quinta-feira, 2 de agosto de 2018

RELATOS PORTENHOS (54)


NÃO CONSIGO PRATICAR O TURISMO INDIFERENTE

Cá estou eu novamente a contar algo sobre o que vejo aqui por Buenos Aires. Nas calles, muita gente deitada em colchões debaixo de marquises. Aso olhar para a fisionomia desses, aquele cruzamento de olhar para os que ainda se dignam o ao menos dispor de vê-los, além da dor, algo mais doloroso. Mais do que perceptível na sua maioria estarem ali nas ruas há bem pouco tempo. São novatos nas ruas, ou seja, jogados para essa situação recentemente. Não que os que ali vivem há mais tempo causem menos dor. Sinto a mesma dor ao ver tanto um com traços de antigo morador das ruas, como nesses recentes, mas é que por aqui, o crescimento dos recentes é gritante. Espalham principalmente colchões para debaixo das marquises e ali tentam manter a dignidade. Ao lado, em malas e sacos o que conseguiram trazer junto de si, como roupas, principalmente cobertas, pois o inverno por aqui é por demais rigoroso. Com o desgoverno de Maurício Macri, a insensibilidade neoliberal é elevada ao seu mais elevado grau. A bestialidade de se curvar aos ditames do FMI, virando as costas para o seu povo. E ainda chamando o Exército para literalmente bater no povo quando esse quiser reclamar de algo. Esse o triste cenário que vejo na Argentina hoje.

Mesmo com esse cenário, a cidade ainda pulsa fortemente no seu lado turístico. Eu mesmo cá estou por causa de um Congresso Acadêmico e no meio deles pouco vejo sobre esse lado argentino. A maioria come, bebe, ri, gasta e dentre os comentários ouvidos por todos os lados, algo sobre o “câmbio”, a troca de dólar e real. Troquei dólar a 27 pesos e todos o fizeram próximos disso. Não fiquei questionando meus colegas sobre o que víamos nas ruas, mas de nenhum deles ouvi algo sobre isso. Nada a questionar sobre isso, mas de minha parte tenho algo a dizer das viagens que faço. Não consigo me manter indiferente ao que ocorre com o lugar onde me encontro. Sempre isso me interessou e muito. A Argentina, mais do que nunca um lugar onde aprendi a gostar, algo mais me toca fundo. São quase uma dezena de anos, voltando sempre em julho, acompanhando Ana Bia e ruando por todos os cantos. Juntei conhecidos e amigos. Com esses comento e conhecendo mais detalhes, cresce o interesse e a vontade de opinar. Mesmo vindo para atividade acadêmica, faço turismo, mas pulso e muito pelo que vejo. Isso me move.
Não conseguiria viver de outra forma e jeito.

Compro o jornal local, no caso o diário Página 12. Ouço a rádio nos intervalos possíveis, no caso a 750 AM. Junto o que leio e ouço com o que vejo nas ruas e construo minha opinião. Aproveito o turismo para ampliar meus conhecimentos sobre o que de fato se passa com a Argentina desses cruéis e insanos tempos de Macri no poder. Sou daqueles que não consegue ser completamente feliz, esteja onde estiver, principalmente num restaurante ou tomar um bom vinho, quando sei que do lado de fora, passando ali pela calçada uma parcela significativa da população tem muita dificuldade para simplesmente comer algo regularmente. Na principal feira de artesanato nas ruas da capital argentina, além de toda movimentação turística, fico logo a pensar nas dificuldades daquele vendedor de rua, com algo de tão pequeno valor de comércio, ele tão fragilizado e ali, diante do frio e de suas necessidades. Enquanto rimos de tudo, felicidade pelo passeio matinal, ele lá vendendo algo e tendo a necessidade de levar algo no final do dia para os seus. Conseguirá a contento? Penso mais nisso do que no próprio passeio.

Como dar risada entre iguais a mim passando praticamente por cima dessa população sofrendo as barbaridades da insanidade de um governo que não pensa e não age para modificar esse estado de coisas. E não é somente isso. Viajar para mim sempre foi isso. Não levo em consideração conversas sobre vinhos refinados, o corte de carnes mais adequado, o que se passa no saguão dos grandes teatros e nem um mero olhar sobre a crueldade das ruas. Aliás, me incomoda esses temas. Não tenho vontade nenhuma em me aprofundar nessas trivialidades, mas também não cravo a estaca em quem o faço somente sobre esses temas e nunca sobre o que os olhos de todos enxergam das ruas. Cada um pensa e age conforme sua formação. Talvez por causa disto tenha feito História e me sinto feliz pela escolha de Humanas. Ela me acompanhará até o final do meus dias. Meus escritos todos tem a vertente disso a pulsar dentro de mim. As ruas me movem, tanto as de minha aldeia bauruense, como as de qualquer outro lugar por onde tenha a possibilidade de estar. Por esses dias Buenos Aires me move e espero não cansá-los com relatos bem diferentes de um mero roteiro turístico.

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