segunda-feira, 2 de setembro de 2019
MEMÓRIA ORAL (244)
VIDA SEVERINA BAILANDO POR BAURU OU COMO ESSE PESSOAL DO FIM DO MUNDO AINDA CONSEGUE LEVAR AO PALCO ALGO COM TAMANHA ENVERGADURA Enquanto o país quase inteiro caminha para um estado de profunda DEMÊNCIA, alguns poucos resistem e insistem em continuar dando murros em ponta de faca, produzindo, sendo, fazendo e acontecendo de uma forma mais que ousada. Justamente nesse momento onde os sinais de debilidade se avolumam pelo país, justamente aqui na aldeia bauruense, nas noites de sábado e domingo, algo para provar que, nem tudo está definitivamente perdido, pois cabeças pensantes continuam pulsando pela aí e vez ou outra, mesmo contra todas as adversidades mostram a que vieram. É o caso da Cia Estável de Dança de Bauru, comandada pelo competente Sivaldo Camargo, bailarino com décadas de reconhecidos trabalhos, desses que, quando todos se acomodam, preferindo se esconder, tentar passar incólumes, desapercebidos, ele vai atrás e acaba de colocar mais um produto com a cara de sua Cia na praça, desta feita a difícil e ousada encenação do poema de João Cabral de Mello Neto, “Morte e Vida Severina”.
O poema por si só é de difícil digestão, principalmente no momento atual vivido pelo país, pois foge da compreensão do pobre mortal envolvido num momento de emburrecimento e embrutecimento mental. Sivaldo tem a ideia de preparar os bailarinos da Cia, todos muito novos, para mais uma experiência dessas arrebatadoras. Envolve nessa empreitada o coreógrafo Arilton Assunção, que sempre compra essas ideias e juntos tramam sempre algo inovador, envolvente, cativante e transformador. A mesmice é mesmo uma nhaca e quem tem no sangue algo inquieto, não consegue se deixar vencer por um desgoverno anunciando como boa nova o retrocesso. Esses com o espírito realizador voltado para o verdadeiro altaneiro país, ainda não de todo deteriorado, esses se movem e dão o seu jeito. Sivaldo e Arilton deram o seu jeito e cientes das limitações do trabalho dentro do setor público, se cercam de bons profissionais, todos amigos e o resultado é sempre surpreendente, arrebatador e envolve tudo, todas e todos os ainda sensíveis desta cidade.
Eu escrevo deles movido pela emoção, pois sei que a emoção os conduz, os levam adiante e com ela, permeiam suas vidas, pois sabem muito bem o que, como e com quem fazem. Dando uma olhada no time junto deles, a certeza de que, tudo é para dar mesmo muito certo. E deu. Na fotografia, impecável, esteve atuando a professora Loriza Lacerda, os figurinos foram da professora Ana Bia Andrade, a costureira foi dona Fátima Cardoso, o design gráfico foi de Lucas Melara e as peças foram se juntando. Dentro da estrutura do teatro, Silvio Selva além de compor o time da retaguarda de sonoplastia e iluminação, com André Bazan, Thiago Neves e Flávio Lima, foi quem fez as ilustrações do projeto do Programa. Alguns adereços ficaram a cargo de Paulo Barreto e o croquis do figurino veio da concepção de Maicon Douglas. Os acessórios vieram do trabalho de Rita Oliveira. As peças todas foram se juntando uma a uma em várias reuniões preliminares e tudo foi sendo concebido com um algo a mais, um prazer inenarrável e pouco entendível para leigos. Uma construção mais que coletiva, bem dentro do espírito do tema proposto.
O elenco se dedicou com aquele afinco inesgotável, buscando forças e uma resistência que muitos nem acreditavam ser mais e ainda possível. Cito todos e todas: Amanda Lopes, Ester Canno, Julia Date, Julia Soares, Julia Zanini, Marcela Victória, Mariela Mira, Victória Carvalho, Taina Fernanda, Marcos Arantes, Paulo Carvalho, Thiago Ruela, com a participação mais que especial de dois maravilhosos bailarinos da Cia de Dança de Salto, comandada pelo Arilton, Luis Silva e Samuel Rodrigues. Cada detalhe foi pensado e executado, quase sem custos, como só quem atua dentro do serviço público sabe como conduzir. Até um convite para o professor Geraldo Bergamo produzir uma poesia foi brilhantemente executado. Quando o convidaram para participar de alguns ensaios e daí, o envolvimento fatal e uma obra de arte esculpida pelo sutil entendimento do que estava de fato ocorrendo. Antes do início do espetáculo no palco, a atriz Dulce Lagrecaca foi convidada a declamar o poema e, mais uma vez, a plateia em êxtase.
Eis a poesia: “Siva e Ari que amam João que amava a dança/ a dança que critica a morte/ pelas facas do sol lambida/ e a dança de Sevilha/ riscada em fósforo virgem:/ pois se uma é nordestina/ de magreza lixada por lima,/ o mar da outra é enigma/ que o Capibaribe adivinha;/ uma se faz das palavras/ que secam mal se as pronunciam,/ enquanto as dançarinas da outra/ pode “incendiar-se sozinha”./ Mas aqui nesse espetáculo/ que ora ser lhes apresenta,/ Sivaldo e Ari trazem o João/ que com a morte não se contenta;/ com a morte que cozinha com a morte/ pelos vazios da barriga,/ pelos vazios mais ocos/ que são vazios às escondidas,/ o sol o sol o sol/ CAR/ ou a morte às claras por bala/ se a fome não faz o serviço/ e a morte que se vai vivendo/ do homem na modalidade bicho:/ bicho que mal começa finda,/ bicho que reza e acredita/ e que em bicho se divide/ por ser mais bicho ainda./ o sol o sol o sol o sol/ CAR/ Tudo isso em João é denúncia/ dos exploradores da vida/ que faz Severinos dos muitos/ para que poucos prossigam./ o sol o sol o sol o sol/ CARCARÁ/ Siva e Ari que amama João que amava os Severinos/ todos em diapasão nordestino lhe trazem, assim reunidos/ um desassossego rude, um repente intestino/ para que dúvidas não pairem/ do que não pode ser vivido”.
E aí veio e espetáculo, que precedeu a trabalheira toda, da qual até este mafuento esteve envolvido, pois no começo da semana, quando perderam a esperança do tecido feito em Monte Sião MG chegar a tempo para as hábeis mãos de dona Fátima o transformar no vestuário dos bailarinos, eu peguei o carro e fui lá buscar, 4h para ir, mais 4 para voltar e tudo foi feito a contento, dentro do prazo. Um ballet com o suor de muitos, com algo nascendo da cabeça pensante, vibrante e pulsante de Siva, logo repassado para tantos outros e tudo transposto para o palco, numa realização dessas de envaidecer a todos os envolvidos, chegando a ponto de emocionar a costureira, que tanto já fez pela muitas etiquetas bauruenses, mas quando diante desse trabalho, se quedou e disse: “Eu só quero fazer coisas para esses daqui por diante. Eu adorei todos”.
Um leigo como eu, sem muitas condições de analisar erros e acertos, enxerga só acertos e maravilhado fica, extasiado se comporta e permanece de olhos fixos no palco nas duas apresentações, na de sábado e na de domingo, boquiaberto e sem palavras para tentar descrever o presenciado. Eu aqui publico fotos minhas e da profissional Loriza (fácil identificar as dela diante das minhas) e com essas singelas e fraternas palavras, expresso o bonito em sua máxima potência. Eu gostei, mas escrever isso parece muito simples diante de algo tão grande. E essa grandeza vai além do que foi visto no palco, transcende aos 50 minutos do ballet, se junta a tudo o que ocorreu nos bastidores e o epicentro se dá agora, um dia após, quando a ficha começa a cair e eu tenho a certeza de ter presenciado um espetáculo desses inolvidáveis.
Sabe o que fui me lembrar hoje, quando tudo já tinha ocorrido? Uma história contada a mim pelo Sivaldo, ele andando pelas ruas de Bauru com nada menos que o velho Antônio Abujamra, o eterno Provocador, homem de uma vida toda dedicada ao teatro. Esse ao saber que Siva dirigia uma companhia de ballet pergunta o que ele estava encenando e ao ouvir uma obra fina flor o interpela: “Quem você pensa que é para encenar isso? Um relés interiorano se achando, impossível você encenar isso”. O tom foi mesmo para provocar, ouvir mais, querer conhecer, instigar e buscar ver se o oponente não se intimidaria. Pois bem, como pode ser visto, Siva não se intimidou e está indo longe demais, enfim, “quem ele pensa que é para levar ao palco um poema de João Cabral de Mello Neto e ainda por cima em pleno tempo nebuloso e draconiano recheado de bolsomínions por todos os lados?”. Eu o vejo acertando a mão e até Abujamra se espantaria de como o danado está alçando cada vez voos mais ousados e conseguindo se sair bem neles todos.
Sivaldo (Arilton também) sabe muito bem das coisas e não realiza nada sozinho, ele se escora em muitos e todos juntos levam esse barco cada vez pra mais longe, sempre pra frente. O mundo precisa muito de gente ousada e se aliando com gente do mesmo cabedal. Só assim a gente vai conseguindo sobreviver e tocar a vida loucamente adiante. Sou muito feliz por ter amigos dessa laia.
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