada gesto, o refino nos
trajes e na sensibilidade do repertório. Impossível não cantar junto nas mais
conhecidas.
Uma interação com os jovens, pouco vista em outros
ambientes. Tenho meus 53 e sei que por ser de uma geração diferente, muita
coisa não bate, empatias mais lentas. Ali nada disso aconteceu. Tudo foi tão
rápido, aproximações assustadoramente rápidas e papos fluindo como se
tivéssemos todos a mesma idade. Ninguém estava ali para dar aula para ninguém,
mas sim, trocar experiências, ouvir, ver e sentir. Revi Alberto da Casa da
Capoeira, também atento ao toque dos tambores e atabaques, papeamos com Liz e
Ricardo, donos do Aldeia e cheios de novidades para esse ano, tudo depois do
Carnaval. Dos jovens, um deles, Tulio José, de Paraibuna, ali por causa de sua
namorada, a estudante Lili. Pela forma como se aproximou e fincou raízes de
papo leve, suave e bom, disse ser ele um sujeito “dado”. Ele gostou, espalhou
para todos sua “dadice”, nada mais do que uma generosidade à flor da pele.
Conheci mais gente, um senhor sessentão, cantor e pintor de paredes, Vagalume,
pai da cantora Joelma, outra generosa pessoa, encantante quando com o microfone
nas mãos e muito mais no papear nas rodas formadas no entorno da festa. Ficamos
sabendo particularidades da vida de todos, algo apaixonante, dessas coisas que
já tornam próximos uns dos outros assim logo no primeiro encontro. Vagalumearam
todos por ali, lindo ver a troca de papeizinhos com endereços anotados,
telefones registrados em celulares e promessas de encontros outros em outros
lugares e situações. Muitos do que ali estiveram voltaram a se encontrar no
domingo à tarde.
EXPERIÊNCIA 3 – A FESTA DA ESCOLA DE SAMBA COROA IMPERIAL –
A festa ocorreria num outro lugar e no convite estava impresso, “presença de
DJs”. Reclamei que esse momento é só de samba e carnaval. Fui ouvido, o tema
gerou debate e a festa foi transferida para o próprio bairro, nada menos que na
sede da Associação de Moradores, enfincada no centro do Geisel. Um amplo salão,
palco montado, espaço para bar ao fundo e um amplo salão, muitas mesas e espaço
para danças variadas e múltiplas. O ambiente estava criado e ali ocorreria mais
uma das muitas aberturas do carnaval 2014 de uma das escolas de samba de bairro
(existem duas só ali), a Coroa Imperial. A Coroa é uma escola familiar, criada
e mantida pela família do patriarca Avelino. Esse ano ele foi incitado a fazer
uma nova aposta em termos de parceria e algo de muito novo está despontando,
botando as asas da criação e da imaginação para voar. Sei que muito disso tudo
ainda é segredo, respeito e não escrevo ainda de quem está por detrás do
carnaval da escola. Descrevo só a festa, as pessoas alegres cantando o samba,
casa cheia e um batuque para endoidecer gente sã. Eu, Ana e a mana Helena,
chegamos cedo, quando alguns jovens estudantes ainda preparavam a festa,
arrumavam os detalhes, pincelavam o cenário. Curtimos cada detalhe, cevada à
mão e olhos atentos. Detalhes em verde e rosa, igual as cores da Mangueira por
todos os lados. Potentes caixas espalhando samba de verdade por todos lugares,
poros à flor da pele. Calor de torrar mamona, samba quente pela frente.
O frenesi ocorre perto das 18h, quando quase que ao mesmo
tempo ocorre um boom no local. Chegam os instrumentos e juntos deles seus
manuseadores, alguns mestres orientadores e tudo é montado. Nei do Rasi, fez a
letra do samba e junto de mais dois puxadores sobem ao palco e detonam o samba,
letra gostosa, tema sobre o “Voar”, desde o sonho de Ícaro até o brasileiro que
foi levado ao espaço. Não quero revelar nomes de gente conhecida que por lá
esteve, pois ainda não li isso em lugar nenhum. Não sei se ainda devo fazê-lo,
mas o que presenciei foi uma entrega ao frisson emanado pelo som dos tambores,
que raros foram os que permaneceram em suas mesas. Até quem não dançava faz
muito tempo foi visto dançando e muito no salão. Sei que gente dançou tanto,
que ao chegar em suas casa, não sei também como, desmaiaram com toda a certeza
desse mundo. Clima dos mais agradáveis, gente nova para mim esbarrando a cada
instante, papos dos mais agradáveis (que ainda conto por aqui) e no final, só
para demonstrar como é gostoso mesmo esse negócio de entrelaçamentos mil pela
música, um senhor me bate às costa e diz: “Quero falar contigo, mas lá fora”.
Levo um susto, o que teria para me falar um desconhecido. Não queria nada de
mais, só me conhecer e dizer que havia gravado 48 minutos (lembro-me bem disso)
do samba comendo solto, que publicaria por aí e queria ver se não ajudava a
difundir isso. Um vidente do subúbio, cheio de histórias prontinhas para
escaparem e ganharem o mundo. Isso tudo me encanta de um jeito, que nem o
manhoso do “dado” do Túlio, também ali presente, me foi possibilitado altos
papos. Faltou tempo. Quando me dei conta já era 22h e daí, barriga roncando,
terminamos a noite comendo um lanche lá do Bar do Bode, no Redentor.
Ufa! Isso tudo já está mais do que bom por hoje. Fiquem com
a fotos, cinco de cada evento e haja folego para os que conseguiram chegar até
aqui. Morro um pouco mais a cada dia, mas morrerei feliz da vida. Fiz (quase) tudo o que sempre quis.
Povo Bão! Esse hein! Saudade da minha terra do coracao!
ResponderExcluirFelipe Carvalho
novamente agradeço a existência de seu blog e seu olhar antenado para as coisas "sem carimbo" de nossa cidade, um grande abraço, caro Henrique!!!
ResponderExcluirComo é bom ler isso ! Meu Deus!
ResponderExcluirver aquela peça em baixo das árvores foi uma coisa linda. Certa vez fui a uma feira renascentista em Portugal e vi a mesma peça, feita no mesmo estilo, mas com uma grande diferença: o elenco daqui mostrava satisfação em seus olhos! Maria de Lourdes Aveiro
ResponderExcluirHenrique
ResponderExcluirSabe a sensação que tenho disso tudo que voce escreve e aqui tão distante de BAuru.
Voce é produtor de muita saudade na gente. Sou como ti, gosto das coisas mais simples, dos lugares com cheiro de povo e com ele lá. Não me peçam para ir na Getúlio quando estou em BAuru e vejo que não escreve desses lugares chiques. Sua escrita é a que realmente mostra o lado B da cidade, um que resiste.
Eu fico tomada de muita saudade ao ler seus textos.
Aurora