quinta-feira, 17 de novembro de 2016

MEMÓRIA ORAL (204)


HISTÓRIAS DE UM LIVREIRO DE RUA - NA CIDADE DO FLIP, DANIEL VENDE LIVROS NUMA KOMBI E NA MAIS MOVIMENTADA RUA DO COMÉRCIO DE PARATY
Em cada cidade que aporto, sempre uma novidade alvissareira além de tudo existente de turístico. Paraty é mesmo um lugar diferenciado. Estamos ainda com aquela sensação de estarmos no Pelourinho sem ladeira, tal a quantidade de pedras pelas ruas do Centro Histórico. Andar por ali é desbravar algo de um remoto passado triste e cruel. A escravidão brasileira foi insana e maltratou demais da conta todos os subalternos, principalmente os escravos. Na cidade, marcados nas pedras algo disso e de uma forma bem evidente, onde só não enxerga quem não quer mesmo enxergar das crueldades desse país. Vivemos isso hoje, pois estamos no meio de um salafra de um golpe e parte do Brasil aplaude e pede bis, sem notar o baú de maldades despejado sobre nossos lombos. Muitos passeiam por lugares como Paraty curtem o turismo, os passeios e nem notam nada do que aqui se passou. Eu noto.

E noto mais. Procuro lugares e pessoas interessantes, carregadas de boas histórias e com elas tenho por norma repassar algo diferenciado observado por mim. As ruas estreitas falam por si, alguns dos seus personagens idem, como os indígenas vendendo artesanato nas ruas e um Quilombo nas cercanias da cidade (impossível ir embora sem deixar de conhecer o Quilombo do Campinho). Subi e desci algumas ruas e, principalmente suas vielas e numa delas, uma das principais da cidade, a Roberto da Silveira uma perua Kombi toda grafitada e estacionada meio que definitivo no meio de uma movimentada quadra. Na sua lateral em spray garrafal, “Sebo Cultural Paraty” e livros por todos seus poros, internos e externos. Duas portas laterais permanecem abertas o tempo todo e no interior algumas prateleiras, todas recheadas de livros e mais livros. Olho em sua parte frontal, a do banco do motorista e o espaço está também abarrotado de livros, ali alguém em especial, Machado de Assis.

Sou magnetizado por lugares assim. Parto, olho, assunto, quero conhecer quem é o idealizador de tamanha proeza e puxo logo conversa. Daniel Jesus Lima, 55 anos é paulista do interior de São Paulo e aportou por aqui há uns 22 anos. Por necessidade trabalhou como garçom e até aprendeu ofícios diferenciados em uma padaria, já no sebo, ele mesmo me diz com uma baita de um sorriso na cara: “Isso aqui não faço por necessidade e sim, por puro prazer. Aqui não fico rico, faço o que gosto e ganho a vida da melhor forma possível. Recebo doações de livros vindas de todos os cantos, seleciono tudo e trago aqui para a rua, tudo barato. Estou nesse ponto já faz dez anos e nos 22 de Paraty já estou no sexto neto”.

Hoje, além da Kombi ele conseguiu um espaço a mais, temporário, mas alvissareiro para seu negócio. Uma loja bem em frente à Kombi fechou as portas e nela uma linda marquise. Numa conversa com o proprietário (todos o conhecem e o cumprimentam ao passar pela rua), ele permitiu ele “ocupar” (a palavra do momento) o espaço e abarrotou ali também com muitos livros. Ganhou mais espaço e quando o conheci, ali estava selecionando livros por temas, todos espalhados no chão debaixo da tal marquise. Pergunto a ele sobre a existência de outras livrarias na cidade e ele me explica: “Tem duas no Centro Histórico, essas com obras novas, lançamentos e o meu é o único sebo, dez anos de sarjeta e com certa parceria com a Prefeitura, o pessoal da Cultura da cidade. Eles liberam para eu trabalhar aqui dessa forma livre, leve e solta e ajudo a repassar Cultura para as pessoas. Dessa forma, acabei virando uma referência na cidade, figurinha conhecida por todos”.

Isso que diz é a mais pura verdade, pois difícil alguém da cidade não passar por ali perguntar algo ou simplesmente parar para o cumprimento. Uma senhora veio procurar livros infantis para seu neto e ficou escolhendo numa pilha, enquanto outra preocupada com o sumiço do seu marido, deixa com ele um recado: “Se ele passar por aqui, avise que estou a sua espera.”. Ele ri e sabe que isso de ter se tornado alguém conhecido tem muitas vantagens e também alguns contratempos. Daniel é a calma em pessoa e resolve tudo, ou ao menos tenta, com uma fleuma conseguida após anos fazendo algo dentro de sua concepção de vida. “Quer coisa melhor do que trabalhar com livros e também com pessoas. Vendo livros e converso com pessoas”, me explica sobre seus métodos de trabalho.

Falamos muito de livros, da cidade e de suas viagens, mas num certo momento, interrompe a conversa e diz não poder sair dali sem saber da história da Kombi. “Quando cansei de trabalhar para os outros, pensei muito no que fazer e achei que a solução poderia ser uma banca, dessas de jornal e nela revender livros. Não achei nenhuma dentro do que podia pagar e foi aí que pensei numa Kombi. A procura por uma ideal demorou três anos e essa aqui estava abandonada num terreno e ia ser fatiada com suas peças vendidas num ferro velho. Cheguei antes e dei meu jeito de ficar com ela. Consegui as grafites com amigos e conquistei esse lugar, onde hoje me encontro, feliz da vida e tocando minha vida”, seu relato.

Ao me descobrir bauruense, me olha de soslaio e diz: “Já morei em sua cidade, vivi em Lins e depois algum tempo em Bauru, lá pelos lados do Jardim Pagani. Conheço muito Bauru, gosto dela, namorei muito por lá, histórias inesquecíveis de vida, mas queria mais estrada e acabei parando por aqui, Paraty. Por aqui vi meus filhos crescerem e esse monte de netos. Para escapulir novamente pelas estradas da vida tenho que pensar muito bem e, por enquanto, tudo caminha muito bem”. Diz isso e vai atender uma cliente e amiga, que procura por um título e aproveita para saber das novidades da rua. O livro ele não tem, oferece outros e sobre a conversa, vejo que flui maravilhosamente, pois é prolongada como todas as outras que vi nascendo ali diante da tal Kombi.

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