sexta-feira, 22 de maio de 2015

MEMÓRIA ORAL (180)


36 ANOS DE LABUTA E OS VIEIRA DEIXAM DE VENDER LIVROS – O SEBO DO VIERA, O MAIS VELHO EM FUNCIONAMENTO NA CIDADE ESTÁ FECHANDO SUAS PORTAS
Após 36 anos de plena atividade na cidade de Bauru, sempre no ramo de sebos literários, a família Vieira encerra em breve as atividades. JOÃO VIEIRA, nascido em 1937 e falecido três anos atrás, aos 75 anos, fez de tudo um pouco na sua vida, mas fixou-se a maior parte do tempo em algo pelo qual nutria não só gosto pessoal, mas entendia do riscado. Possuiu na cidade uma infinidade de bancas de revistas e sebos, sendo o atual Sebo do Vieira, talvez o mais antigo em funcionamento. A história desse e de todos os demais com sua chancela pessoal fazem parte de algo que não pode ser esquecido, muito menos menosprezado. Esse última, em vias de cerrar definitivamente suas portas, localizado ali na rua Ezequiel Ramos, coração financeiro da cidade, região da localização da maioria das agências bancárias, bem defronte a agência do Bradesco, resistiu até atingir um limite. Ou melhor, até quando teve forças MARIA ANGÉLICA VIEIRA, a filha mais velha desse senhor, com sua vida toda emaranhada com livros e revistas, tendo passado algo disso para ela.

Desde a morte do pai, por decisão pessoal, Angélica manteve as portas do sebo abertas, mas não comprou mais nada, só vai se desfazendo do estoque. “Estou no limite, há três meses tentando fechar. Preciso fazer isso. Estou aguardando alguém que possa ficar com esses livros. O proprietário do imóvel já até arrumou quem venha buscar, tudo para me ver longe daqui. Arrumou até quem vá alugar o ponto. Mas queria mesmo que tudo ficasse com alguém que entendesse desse comércio e que não abandonasse os livros por aí. Talvez um lugar que pegue e fique com eles para colocar junto do seu negócio”, conta essa senhora, cumprindo hoje um duplo horário de trabalho, pela manhã como servente na Escola Municipal Santa Maria e a tarde, das 13 às 17h com o sebo aberto. “Continuo aqui por não conseguir fazer outra coisa. Vou sentir falta, claro, provavelmente sim, mas não é mais coerente manter o sebo. É inconsequente eu continuar gastando, colocando dinheiro aqui. Isso hoje para mim não é mais um comércio. Existem aqui milhões de motivos para sair dinheiro e pouquíssimos para entrar”, desabafa.

A defasagem entre comprar algo novo e ir só abaixando o estoque, resulta no estado atual do negócio. “Não posso aceitar nem mais doação. Muitos passam aqui para doar e não posso pegar mais, pois o ciclo já se encerrou. Na maior parte do tempo, como pode ver, as pessoas entram aqui mais para comprar Zona Azul e é impossível sobreviver com isso”, diz. Nisso entra um senhor de terno procurando por livros com a temática messiânica. Ela não tem nenhum, mas inicia uma conversa com o provável cliente, por um simples motivo, o de ser também dessa religião, mesmo “afastada dos cultos”, como enfatiza. Foi o único atrás de livros e todos os outros em busca da tal folhinha do estacionamento e outro pedindo um trocado para comer. “Você viu, dei a ele um valor pequeno, mas com certeza, não havia tido de lucro aquilo ainda hoje”, explica. A loja reflete a decisão de sua proprietária, pois mesmo com todos os livros nas prateleiras, revistas catalogadas e separadas por títulos, DVDs e VHSs também devidamente separados, mas empoeirados, pois desde quando a decisão foi tomada, os cuidados com o acervo passaram a ser outros.

Nem sempre foi assim. Ela acompanhou boa parte da história de vida de seu pai e antes de me falar dos pontos comerciais onde ele atuou, conta algo de sua história pessoal. “Meu pai tem uma história de vida marcante. Foi abandonado pela mãe quando tinha três anos e resgatado pelo pai embaixo de uma árvore e todo cheio de formigas. Viveu com o pai até dos doze anos, dai esse o deixou com uma tia. Era seu único parente. A mãe morreu de tuberculose quando ele tinha dez anos e a última vez que teve notícias do pai foi dos tempos em que ainda namorava minha mãe. Não chegou a conhecer nenhum neto. Seu pai se chamava Pacífico Vieira e a mãe Carolina David Vieira. Criado pela tia fugiu certa feita também aos doze e por dois anos perambulou pela capital paulista. Acharam ele por lá e o trouxeram de volta. Por sorte existia aqui um pessoal que gostava muito dele e ele recebeu muita ajuda”, conta. A história dá um pequeno salto, mas continua em ritmo alucinante: “Ele se formou em contabilidade e seus primeiros empregos, pelo que sei, foram nessa área. Sei que por muito tempo morou sozinho em pensão e num hotel aqui no centro da cidade, em quartinhos apertados. Meu pai era bugre, filho de um índia de um vilarejo aqui perto, acho que em Avaí”, relata.

Pergunto sobre o interesse pelos sebos e daí tem início outra história, também empolgante. “São exatos 36 anos entre bancas de revistas e os sebos. Tudo começou com algumas bancas. Vou te enumerar assim de cabeça. A primeira na Agenor, em frente ao Hotel Cidade de Bauru, uma que existe até hoje. Depois uma na Rio Branco, esquina onde hoje tem o HSBC. Outra na Joaquim da Silva Martha e depois os sebos. Meu pai montava algo, a coisa crescia, daí ele saia para outra com mais espaço. Quando aumentava o estoque ele tinha que arrumar outro espaço maior e esse foi o ritmo de sua vida. Teve um sebo na Rodrigues Alves, vivia com bom movimento, mas teve que fechar por causa do caro aluguel. Depois foi para a Araújo, ali onde está a PM e o Paschoalotto. De lá montou um na Cussy Jr e outro na Quinze de Novembro, naquela famosa esquina que revendo fogos de artificio. Teve um bem pequeno na rua Presidente Kennedy, quase junto da feira, na beirada de um estacionamento de carros. Ali fica tudo entulhado. E depois aqui na Ezequiel. Só eu já fazem seis anos que estou aqui. SomandO tudo isso dá os tais 36 anos”, diz.

Em alguns momentos variou de comércio. “Teve também três bares. Um deles muito famoso e bem na frente do Fórum. Ali fazia churrasco para os advogados, depois mais um na rua São Lourenço esquina com Santa Rita e mais um algumas ruas acima. Foi pouco tempo, mas gostava mesmo era dos livros. Ele fuçava muito. Veja isso, quando meu pai casou ele fazia brilhantina para vender. Fazia e saia revendendo como mascate. Não conseguia ficar parado. Fazia as fórmulas e vendia, óleo de dendê, essas coisas”, me diz folheando um dos livros que não vende, pois era a fonte de consulta do pai, um livrão de capa verde, o Formulário Industrial. Segundo ela, após procurarmos a data da publicação me diz assim de bate pronto: “Tenha certeza, tem mais idade que eu”. Continua me contando as histórias do pai: “Ele começou a estudar essas coisas sozinho, tinha que se virar, pois a família crescia e eram muitas bocas para sustentar”.

Daí fala um pouco de sua família. A mãe, Leda Grossi Vieira faleceu fazem sete meses. São cinco os filhos, ela a mais velha, depois a Mara Lúcia que teve o final trágico que Bauru inteiro conhece, a Vera, outra irmã também falecida quando a mãe bateu com a barriga num ônibus e os dois irmãos, ambos vivos, o Júlio e o Zé Carlos. Conta um algo mais do pai e do seu amor pelos livros: “El não somente adquiria livros, mas lia eles todos. As pessoas vinham e ficavam horas conversando com ele. Qualquer assunto que a pessoa desenvolvia com ele seguia adiante, pois encontrava nele um bom diálogo. Nos seus negócios só mexia com livros e revistas, nada mais. Eu é que inventei de começar a querer vender também CD, DVD, essas coisas. Eu que fui pegar de trabalhar com isso. Já nesse ponto e trabalhando na escola inventei de comprar uma máquina de coco. Dizia a ele que não sabia movimentar o sebo do jeito dele e queria incrementar. O resultado não veio, não deu certo e a máquina está aqui até hoje, parada. Ele doente eu fui levando como podia”, continua seu relato.

Com a morte do pai e mais os três anos de persistência, Angélica vê que já passou da hora de fechar as portas. Está decidida e repete sempre algo nesse sentido: “Agora já ultrapassou os meus limites”. Isso é perceptível, mesmo sendo ela uma pessoa calma, tranquila e de bem com a vida. Em momento diz querer dar todo o estoque, noutro ainda espera algo novo, alguém que arremate tudo, mas sabe que não pode esperar mais. Seus dias por ali estão mais do que contados. Talvez mais alguns dias, talvez feche nesse final de semana, talvez persista até o final do mês, ou até mesmo mais algumas semana, mas disso não passará. Quando as portas desse sebo forem definitivamente abaixadas e o letreiro retirado estará se encerrando um ciclo onde reinou na cidade um tal de João Vieira, livreiro e jornaleiro, mascate e dono de sebos. Já entrou para a história de Bauru, mesmo que poucos saibam disso e registrem o feito, mas são quase quarenta anos envolvidos com sebos e revistarias. Penou, fez e aconteceu, suou a camisa e muitos livros revendidos por ele permanecem em estantes diversas espalhadas por essa Bauru. Com essa mais uma porta se fechando no segmento da venda de livros nas ruas da cidade, mesmo sem perceber, culturalmente nos empobrecemos um bocadinho mais.

3 comentários:

  1. É uma pena, Henrique. Digo isto porque sou um apreciador de livros e sempre gostei de procurar escritos mais antigos, relembrando a boa escrita que sempre me fascinou.

    As coisas boas vão desaparecendo, deixando sempre saudades!

    Abraço

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  2. comentários via facebook:

    Edison Cavalieri Um guerreiro. Conheci o João na decada de 60 foi inquilino do meu avô na rua R.G.Norte. Sobreu um grande golpe com o assassinato na filinha Mara Lúcia na rua Jose Ranieri, crime que até hoje foi misteriosamente encoberto. Não sabia do seu falecimento.
    Descurtir · Responder · 1 · 22 de maio às 19:20

    Gonçalez Leandro Sempre passo nesse sebo , não sabia que era da família o caso da menina Mara Lúcia já tinha ouvido falar desse crime .
    Curtir · Responder · 1 · 22 de maio às 20:12 · Editado

    Henrique Perazzi de Aquino Eles detestam tocar nesse assunto, triste para todos eles. Angélica aceitou que escrevesse por ser um texto sobre a história do pai, alguém que conheci e vivenciei longos papos pelos tantos sebos que já teve na cidade.
    Curtir · Responder · 2 · 22 de maio às 20:17

    Helena Aquino Triste isso heim .... Eu trabalhei com o José Carlos na Caixa Econômica .... tbém não gostava de falar na morte de Mara Lúcia ... eles ñ se recuperaram dessa morte ...
    Curtir · Responder · 22 de maio às 20:38

    Henrique Perazzi de Aquino Triste também o fechamento de mais um ponto de venda de livros da cidade, João Vieira soube tocar os seus enquanto viveu.
    Curtir · Responder · 3 · 22 de maio às 20:39

    Manoel Carlos Rubira Linda história, Henrique. Conheci o seu João Vieira e há muitos anos vendi um lote de livros para ele. Muito correto e grande figura.
    Curtir · Responder · 1 · 22 de maio às 21:35

    Henrique Cézar Tiago Pátaro Pavini Mauricio Daniel Paulo Palma Beraldo
    Curtir · Responder · 3 · 22 de maio às 22:55

    Sergio Piga Todas as crianças daquela época(inclusive eu), ficaram com medo do tarado e, passou-se a andar todos juntos para ir na escola......
    Curtir · Responder · 1 · 22 de maio às 23:53

    Eliza Carulo que pena
    Curtir · Responder · 1 · 23 de maio às 00:20

    Andrea Guerra Puxa vida! Que pena...
    Curtir · Responder · 24 de maio às 17:09

    Tiago Pátaro Pavini Uma grande pena mesmo meu amigo.... recentemente, fizemos um documentário a respeito dos sebos de Bauru, se interessar:

    https://www.youtube.com/watch?v=ye1tNvjHPEQ

    Estantes e Memórias
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    Estantes e Memórias
    Estantes e Memórias - documentário que retrata o dia a dia dos sebos de Bauru, suas...
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    Curtir · Responder · Remover visualização · 25 de maio às 14:20

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  3. Não sei bem o que dizer sobre o passado. Gostaria de ter conhecido cada um dos familiares da pequena Mara Lúcia Vieira. Inclusive ela. Desejo paz para todos eles. Feliz Natal.

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