domingo, 28 de julho de 2019

RELATOS PORTENHOS/LATINOS (68)


COMO GARÇOM DE UM RESTAURANTE TE FAZ ENXERGAR O MUNDO DE FORMA DIFERENTE - A EXPERIÊNCIA COM SEU JOSÉ DO LA BRIGADA

Turista anda por tudo quanto é lugar, muitos desses os de sempre, aqueles lugares onde todos acabam indo quando num lugar diferente, atração turística com lugares inevitáveis. Isso todos fazem quando nesses lugares e não é minha intenção ficar prescrevendo como foram meus passeios. Seria muito pedante e chato. Gosto mesmo é de tentar mostrar algo de um outro lado, onde pouso esse meu olhar, um tanto inquieto e intranquilo. O pratico por todos os lugares, ainda mais nesse momento vivido pela Argentina, tão cruelmente comandada por esse neoliberalismo ultrajante para com o ser humano, pois privilegia uma minoria em detrimento da maioria de sua população, essa cada vez mais vivendo à minga, penúria percebida a olhos vistos. As andanças pelas ruas ocorreram desde 10h e só pararam quando as pernas já estavam um tanto combalidas, fraquejadas pelo uso contínuo, destreinadas e com pouco uso nos últimos tempos. Viajo e ando muito, esse meu exercício. Pernas e olhos muito atentos, registrando tudo o que vejo e a maquininha fotográfica eternizando os momentos. Quando as baixo no computador, em cada uma delas, algo a ser contado, vivência estabelecida. Algumas eu posso contar e o faço nesses relatos a mover minha vida, noutros guardo para mim, pois na revelação de algo não permitido, talvez até chegue a criar problemas para pessoas e essa não é minha intenção.
Seu José e mana Helena.


Sou um "Historiador de Vagabundos", como li hoje algo do amigo historiador carioca Luiz Antonio Simas e já incorporei no meu repertório (pode ser lido aqui em outro post). O vagabundo prescito pelo Simas não são vagabundos quaisquer e sim, esses simples, pessoas por detrás dos balcões, atrás das vitrines, entregadores, frentistas, serviçais desse cruel mundo, garçons, os que o levam nas costas e passam, na maioria das vezes desapercebidos pela imensa maioria, pois quase nada desses sai publicado em lugar nenhum. E quando o sai, na maioria das vezes, retratados pela imprensa massiva, quase sempre à serviço do poder e dos poderosos, ainda tratando-os de forma jocosa e danosa. Os olhos desses tais historiadores de vagabundos, também denominados de Historiadores das Iniquidades e das Insignificâncias olham para todos esses dando a devida importância. É o que tento fazer e o faço a seguir com alguém conhecido quando almoçava hoje num lugar dito turístico aqui na capital argentina, o Restaurante La Brigada - Lo Distinto en Parrilla (www.parrillalabrigada.com.ar), na rua Estados Unidos 465, em San Telmo.

Seu José, nome bordado no avental da casa e assim tomo conhecimento do seu nome, pois do contrário, seria mais um cidadão sem nome, pelo menos para os que ali adentram, comem até se fartar, recebem o bom tratamento dado por gente como ele, garçons da casa e depois se vão, esquecendo de como isso se deu, mas sempre enaltecendo a casa de assados em conversas que duram uma vida inteira. Quando da chegada na casa (essa nossa terceira vez por lá), o dono, um boleiro muito conhecido por aqui, fotos de futebol espalhadas pela casa toda, autógrafos mil, nos recebe e logo outro nos encaminha para uma mesa para quatro pessoas. Nas fotos nas paredes o dono está ao lado de todos os famosos que por ali aportaram, principalmente os do mundo da bola. Sentamos no lugar dedicado a nós e por uma dessas decisões inolvidáveis da vida, quem nos atende é justamente esse senhor, seu José, um distinto cidadão, beirando os 70 anos e depois nos contando, 26 anos de La Brigada.

Quem diz serem os garçons argentinos grossos não conhece a sapiência do atendimento do seu José. Fez a primeira brincadeira e como fui receptivo, durante toda nossa permanência estabelecemos algo em comum, uma abertura para papos outros. Desta forma, ele se abre um pouco, nos poucos momentos ao nosso lado, tanto tirando o pedido, depois nas passagens para ver se tudo estava bem e por fim, no fechamento da conta. O dono, o tal boleiro, passava e sempre à distância, não se aproximou em nenhum momento, até porque não éramos ninguém no mundo das colunas sociais conhecida por ele. Foi até melhor, pois seu José preencheu todas nossas expectativas e assim, pudemos ir travando algo bem peculiar feito por mim, uma aproximação das e com as pessoas nesses contatos. Durante toda a permanência do grupo por ali o observamos em seu ofício e a constatação coletiva foi a de que, aquele lugar só tinha o sucesso todo alcançado mundo afora, pouco se devendo ao seu proprietário e mais a gente como ele, sabendo como poucos em como tocar uma mesa, direcionar uma boa conversa e trabalhar de fato, algo que o faz, percebemos, com uma dedicação que até os mais desleixados percebem.


Ele ia e voltava, pouquíssimo tempo entre nós, mas sempre com algo marcante, cativando mais e mais a todos. Por fim, quase no momento da despedida, minha mana Helena, boa observadora como eu lhe dirige a palavra e entrega os 10%, não obrigatórios na casa e lhe diz no pé do ouvido o que acabei de escrever: "Essa casa só tem o sucesso todo que tanto tinha ouvido falar por causa de gente como o senhor e pouco por causa do proprietário". Educado e cortês, ele não se altera, mas noto ter gostado do elogio e esboça um algo que dá para se entender tudo de todas as relações empregados/patrões mundo afora: "O jeito a gente adquire com o passar do tempo e não o perde mais, mas nem todos o conseguem. Vocação não é para todos, mas ele é simpático, bom patrão, tanto estar aqui já há 26 anos". Simpático em tudo, sem cutucar nada. Na despedida, um forte abraço e lhe digo ter sido uma ótima estadia, mais até do que a ótima comida, muito por causa dele, de seu jeito peculiar. Ele retribui com uma "igualmente" onde percebo a sinceridade externada, até pela liberdade que teve em poder conversar conosco e mais que isso, sentiu firmeza para fazê-lo. Tem lugares onde se vai, que mesmo se tentando, a proximidade essa não é estabelecida e fica aquela frieza. Com seu José, ocorreu o contrário e se alguém aceita uma boa indicação de comida e de atendimento, a deixo para esse lugar, mas com um pedido especial, solicitem o local onde ele esteja atendendo. Gente como ele movem o meu mundo. São os tais que constroem uma lugar, tijolinho por tijolinho. Ele sabe como fazer e conquistou a todos por causa disto.
O grupo em foto tirada pelo seu José.

Saio de lá querendo prolongar a conversa num outro lugar, saber mais de seu ofício, detalhes dessa trajetória toda, mas isso já é outra história e na qualidade de turista, não teria nem tempo para tanto e nem ele. De todos os lugares por onde passamos hoje, de todas as pessoas que vimos e trombamos, conversamos e trocamos figurinhas, esse o mais importante, o mais alvissareiro e motivador de minha sentada no final do dias, esquecendo até de continuar batendo perna como turista, tudo para tentar nessas linhas descrever meu encantamento por tê-lo conhecido. Esse são os tais "vagabundos" ditos por gente sem a menor qualificação, os que gostam de lamber botas e só sabem valorizar algo vindo de gente impermeável, isso para não o fazer com qualificação mais insidiosa. Meu dia não seria o mesmo hoje em Buenos Aires se não tivesse conhecido esse seu José e dele pudesse ter escrito esse relato. Só acalmo algo no meu interior após colocar pra fora esse escrito, tirado lá do fundo de um sentimento muito saboroso que sinto pelas relações humanas e mais, por todos esses labutando e tanto nas entranhas, rebarbas de uma aldeia.

Em Tempo:
Nunca havia visto nenhum outro garçom deixar a rolha do vinho suspensa junto da boca da garrafa, segura por uma amarração criada na hora de retirar o seu lacre. Tentei aprender mais uma, mas a lição não me foi suficiente na primeira vez. Necessito de muitas outras aulas para conseguir algo parecido.



RECADO DE LUIZ ANTONIO SIMAS, O HISTORIADOR DOS VAGABUNDOS:

"Recado para os babaquaras que vez por outra me chamam de "historiador de vagabundos" (como aconteceu agora, agressivamente, na outra rede. Bloqueei os incautos). Eu sou um historiador de vagabundos. Isso é evidente e é elogio, para descontentamento dos "homens de bem". Vou repetir: eu sou um historiador dos "vagabundos" subalternizados pelo processo histórico que, ainda assim, são sujeitos de suas histórias. Têm história, pô. São invisibilizados, mas têm história. Insisto nisso. Não escrevo história de poderoso. Não quero e não posso sair do Brasil. Não tenho grana, tenho mãe, pai e irmãos aqui, todos os meus estudos são direcionados para a cultura carioca e brasileira. Vou sair daqui pra estudar as encruzilhadas da minha cidade? Não dá. Eu preciso frequentar botequins e macumbas para estudar o que estudo, é óbvio. No meio do horror, tenho algumas expectativas: uma delas é contar as histórias da cidade na cidade. Na rua, na encrenca, no perrengue, mas ancorado em pesquisa e reflexão de ponta. Como o povo comum do Rio de Janeiro merece. Eu não sairei vivo do Rio de Janeiro. E muito menos morto, já que serei enterrado aqui. Me aturem ou dividam comigo as cervejas no balcão".

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