sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

CHARGE ESCOLHIDA A DEDO (127)


SALA DE ESPERA DE HOSPITAIS


Sala de espera é lugar apropriado para ouvir conversas alheias, conhecer gente nova e também expor ideias. Convivo com uma aqui na estada paulistana. Infelizmente, num lugar onde se reúnem pessoas no entorno de seus entes queridos, todos aguardando melhoras desses numa UTI de hospital. O horário de visita se dá duas vezes ao dia, perto do almoço e depois do jantar. Dia após dia as mesmas pessoas, algumas sendo renovadas e outras sumindo. Quando alguém some, um ponto de interrogação para todos: ou o parente teve alta ou nos deixou. Tanto pode ser motivo para alegria ou tristeza. E assim caminhamos. Aos poucos você vai percebendo as afinidades e quando as constata, uma alegria, alguém mais para desabafar sem aquele receio de ser mal interpretado ou até mesmo agredido. Conheci duas semanas atrás um senhor cuja esposa segue há 90 dias de hospital (minha sogra completou 60 dias), magro, retinto, grisalho, aposentado da Receita Federal, todo dia ali nos dois horários, sempre pronto a renovar palavras de encorajamento. Dias atrás o descobri de esquerda, assim como eu. Dei a ele de presente um dos bottons que faço, com o lema “Fora Golpistas!” e o vomitaço do Fradim, personagem do Henfil. Ele sorriu e emendamos mais uma conversa, sempre anterior à visita, servindo até para espairecer e amenizar o que virá pela frente. Na pauta daquele dia, política e religião, essa perdição onde o país está atolado até o pescoço, beco quase sem saída. Puxei a conversa. Eis o bate bola:


- Permaneci por algumas semanas com minha sogra no hospital como acompanhante, ela com 82 anos, religião Batista e eu ateu, depois de ter um dia sido católico. Ela me leu a bíblia, as tais frases de Salomão e íamos discutindo sobre esses vendilhões de hoje, todos mais preocupados com o dinheiro do que com a fé.

- Sim, eu também sou descrente, pois não dá para acreditar em alguém professando a religião, diz ter estudado a bíblia e defendendo o dinheiro acima de todas as coisas. Ou o cara não leu ou é muito mal intencionado, pois lá existe algo bem fundamentado exatamente contra quem faz uso desmedido da usura e da ganância.

- Vimos na TV, numa manhã de domingo, o cara vendendo pentes e copos de água abençoados por R$ 100 reais. Eu perguntava a ela, como pode alguém cair nessa e que nunca me veria em algo assim. Ela disse sempre ter estado num segmento bem centrado, muito longe disso tudo e brincava comigo, me dizendo ser cristão, sem o saber.

- Imagina se ela tivesse visto essa última do Edir Macedo lá da Universal e das crianças surrupiadas das famílias, um crime que passa incólume pela Justiça brasileira, todos fingindo nada saber, mas com tudo escancarado.

- Ela certa vez foi a Bauru e foi ouvir a fala de um pastor de lá, mas saiu horrorizada, pois viu ser ele criacionista. Fez uma fala menosprezando totalmente a ciência. Preferiu continuar ouvindo os cultos da sua igreja pela internet, pastor carioca, boa cabeça, longe de entrar nessa de cair de pau em Newton. Ela cita sempre o papa atual como exemplo, declaradamente dizendo certas passagens da bíblia serem metáforas e nem tudo deve ser levado ao pé da letra.

- Conversar com pessoas assim é uma raridade hoje em dia. O papa hoje, pelo que percebo, está anos luz à frente, inclusive do seu rebanho brasileiro. Mas me diga, você me disse ter ela te chamado de cristão.

- Sim, me chamou e retruquei. Falava de gente como eu, descontente com as injustiças deste mundo, as desigualdades, pregando a justa distribuição de renda, direitos iguais para todos, defendendo os menos favorecidos, os trabalhadores e dizia ser isso exatamente o papel de Cristo na Terra. Daí, concluía afirmando que todos os comunistas professavam a mesma luta que os verdadeiros cristãos. E me dizia ser um quase cristão. Ríamos e lhe dizia para pensar ao contrário, sendo ela uma quase socialista.

- Lindo isso, não? Quantos pensam igual a ela? Na verdade, essa semelhança é bem nítida, está na cara, mas hoje desvirtuam tudo, as pessoas são desaproximadas, quando temos tudo para estamos todos no mesmo barco, mesma luta.

- Então, essa é minha sogra, uma que estarei sempre ao seu lado, para o que der e vier.

Nisso somos chamados e adentro para mais uma visita, a mais socialista das cristãs lá naqueles leitos. Ele me pisca os olhos, em sinal de aprovação e de que, amanhã, no horário de visita, mesma sala de espera, a possibilidade de continuidade da conversa ora iniciada.

OBS.: As ilustrações foram gileteadas do belo traço de Teresa Ruivo, do link a seguir:
https://teresaruivo.blogspot.com.br/2015/02/

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