terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

MEMÓRIA ORAL (236)

TOUR ALTERNATIVA POR BERLIM
O ponto de encontro para o que a empresa Newberlin oferece como aperitivo para os tristas conhecerem a pé a capital alemão é denominado de Free Tour. Um passeio com guia independente por duas horas e meia no período das manhãs, com datas previamente agendadas quando necessário um guia em espanhol. O ponto de encontro é sempre o mesmo, a Porta de Brandemburgo, na Praça Pariser e ali, os interessados após pagarem taxa de reserva são divididos em pequenos grupos e daí partem para o passeio pelas ruas, praças, monumentos da cidade, com paradas obrigatórias e aulas ao modo e jeito dos guias.

Eu e Ana estivemos num desses grupos pela manhã e caíamos por sorte no sob a coordenação de Pablo Gutierrez, economista, guia e ator, espanhol de Cadiz e morando em Berlim desde 2012. Alto, magro, barbudo e jeitão malemolente, bem desenvolto e criativo, um estudioso do que faz. A escolha pelo acompanhamento em espanhol, deve-se ao fato de nem eu, nem Ana Bia falarmos nada de alemão e com a alternativa de algo numa língua com entendimento para mim, que pouco sei de inglês, o aproveitamento seria dos melhores. Logo na apresentação uma explicação de sua parte: "Para entender bem essa cidade, se faz necessário entender um pouco de sua história e me proponho a isso antes de sairmos pelas ruas". Mais do que agradável, perfeito para nosso caso, com cinco dias na cidade e logo no primeiro, tendo a oportunidade de conhecer seus principais lugares sem estar perdido ou vasculhando mapas parado nas esquinas.

A tour começa exatamente às 10h. Saímos em 27 pessoas e logo na saída, na primeira parada a aula sobre a história de Berlim, entre risos. "Vou contar tudo para vocês, essa milenar história, em menos de dez minutos". Com a atenção redobrada, todos rimos muito e entramos no clima. Outra sorte foi ter pego um guia anticapitalista, porém humanista e interessado em contar a história e apresentá-la ao grupo não pela visão dos vencedores, mas dos vencidos. Algumas passagens básicas, como o monumento com mais de duas mil bases de concreto, representando os mortos, por aqui nunca esquecidos. A história do arquiteto que quase desistiu de levar o projeto adiante por causa dos patrocinadores terem contribuído com o regime nazista, mas foi convencido por um problema dentário e a descoberta que, os produtos usados na recuperação de sua arcada dentária também são provenientes de empresa prestadora de ajuda. Capitulou e tocou a obra. Ou seja, em cada canto uma informação que dificilmente se teria pelas vias normais.

Na sequência uma parada num local onde hoje é um estacionamento e a informação de que ali estava localizado o bunker do kaiser. "Nada foi mantido, para não não causar peregrinação e hoje conjuntos habitacionais ao redor e esse estacionamento que não quer dizer nada". A imaginação flui e perpassa o tempo. Uma parada num bar tradicional, com comida alemã em pequenas porções para serem provadas. Na virada da esquina um dos prédios que restaram em pé, uma imensa edificação com a documentação do regime nazista, todos restaurado, sendo mantidas perfurações de bala nas paredes, provenientes das rajadas de metralhadoras quando da destruição da cidade. Passando diante de uma exposição com carros antigos, um construído por uma fábrica na Alemanha Oriental. "Esse carro custava aproximadamente o equivalente a 45 dólares, mas a fila de espera era de um ano e meio para se conseguir o carro, que depois durava uma vida toda. Hoje, se você atravessar a cidade uma única vez de táxi, de ponta a ponta seu gasto pode ser superior ao valor vendido pelo regime comunista", explica. 

No cruzamento de uma avenida hoje suntuosa, enormes fotos do momento da rendição alemã e todos os líderes que possibilitaram a inusitada união para por fim à guerra, porém, o fato marcante segundo ele e a bem representar a Guerra Fria foi o momento em que tropas russas e norte-americanas estavam paradas no centro da cidade, Alemanha rendida, porém tanques apontados de um lado a outro e se ocorresse um mero disparo acidental, estaria ali declarada a Terceira Guerra Mundial. Ele assim prossegue a manhã inteira com informações de "cocheira", esses pequenos detalhes que valem tanto quanto tudo o que aprendemos até então sobre o conflito da Segunda Guerra e da história alemã. Passamos em mais monumentos e na porta de vários museus, sendo encerrado por volta das 13h. 

Eu e Ana nem bem nos dispersamos de um passeio e resolvemos aproveitar o dia com a continuidade desse tour, agora um pago, doze euros cada, tudo começando às 14h, no mesmo ponto da partida do anterior, só que com um roteiro dos mais interessantes, o denominado Tour Alternativo. Existiam outros, mas conhecer o Lado B, o que não está nos guias para turistas é algo que chama não só a atenção, desperta a curiosidade, como te faz querer desbravar o que vem a ser isso. E fomos por causa do Pablo, o mesmo guia da manhã ser o desbravador da tarde, o que se propõe a nos mostrar, dessa vez para doze pessoas, dos motivos de Berlim ter conseguido o status de cidade alternativa e cosmopolita, após a queda do muro e conseguir manter uma liberdade para seus habitantes. 

Pablo nos faz pegar o metrô, descemos todos duas estações seguinte e adentramos o bairro judeu e logo na descida, algo bem marcante cidade afora, o grafite, espalhado cidade afora. "Berlim pode ser considerada a capital mundial do grafite", nos diz. São muitos, significativos e espalhados por todos os lados. Um bem grandão, o de um astronauta é obra de um artista palestino, Victora, hoje vivendo em Copenhague. No outro lado da rua, outra explicação e nos mostra alguns grafites patrocinados, ou seja, os trabalhos chegaram a um nível onde empresas já bancam esses trabalhos. Mesclado aos grafites, algo chama a atenção por toda cidade, a quantidade de lugares ocupados, prédios imensos e servindo para manifestações culturais. "Não se espantem, isso não é comunismo e sim, algo que a lei aqui garante. Todo e qualquer edificação permanecendo dez anos abandonado, pode ser legalmente ocupado", diz. Um discurso em cada esquina, uma história nova e da forma mais sem convenções possível. 

Ao passar pela imensa floricultura, diz que certa feita interpelou o seu proprietário dos motivos dela nunca fechar e vender mais à noite que de dia. Sua resposta é das melhores: "Ele me disse, primeiro isso de montar e desmontar esse aparato todo e todo dia é muito desgastante, depois vendo muito à noite para dois tipos de gente, o borracho, aquele que bebe e depois quer presentear a esposa que o espera em casa e o arrependido, o que sabe terá problemas quando chegar aquela hora da noite, daí compra flores para tentar amenizar sua situação". Explica as várias manifestações nas paredes, o número "6" grifado por um senhor de certa idade, quando faz críticas para certas manifestações nas ruas e ninguém tem coragem de apagar. A banana estilizada, obra de outro artista, tornando-se referência e deitando fama em quem a possui defronte seu estabelecimento, pois seu autor, famoso crítico de arte o faz somente para as galerias onde gosta do trabalho ali contido. Tem vários outros que se manifestam desta forma, espalhando avaliações para boa parte do que está registrado nas ruas. Daí me pergunto, como iria saber disto tudo, sem Pablo nos informar?

Paramos nas entradas de várias ocupações e em cada uma delas a explicação dos motivos de sua existência, o trabalho ali realizado, os anos com o novo funcionamento e também das tentativas capitalistas de reverter a situação com polpudos indenizações. A maioria não consegue sucesso e Berlim segue com outro título, a de cidade com o maior número de ocupações no planeta, tudo feito sob os auspícios da legislação vigente. "Isso tudo faz parte do Patrimônio história desta cidade, algo conquistado com muito suor e disposição de resistir e propor algo novo", explica. Sobre os grafites também um algo mais: "Trata-se de um protesto pintado. Hoje para a maioria dos jovens vende mais o que está representado num grafite de parede do que num anúncio publicitário, porém, sempre leve em consideração, essa arte não nasceu para ser politicamente correta".

Mudamos de bairro e pegando novamente o metrô, cinco estações adiante, agora o bairro turco, com uma história de pobreza e de resistência coletiva. Nas paredes dos bares, farmácias e vários estabelecimentos comerciais recados deixando bem claro não serem aceitos naqueles locais gente preconceituosa ou algo do gênero. Conta em detalhes várias histórias de estabelecimentos, como tudo começou e como se dá a continuidade de muitos deles. O Burguer King, por exemplo, começou por ali, origem alemã, pasmem, num banheiro público e hoje espalhado mundo afora. Numa outra explicação afirma que o estabelecimento por lá, quanto mais escuro, melhor se come. Um outro imenso prédio, hoje totalmente utilizado para cursos e programas culturais, lugares onde a população está envolvida na manutenção e sustentação dos projetos. Tenho uma outra história sobre esse "beco", se assim posso chamá-lo, um dos lugares mais incríveis por aqui, todo dominado por grafites, colagens variadas e escritos variados e múltiplos nas paredes. Merece um texto só seu.

Circulamos de lado a outro e por fim, encerramos o tour numa casa tipo das costumeiramente conhecidas nas favelas brasileiras. Na história a nós contada, após visualização de sua realidade ali na nossa frente, começo da noite foi mais ou menos essa. Um turco tem o consentimento da igreja para produzir algo num canto de sua propriedade, distribui o que produz e levanta um lugar com a sua cara. Diante da ação popular, agrada a comunidade e a igreja não consegue retirá-lo do local. Com sua morte, seu filho prossegue o legado do pai e o local, mesmo tendo tentativas de remoção, todas tornadas infrutíferas, devido o grau de envolvimento popular do projeto com a comunidade local. Nosso guia nos diz sobre o desfecho: "Isso aqui só é possível na Alemanha". Esse seu lado sensível para com os que pouco possuem, o lado renegando o materialismo fútil me encantou e dele escreverei um texto mais detalhado sobre essa tour Alternativa por Berlim e tentarei emplacar na melhor revista semanal do Brasil, a Carta Capital. Algo com mais tempo e primor escrevinhativo (ou seria escrevinhatório?).

Para quem tinha quase certeza de ter poucas possibilidades de aproveitamento dos dias por aqui, diante da dificuldade da língua e de seguir roteiros indicados por amigos, Pablo caiu do céu no nosso colo. Adorei Berlim e ele é o culpado...

PS.: Tudo escrito numa só golfada, sem correções possíveis no momento, com poucos dias por aqui e querendo aproveitar cada segundo de rua e do que Berlim tem para nos oferecer. Se correções houverem, ocorrerão posteriormente, quando já na aldeia bauruense. Entendam e passem por cima dos costumeiros e rotineiros errinhos na escrita. HPA



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