segunda-feira, 4 de agosto de 2014

MEMÓRIA ORAL (166)


ACOSTA É ESPECIALISTA EM FITAS CASSETES – NA FEIRA TRISTÁN NARVAJA EM MONTEVIDÉU
Feiras dominicais possuem personagens mais do que próprios, criados e cultivados ao longo dos anos de existência do lugar. Sempre que posso resgato alguns de minha aldeia, Bauru e alguns ligados a sua mais famosa feira, a do Rolo, uma espécie de Mercados das Pulgas. Com esse nome existem milhares de outras, espalhadas pelos mais diversos cantos do planeta. Nesse último domingo, 03/08, conheci uma onde pela primeira vez bati os olhos e os pés. Em Montevidéu, a capital uruguaia, cidade com pouco mais de 1,5 milhão de habitantes (o país tem pouco mais de 3 milhões), conheci a mais popular delas, ocupando ao todo mais de vinte quadras da rua (calle) Dr. Tristán Narvaja, começando na famosa avenida 18 de Julho e indo até onde os pés aguentam continuar, tomando ruas laterais e adentrando todos os lugares vazios imagináveis no percurso. Tudo começa com uma feira normal, com frutas, legumes, o de sempre e vai para a variedade que se vende no mundo todo, culminando com as antiguidades e a quinquilharia (eis aí o gostoso desses lugares) próprias de cada lugar.

Na Tristán Narvaja isso tudo é ampliado e ali a real possibilidade de um Uruguai ainda desconhecido ir surgindo a cada nova banca, a cada novo personagem trombado ao longo do percurso. E são tantos, que destacar um é algo meio que ingrato. Muitos outros poderiam merecer a honraria de ter suas histórias contadas. E por que se escolhe um dentre tantos? Algo desperta uma curiosidade maior que os demais. Isso sob um ponto de vista. Cada um ali tem um interesse, um motivo para estar circulando por ali e busquei um. Encontrei-o em ACOSTA HODAIS ARSENIO, um senhor com mais de 70 anos e com uma modesta loja encravada no número 1614, do lado direito de quem desce a rua. Estávamos num grupo de quatro pessoas e só eu me interessei pelo letreiro de uma tal de DISCOMODA, pequena loja com um pequena porta central, ladeado de duas vitrines, tudo um tanto empoeirado e lá dentro só as boas e valorosas preciosidades, que na mão de colecionadores valem muito, mas nas de pessoas ditas comuns, não passam de quinquilharias.

A Discomoda é uma loja, como cravado em suas paredes, especializada em “venta de discos y cassettes”. Tudo ali é muito antigo, os discos estão espalhados por todos os lugares. LPs enfileirados em pequenos montes e ocupando quase todo o espaço do local. Pergunto ao Sr Acosta sobre CDs de música regional uruguaia. “Sim, tenho alguns, mas não muitos. Sabe aquilo de casa de ferreiro, espeto de pau. Vale para aqui”. Leva-me para onde estão os CDs, num canto de uma estante. Não acho nada que me interessa, mas um algo mais me desperta a curiosidade. “Percebo que o que tens muito mesmo são fitas cassete. Elas vendem bem até hoje?”, pergunto. “Sim, é a minha especialidade. Delas tenho de tudo um pouco, inclusive brasileiras”, me diz. E daí em diante passo a verificar a enorme quantidade de fitas cassetes disponibilizadas por todos os lugares da loja.

Na verdade, a loja do Sr Acosta é especializada nisso, em fitas cassetes. Não resistindo digo que já tive muitos, mas isso há mais de vinte tive que descartar os últimos, pois estragavam muito rapidamente. Ele concorda e me leva para ver um dos velhos em pleno funcionamento. “Veja esse, tem mais de trinta anos e toca que é uma maravilha. Tudo é questão de cuidados. São muito mais sensíveis e aqui em Montevidéu, muitos já sabem que o velho Acosta revende isso e daí, sempre me aparece gente doando, querendo vender acervos inteiros. E do outro lado aqui vem gente do Uruguai inteiro, também da Argentina, do Brasil e de vários outros países e buscando títulos em cassete. Vendo muitos LPs, mas os cassetes são o que mais tenho”, me explica. Vou até a estante mais próxima e tiro alguns do lugar. Cantores latinos que em sua maioria não conheço, a maioria empoeirados do lado externo, mas catalogados de acordo com o tempo disponível desse senhor em ir separando e juntando tudo em ordem alfabética por cantor ou ritmo musical.

Nisso adentra outro senhor, também uruguaio, velho conhecido do proprietário e estabelecem um diálogo sobre o motivo desse ali estar. Um disco é também motivo para a conversa se alongar, tomar outros rumos e tudo isso comigo ali ao lado. Impossível não se interessar pela conversa dos dois, sobre o Uruguai de ontem e a música de hoje. Não são nostálgicos, nem desmerecem o som dos jovens de hoje, somente continuam gostando de uma música e de músicos que já se foram. Ali um lugares exatos para reverenciar o passado uruguaio, pois tudo ali remete os seus frequentadores a dar uma pequena volta no tempo. Impossível não fazer essa viagem, pois a poucos metros dali a modernidade está instalada e em pleno funcionamento. Ali não, pois o motor da loja do catedrático Acosta é revirar o passado, dar valor a ele e mais que isso, ele vive com a renda advinda do comércio desse amontoado de coisas do passado.

Não levo nada e nem ele me força a fazê-lo. Percebeu que o meu interesse pelo seu estabelecimento era outro. Pedi um cartão (“una tarjeta”) e ele não tinha. Disse que queria algo com o seu endereço anotado e a solução foi das mais simples. Diante de um amontoado de papéis em cima do balcão de entrada, saca logo de uma Nota Fiscal com tudo o que necessitava, desde seu nome, endereço, fone e com um algo mais no verso, algo para mim de inestimável valor, uma lista de compra de um cliente, um tal de Wilson, que havia gasto ali entre LPs, livros e cassetes o total de 1.255 pesos, aproximadamente 125 reais. Livros, LPs e CDs eu sabia que continuavam vendendo mundo afora, mas Fitas Cassetes, resistindo ao tempo nas mãos de um especialista no trato com elas, encontrei talvez um dos últimos tendo-as como carro chefe de seu negócio.

Quando me recordo do padecimento que tinha com essas fitas enrolando dentro dos meus antigos gravadores, algo penoso de ser desembaralhado, na despedida dou algo que vai além de um aperto de mão, um algo mais no Sr Acosta, um baita de um abraço. Peço para fotografar sua loja, ele me deixa à vontade e clico tudo, cada detalhe. Quando saio o reverencio e ele me diz lá do fundo: “Volte sempre. Gracias pela visita tão cordial”. Vou ao reencontro do grupo de brasileiros ainda entretidos com outras curiosidades e compras na feira. Quando lhe conto de onde estava, sacam algo para me dar conta de que os gostos e preferências individuais são mesmos dispares entre os humanos: “Mas nem tínhamos notado nessa loja”. Outras mais continuariam despertando minha curiosidade ao longo do percurso, encerrado naquela manhã bem depois das 14h.

2 comentários:


  1. Henrique
    Também sou desse tempo...bom demais....e tenho algumas ainda.....bem guardadas..
    Adilson Talon

    ResponderExcluir
  2. Está aproveitando bem a viagem, viva! Até através da memória!
    José Carlos Brandão

    ResponderExcluir