domingo, 12 de janeiro de 2020

MEMÓRIA ORAL (250)


PASSEADORES DE CACHORROS, A HISTÓRIA DE NORMA E GUNNI NO BROOKLYN
Em Nova York, ouço de um taxista brasileiro, ele há dez anos nos Estados Unidos, que nenhuma profissão é vista aqui com conotação depreciativa. “Todas são importantes, desde que você ganhe e ninguém vai te olhar atravessado por isso ou aquilo, bem diferente do Brasil”, suas palavras. Nessa cidade tem brasileiros trabalhando de todas as formas e meios, cada qual buscando algo não encontrado no país, a maioria sem carteira assinada, muitos como clandestinos, entrando como turista e aqui permanecendo. Não é o caso de Norma Souza, mais de 25 anos de EUA, mas como ela está estabelecida num ofício um tanto diferente, se encaixa no quesito “olhares travessados”, porém tira tudo de letra, sem se importar e ciente de ter vencido, feliz com o que faz, sem pensar em mudar.

Norma chegou aos EUA casada e com três filhos pequenos, veio em busca de algo novo. Trabalhou por quase uma década numa empresa de norte-americano louco pelo Brasil, tanto que revendia livros em português para interessados. E eram muitos, gente de todos os lugares. Os livros faziam parte de um catálogo, mas todos os títulos eram vasculhados do Brasil, trazidos para os EUA e enviados aos clientes pelo reembolso postal. Isso durou até o momento, quando o dono do negócio resolveu se mudar para São Paulo. Ela já com o casamento desfeito, filhos se encaminhando cada um indo pra lugares distintos, amor novo, o islandês Gunni ao seu lado, ele envolvido com trabalho de levar cães para passear. O início se deu com ela o ajudando com seu veículo, a coisa cresceu e hoje, com quinze anos de atuação, cada um com sua vã, clientes próprios, acordam muito cedo, por volta das 5h30 e saem de casa em casa buscando os cães e os levando para passear em parques na região do Brooklyn onde residem.

Ela conseguiu acompanhar a reviravolta no lugar, antes considerado perigoso, para o momento atual, quando após o 11 de Setembro, a transformação se deu por completo. Vendeu um belo apartamento no Rio de Janeiro, juntou forças com Gunni e adquiriram um casarão num local privilegiado no bairro, região com casas de aproximadamente cem anos, construção de madeira, todos tombados e constituindo algo importante para contar a história do lugar. Três pavimentos e reforma de longa duração, mas hoje tudo dentro do que imaginava, vivendo a calmaria do lugar, sem o frenesi do outro lado do rio, ou seja, o fervo de Manhathan. Rua tranquila, vizinhos idem, construíram e ampliaram o negócio iniciado por Gunni, ele também com décadas no país, vindo muito jovem da Islândia e hoje, felizes com o padrão alcançado.

O Brooklyn permite esse tipo de vida mais calma, algo buscado por muitos. O casal vive o seu momento de ápice, com tudo estabelecido, consolidado e hoje, trabalhando muito, de segunda a segunda, sem dia de descanso, mas fazendo o que gosta, tendo conquistado espaço pelos anos de consciente atuação no segmento. Sair com ela na vã, num passei num sábado pela manhã, quando o número de cães é menor foi o que fizemos, eu e Ana Bia, conhecendo cada detalhe de sua rotina. O acordar cedo, o sair de casa em casa, tendo a chave de todos os apartamentos e casas, entrando e pegando os animais, eles na isolada parte traseira do veículo e daí para um parque na região, o Parkside e outros. É permitido soltar os animais sem coleiras nesses locais até por volta das 9h, no máximo 9h30, daí a necessidade de chegarem cedo. Os animais, todos muito conhecidos deles, permanecem no veículo se contendo, mas ao vislumbrarem a chegada, se inquietam e saem em disparada, porém todos no entorno deles, cada qual chegando com seus animais, clientes separados e ali se juntando.

São muito conhecidos nesses locais de passeio, tanto que nesse dia dois clientes vieram lhe deixar cães para não só passearem como pernoitar com eles. Na casa, o porão da casa foi adaptado para essa finalidade e o quintal também, esse local de recreação dos animais no período em que o casal dá uma parada para o almoço. O molho de chaves no carro, conhecer cada cliente, tendo cães já de segunda geração, mais de dez anos junto deles, torna o ofício algo realizado com detalhes de quem sabe muito bem o que faz. Quando presos pela coleira, são fixados num cinto junto ao corpo, pois pela quantidade os arrastariam. Passam o dia desta forma, entre buscar, levar para passear, alimentar, cuidar e depois devolver cada qual ao seu local de origem. Existe toda uma logística bem pensada e colocada em prática para chegarem no patamar de excelência profissional alcançado e o casal disso não se afasta.

Escolheram essa vida, primeiro por ambos terem feito a opção pela região do Brooklyn, desta forma é normal vê-los após o dia exaustivo pelas ruas, chegando de volta em torno de 16h30, no máximo 17h, quando a cidade já está começando a escurecer e principalmente Norma já devidamente dormindo por volta das 20h. Saem pouco dessa rotina, mas possuem algo conquistado do qual fazem questão de continuar usufruindo. Viajam por quatro vezes ao ano, não Brasil e Islândia, mas outros locais, quando a clientela os esperam pacientemente. Com valores diários e mensais cobrados dos clientes, a renda de cada um passa da casa dos dez mil dólares mensais, tornando possível toda a recuperação do casarão onde moram, numa espécie de casa de acolhida para parentes e amigos. Recebem muitos do Brasil e possuem um andar, o sótão, andar todo transformado num apartamento, quando promovem uma interação da qual compartilham com os visitantes algo da hospitalidade ao estilo bem deles. A frase de Ana Bia define bem a situação do casal nos EUA: "Vão achar que isso que fazem é uma merda, mas na verdade é muito vip".

Norma e Gunni são belos por dentro e por fora. Pessoas admiráveis num mundo cada vez mais individual comprovam a existência desse lado humano, sensível e sincero, explicitado na forma como tocam suas vidas. Abrem constantemente sua casa para uns e outros, esses devendo respeitar o estabelecido para o lugar, pois logo na porta principal da casa, num adesivo o pedido para ninguém adentrá-la de sapatos. Lá dentro, a impressão é a de estar adentrando um loca com mais de cem anos, devidamente adaptado aos tempos atuais, mas mantendo muitas características de uma volta ao tempo. São “passeadores de cachorros”, essa a denominação do que fazem, a qual ela mesma me diz, após querer saber como poderiam ser designados. E são com muito orgulho, morando dentro dessa cidade cosmopolita e dela não mais querendo sair, pois conseguiram construir o que idealizaram para suas vidas. Eles e seus cães representam só um dentre tantos brasileiros em Nova York, como Adriano, o taxista especializado em atender brasileiros, recepcionando os que chegam falando português e meio perdidos diante da grande cidade. Mas isso é assunto pra outra história, enfim, ele já está por aqui perto de uma década.

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