domingo, 29 de novembro de 2015
UM LUGAR POR AÍ (74)
O ARMAZÉM INTERIORIZA A VIDA DO PAULÃO E DA VALÉRIA – 35 ANOS DA MAIS BOA, HARMONIOSA E NECESSÁRIA CONVIVÊNCIA
Histórias quando ouvidas, relatos quando feitos tem que ser transcritos para o papel com a devida rapidez. Guardados na memória eles correm o risco de irem se diluindo como poeira e depois, quando no momento de serem relembrados, bem lá na frente, talvez a ocorrência da perda de trechos significativos. Seguindo essa premissa conto algo ocorrido ontem, 27/11, sábado à noite, portanto, bem fresco em minha memória. O Armazém Bar, reduto pioneiro de rock, encravado no centro bauruense, ali ao lado da praça parteira Bernardina, juntinho da Pedro de Toledo, resiste ao tempo e completa 35 de quase ininterruptos anos (com breves reformistas paralisações). Na frente da casa dois bons e salutares dinossauros (no que de mais bonito o termo possa exemplificar) da vida cotidiana bauruense, Paulo Roberto Penatti e Valéria de Carvalho Costa. Ele, considerado por algum tempo como um predador, ao estilo Tyrannosaurus rex. Hoje, mais dinossauro que nunca, é mais comedido (cada vez mais perto dos 70 anos), até cordato e conciliador , talvez um herbívero (pero no mucho). Ela, algo sui generis só de bater os olhos e constatar que ainda existem pessoas com a carinha do saudoso Woodstock e se alguém mantém essa fisionomia, ela é sem dúvidas, a que melhor dignifica e representa isso. Ao olhar para ela, sempre me bate aquilo de constatar comparando com minha situação: por que não fiz o mesmo? Se ela conseguiu, eu também poderia, se ao menos ousasse ter tentado. São duas pessoas que se completam, integram e se materializam em algo meio que surreal nesses tempos atuais, a impossibilidade de abalos sísmicos numa relação de mais de 35 anos de plena convivência.
Ir ao Armazém e não bater sequer um papo com os dois é o mesmo que ir à Roma e não ver o papa. Nem consigo imaginar a cena. Imaginem os senhores (as), um sujeito, como ontem eu vi acontecer, que fica trinta anos sem voltar ao bar e sabendo que lá estarão os dois, chegando lá e não os encontrando ou pior que isso, indo lá e não parando para conversar com os dois. É o mesmo que não ir. Não deve existir coisa mais frustrante que isso. O de ontem, infelizmente não peguei seu nome, mas pesquei assim de soslaio surrupiando algo da conversa alheia, ter ele deixado Bauru nos anos 80 e se bandeado rumo ao mundo. Rodou um bocado, primeiro São Paulo e depois o velho continente. Nessa volta, quis rever um dos únicos lugares de Bauru do seu tempo e que continua intacto. Deve ter sentido a mesma sensação que a minha, que já fazia bem uns dez anos que lá não adentrava para bebericagens e conversações internas. Tudo está intacto. Nem museu consegue hoje em dia a proeza de manter tudo sem alterações, mas lá nessa casa do centro da cidade sim e Paulão diz, ser ele nesse ponto conservador, pois não pretende mudar nada além do já feito. Comentamos até do lanches Papa Tutti, que por uns trinta anos esteva ali na praça do Líbano e hoje aportou nos Altos da Cidade. O glamour dos saudosistas de antanho está irremediavelmente perdido. No Armazém, tenham certeza, essa possibilidade inexiste. Lá tudo continuará como dantes e no mesmíssimo lugar. Se até os vizinhos já foram apaziguados, por que serem abduzidos para outras paragens?
Conversar trivialidades com ambos já é um luxo, mas fazê-lo na porta do bar, bote ampliação nisso. Como a casa começa sempre com sua música ao vivo sempre por volta da 1h da manhã, pelo que vi, eles sempre estão mais a disposição lá entre 23h30 até 0h30, circulando e dando os últimos retoques em tudo, cada um sabendo muito bem o que faz por ali. Paulão não sai da calçada, primeiro porque fuma e não existe espaço interno autorizado para fumantes, mesmo com o jardim interno todo aberto para o céu, hoje um objeto sem a devida importância do passado dentro da estrutura do bar. Se ali não é permitido fumar ficou ocioso e daí, vejo que o casal sabidamente criou espaço com cones e cerca de fitas, área reservada para fumantes e bate papo ao ar livre na calçada. O jardim interno perdeu seu charme devido a isso. Se pudessem abrigar os fumantes estaria bombando. Interessante observar o intenso trabalho do Nilsão e outro na portaria externa, cuidando de tudo do lado de fora, olhos de lince e aquele tratamento que quem só é da casa ou entende os meandros da noite irão entender. Os funcionários são todos velhos abnegados, integrados ao estilo do ambiente e mais que amigos. Enfim, o reduto do rock preserva o que de melhor poderia fazê-lo, um estilo de vida, modo de ser meio que perdido nos tempos atuais, mas muito necessário, nem que seja em visitas esporádicas, para ainda ocorrer a tal da certificação de que o oásis pode e deve continuar existindo no meio do árido deserto. Enquanto esse casal tiver forças para tocar o barco adiante, a casa vai viver e bem. E o oásis vicejante.
O melhor da casa não é nem o rock, que continua vigorando no lugar como mantra, oferecido no cardápio do estabelecimento. O lugar é o rock, naquilo que todos um dia ao menos esbarraram, alguns caíram de boca e estão nele até hoje. O palco do Armazém é eclético e abriga também outros ritmos, todos muito próximos do rock, como o blues, algo de jazz com pegada e até folk. Ontem vi e ouvi na voz do Acústicos & Calibrados uma velha canção do Ultraje, o Independente Futebol Clube e a segui inteira do começo ao fim (pudera, a letra tem no máximo cinco ou seis linhas). Pois bem, tudo continua como dantes, a cor preta predominando nas mesas e cadeiras, o mesmo balcão com aquela madeira rústica que nem 35 anos de cotovelos variados e múltiplos ousaram detonar (deve ser aroeira pura), o palco no mesmo lugar e um sistema de som e ar impecáveis, adequados ao longo do tempo e perfeito, controlados todos do mesmo ponto, do lado da caixa, numa instalação que os dois sabem manusear muito bem e o fazem a noite toda, num leve tocar de dedos. Adorei os banquinhos feitos com velhos latões de leite (roqueiro bebe leite?). Eles dão liberdade e pedem que não invadam a deles, ou seja, para dentro do perímetro do balcão, ninguém pode ousar adentrar, sendo rico ou pobre, amigo ou mesmo chapa. Cada um no seu quadrado, em algo entendido por todos. Ultrapassar alguns limites por lá, com certeza terá o devido puxão de orelhas do casal, sempre com aquele jeitão de quem sabe resolver as coisas, por mais conturbadas que seja, quase sempre na maciota. A bebedeira é tratada com a experiência de 35 anos de muita convivência. Experiência, é claro, conta muito.
Os dois, o casal que não é um casal, mas não deixa de ser um casal de comerciantes é o melhor do lugar. Nem imagino como farão para promover a transição, algo ainda pouco pensado pelos dois, mas que um dia vai ocorrer e será a maior dor de cabeça de ambos. É isso, falei da casa, da alegria de rever tudo e constatar in loco a sapiência deles, sabendo fazer com que, tudo não só sobrevivesse, mas continuasse tendo aquela áurea muito além da nostalgia. A casa pulsa não só pelos inveterados amantes do velho e bom rock de ontem, mas também muito pelos de hoje, essa geração que é filho dos primeiros frequentadores do lugar. Impossível ir lá e não parar para comentar sobre esses dois. Eles possuem um jeito gostoso demais de receber as pessoas. Sabe aquele lugar que você vai e pergunta para o dono, como vão as coisas e o cara desata a falar dos problemas do mundo, que tudo anda parado, coisa e tal. Uma merda. Eu vou num bar também para desopilar minhas insatisfações, por os bofes pra fora, mas principalmente para dar e receber alegria e quando o dono do lugar já te recebe cheio de pessimismo, sinal de que a noite não vai ser boa. Com o Paulão isso não existe. O papo dele e também da Valéria te botam lá em cima, sobem teu astral e ao te introduzirem na casa, o teu espírito já se elevou, pois a conversa deles é sempre para cima, elevatória. Isso é também outro ponto mais que positivo do lugar.
Agora escrevinho algo deles. Um tem a cara do outro. Pudera, diriam, são mais de 35 anos de plena convivência. A maioria não entende muito bem isso dos dois não estarem juntos, mas se darem tão bem no quadrilátero do bar. A explicação vem da boca dele: “Somos uma família”. Sim, mas uma família não aos moldes do convencionalmente implantado no seio da sociedade vigente. Foram marido e mulher por longo tempo, hoje não mais, mas para qualquer um, os que conhecem ou não a relação de ambos, meio que impossível alguém se aproximar de um ou de outro com segundas intenções, estando o outro ali ao lado. Alguém consegue imaginar a Valéria namorando alguém por ali que não seja o Paulão? E vice versa. Isso deve ser um problemão para os dois. Eles se entendem e muito bem, isso o que vale e vale muito, pois num mundo onde as relações se encerram e daí o começo do tendel, não existe coisa melhor do que a observação feita por ele: “Sou amigo de todas as minhas ex”. Entramos num outro ponto, também inusitado e que ambos, mesmo não consentindo vão permitir que comente aqui. Não tem nada demais, mas provam o quanto o mundo precisa evoluir em certas coisas, algo já feito pelos dois. O patamar deles está degraus acima da dita normalidade do aceito.
Conto o causo real. No início do Armazém tinha mais uma pessoa, outra mulher, Paulão e ela juntos. Depois de certo tempo ela foi-se para a Holanda, Amsterdam e não mais voltou. Relação desfeita, o Armazém continua. Ele e Valéria se integram e depois se separam como casal, mas não como sócios. O tal da família, lindo de ver e entender. A última viagem de ambos, juntos como dois bons sócios foi rever Amsterdam. Ficaram todos abrigados em lugar seguro por lá, na casa da antiga bauruense. Sem nenhum tipo de problemas. “Não a via fazia 30 anos”, conta Paulão. Todos amigos e convivendo maravilhosamente bem dentro desse mundo onde algo assim ainda assusta a alguns, mas deveria ser o mais trivial. Conviver é isso. E conto isso não só pela história, que nos seus detalhes deve ter muito mais riqueza do que esse simplificado relato, mas pelo significado do todo no entendimento do que venha a ser essa verdadeira República Independente de Bauru, de São Paulo, do Brasil e do mundo, que é o Armazém Bar. Ali vigora algo mais significativo do que o vigente no mundo do lado de fora. Na experiência vivida pelos dois sócios, não só a certeza disso, mas algo que nos faz buscar lá no fundo uma coisa mais do que perdida nesses obtusos tempos: o entendimento humano. Nisso o Armazém e seu pessoal dá um verdadeiro banho em todos nós. Impossível, para qualquer um ainda com resquícios de lucidez, no mínimo não admirar esses dois. Essa minha modesta homenagem aos 35 anos desse sacrossanto lugar, revisitado ontem por mim e Ana Bia. No Dia Nacional do Samba eu que amo o sambo, escrevo um bocadinho só de rock e de dois magistrais personagens ligados a ele.
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