domingo, 19 de julho de 2020

REGISTROS LADO B (04)


QUARTA LIVE/BATE PAPO “LABO B – A IMPORTÂNCIA DOS DESIMPORTANTES” COM O ESTRADEIRO JOÃO CARLOS DIAS MOREIRA – CAUSOS E CASOS CONTADOS COM RICOS DETALHES
O projeto de contar a História segundo a versão dos alijados de quem a conta de forma oficialesca tem prosseguimento neste próximo domingo, 19/07, a partir das 11h, através da página de meu facebook. Tudo teve início com o artista de rua Marcílio do Nascimento, depois vieram a assentada rural Maria da Paz e a carnavalesca Cristiane Ludgerio. Agora chegou a vez de JOÃO CARLOS DIAS MOREIRA, alguém pelo qual nutro um respeito e admiração - como todos os demais já entrevistados -, não só pela rica história de vida, mas por algo pelo qual chega a me causar comiseração, um tipo de incontrolável coceira, quando tempos atrás se redescobriu num novo afazer. Juntou forças junto de um amigo e ambos montaram uma inusitada parceria, a de ser o revendedor de produtos básicos para vendas rurais. Lotavam a caminhonete do amigo e sócio e saiam estrada afora, num raio de aproximadamente 100 km no entorno de Bauru e percorrendo tudo quanto é tipo de estrada rural, todas de terra batida, se depararam com um roteiro até então não desbravado, o de lugares enfurnados nos confins desse Oeste paulista. 

Esse grande feito rende textos, sempre com muitas fotos, postados de onde esteja e assim esse tal de Moreira me conquistou. Ao mostrar uma vendinha perdida lá numa estradinha entre, por exemplo, uma vicinal ligando Arealva até a cachoeira do Babalim, ou logo adiante, o distrito de Santa Izabel, ele vendia algo a lhe dar o sustento e produziu incontáveis momentos de reflexão para quem como eu, vive e necessita de ser sempre reacordado para essas preciosidades ainda existentes e possíveis. Moreira sabe trafegar entre esses todos e em cada canto cativou amizades novas, dessas ainda sustentadas numa simples “caderneta”, onde vão sendo anotados os pedidos feitos e ainda não pagos. A cada nova visita, risca com caneta o valor devido, o recebido e escreve o valor do débito atualizado. Ela vai nos contar como se dá esse rico processo de confiança mútua e estabelecida em algo do qual ouvi certa feita uma frase e dela nunca mais esqueci: “Dificilmente pobre deixa de pagar uma dívida. Ele honra seu compromisso, pois se não o fizer, isso lhe causará dor eterna”.

O cara é poliglota no que faz, pois além do espírito cigano, sabe tocar viola como ninguém, com repertório dos mais caipiras, em algo que quero lhe perguntar no pé do ouvido: “Moreira, tu és mesmo um caipira. Tem orgulho ou vergonha disso?”. Outra paixão é o futebol amador, onde o filho joga num time que ele ajudou a fundar e também ao tentar mantê-lo vivo. Ele é profundo conhecedor das entranhas de Bauru, lugares inauditos desta cidade, quebradas pouco conhecidas e seus personagens. Conversar com ele sobre isso é ressaltar a história, pouco ou nada conhecida, das vielas bauruenses. Um cara envolvido com tudo isso só pode ser uma pessoa diferenciada, de bem com a vida, sem grandes arroubos, sonhador e desses que sabe muito bem tocar a sua, afastado dessa nhaca de seguir as leis de mercado e o que rezam cartilhas para ser bem sucedido em empreendimentos modernosos. Moreira é CAIXEIRO VIAJANTE em pleno século XXI e quando a maioria hoje faz questão de permanecer com a bunda devidamente assentada numa confortável cadeira, tirando pedidos via computador, ele vai à luta e faz o que gosta, comendo poeira de estrada todo santo dia. Com o que faz, de certa forma, tem a vida prolongada e é disso que falaremos na conversa dominical.
Já escrevinhei dele em várias oportunidades pelo meu blog, o Mafuá do HPA e aqui relembro alguns destes textos:

- Em 15/05/2018: “Ele me dizia ter crescido em Garça e viveu sua infância vendo o avô trabalhar numa venda rural, lugar onde os graúdos, os fazendeiros e os endinheirados se reuniam no final da tarde para contar seus feitos, as vantagens conseguidas durante o dia. Ali bebiam e falavam de tudo e ele ali vendo a cena, aqueles senhores gordões, de suspensório, fumando cigarros de marca, botinas de cano longo, eles num canto e os pobres noutra, quase sempre do lado de fora. Num desses dias, um desses enxerga o garoto num canto e lhe pergunta: “O que quer ser na vida garoto?”. Ficou todo sem jeito e por causa disso não respondeu. O avô lhe veio em socorro e disse que o neto era tímido, não era dado a falar assim com gente importante. Logo acabou novamente esquecido num canto do lugar. Ele relembra e me rememora o que gostaria de ter respondido para aqueles todos, não o fez e hoje se arrepende. “O que gostaria de responder era que poderia ser muita coisa na vida, nada muito certo, mas de uma coisa tinha certeza, de não querer ser pessoas iguais aqueles senhores. Aquele jeito deles me causava repulsa, sentia por eles algo repugnante”. Conta outra do mesmo local, algo vivido nas beiradas de Garça, onde desde menino ia na igreja do bairro e lá, ele mesmo me disse assim textualmente, “vivenciava as diferenças proporcionadas pela luta de classes”. A igreja aos domingos lotada e nos principais lugares os graúdos do lugar, esses chegavam e sentavam em lugares a eles já estabelecidos, sem existir a necessidade de ninguém guardar lugar, pois os da frente eram dos caras. O povão ficava ou em pé, rodeando os graúdos, encostados na parede ou quando tinham sorte sentados nos últimos bancos, bem ao fundo. Sua lembrança vai para um dia quando o padre carrega na homília e fala sobre os males deste mundo, das diferenças existentes e do lugar onde cada um deve estar na sociedade. Diz ser inesquecível, dessas coisas lembradas sempre, o olhar que esses deram para tudo o mais, como a dizer aos simplões, os pés rapados, como a confirmar o dito pelo padre: “Isso é para vocês, não para nós. Obedecer é o que lhes resta nesta vida”.

- Em 18/07/2016: “CARLO MOREIRA é um sujeito boa praça, cabeça toda raspada por opção, magro retinto, roupa jeans desbotada no corpo e quase sempre de camiseta. Nascido em Vera Cruz, bauruense por opção, 56 anos, casado com a Suely Frasson, assumido avô, esse distinto cidadão tem por assumida profissão o ofício de ser caixeiro viajante. Ele, junto de um outro, lotam seus carros e saem vendendo tudo o que possa ser comercializado em vendinhas rurais. Isso mesmo, sua especialidade é vender em lugarejos distantes, enfurnados no meio do nada e disso tira seu sustento e a alegria de sua vida. Outro dia o Jornal da Cidade fez uma matéria com ele (http://www.jcnet.com.br/…/caixeiroviajante-fotografa-bares-…), mostrando um roteiro dessas vendas pela região. É um dos maiores entendidos hoje em lugares perdidos pela aí. Pegou gosto depois da matéria e passou a fotografá-los, donde acho que isso tudo vai gerar um catálogo dos mais úteis para quem gosta de se perder pelo interiorzão desconhecido. Carlo entende de pequenas vendas e une o útil ao agradável, pois pelo baita sorriso, sempre exposto na cara, gosta demais do que faz. É desses que não vê a hora da segunda chegar para botar o carro na estrada, comer poeira pelas estradinhas de terra e rever as vendas nas ditas quebradas do mundaréu. Assim sendo, toca para frente isso de uma profissão quase finda e esquecida nesses ditos modernos tempos”.

- Em 06/05/2017: “Eu nunca fui muito ligado nesse negócio de que iria enricar. Minhas relações profissionais sempre me levaram para atuar mais ao lado desses todos moradores dos cantos de cada cidade. Sinto-me bem ao lado deles. Eu sou um deles, moro do Eldorado II, lá perto do Fortunato, um lugar que dizem ser dos mais perigosos da cidade, mas para mim, um como outro qualquer. Sempre vendi para comércios iguais ou até mais periféricos de onde resido e te digo, nunca perdi dinheiro em favela. Perdi sim, em lugares mais acertadinhos. Nos mais pobres, faço sempre um toma lá dá cá, mas como já conheço muita gente, vendo para muitos no sistema de caderneta. Entrego hoje e começo receber semana que vem e todos eles cumprem o riscado, no fio do bigode. Nas cidades, chego e faço um pente fino, visito tudo e depois filtro. De cem visitados, uns vinte mantenho como cliente e acabam virando fixos”.

Enfim, você tem aqui um ótimo motivo para perder mais uma corrida da Fórmula 1 na TV, pois a coisa aqui conosco terá conotações muito mais quentes e efervescentes do que acompanhar corrida de carro. Aqui a conversa é bem outra e eu só estou ao lado de personagens mais do que importantes dentro do contexto da versão dos que perderam a guerra para com os rentistas, os adoradores das leis de mercado, os neoliberais, os ditos “forças vivas”, os tais que só pensam em seus botões. Aqui conhecidos perdedores, desses que até por serem assim e disso não abirem mão, são os grandes vencedores do jogo da vida, pois mesmo a levando aos trancos e barrancos sabem dela extrair o melhor néctar ali existente. É com estes que eu vou e sempre estarei. Suas histórias são as que me interessam...

EIS O LINK DO FACEBOOK COM A ENTREVISTA NA ÍNTEGRA: https://www.facebook.com/henrique.perazzideaquino/videos/3650534668309849

DOIS TRECHOS DA ENTREVISTA:
1.) Logo no começo da entrevista, quando o apresento, ele faz um aparte e diz algo pelo qual só não cai da cadeira, pois já me encontrava sentado: "Eu quero falar algo sobre isso da desimportância, essa característica que você descreveu. Quando eu te conheci a primeira coisa que me chamou a atenção no seu modo de escrever, no seu jeito de ser foi a sua atenção que você dá para as pessoas desimportantes. Eu sempre tive vontade de escrever, tento agora pela facebook fazer isso, algo junto das fotos que posto, sempre gostei de escrever e tal, toda vioda pensei em me formar para escrever coisas do nosso povo que cai aí nesse rótulo desimportante, mas nunca a possibilidade de fazer uma faculdade e de ir em frente com essa ideia. O tempo passou e no facebook eu acabo me deparando com uma página de um escritor de Bauru, que eu não conhecia, com a conduta de escrever exatamente o que eu sempre sonhei, escrever coisas do povo esquecido. ´r raro isso. Você imagina um cara estudar tantos anos, gastar esse tempo todo para parar um morador de rua e escrever sobre ele. É raro. Eu encontrei, o dia que eu encontrei o seu primeiro texto, eu disse isso existe. Esse sonho existe e tem um nome, HPA. A partir daí eu passei a te seguir e ficamos amigos". Eu lhe respondo um tanto emocionado: "Tem uma coisa que preciso ressaltar nisso, meu amigo Moreira. Eu escrevo e consigo transmitir alguma coisa interessante no papel e você que escreve menos, transmite também algo de valor através da fala. Você fala muito bem. Cada um se comunica de um jeito. Estamos tentando fazer isso agora e ao ouvir suas histórias, vamos ressaltar a sua importância".

2.) Olha a parte que ele cita o HPA na questão das vendas rurais: "Eu comecei fotografar as vendas rurais. A gente ia para Arealva, Iacanga, Jacuba e aproveitava para ir também visitar as vendas rurais, tudo fazia parte de um pacote. E como relembrava as coisas da fazenda onde nasci, lá em Garça, casa do meu avô, eu fotografava esses lugares e postava no facebook. As pessoas começaram a achar que eu só vendia nesses lugares. Não era bem assim. Eu achei que era só eu que gostava disso. Aí volta a história de como conheci o Henrique Perazzi de Aquino. Um dia olhando seu facebook, você postou umas fotos da venda do Cardoso, do Babalim, zona rural de Arealva, um texto bonito, daí disse pra mim mesmo, olha aí, não sou só eu que gosto desses lugarejos perdidos no meio do nada. Na verdade, esses lugares estão acabando, muitos já não tem mais a venda, a igreja, nem nada. Ai eu comecei a cxomunicar com você, me disse que tinha ido em Tibiriçá, tomou uma cervejinha lá, um lugar muito bonito, aí eu propus para você: olha você tá aí mesmo, entçao chega pela estrada de terra até Nogueira, no boteco do Fulano de Tal, toma mais uma, depois na volta entra em Barra Grande, tem outra venda, boteco do Dirceu, depois mais adiante, num sítio próximo tem o boteco do Nildo Coracini, antigo dono da venda da Barra Grande. Passe lá tome uma pinguinha, gente boa, você vai ter muita história. E pra arrematar por dentro você sai na chácara Santa Maria e toma uma no bar do Tatu. Aí você deu risada e me perguntou: E como vou chegar em Bauru como? Eu te disse: Bêbado, de fogo. Eu não esqueço disso. Depois disso você comecou a observar meu face e minhas fotos, falou de mim pro Aurélio do Jornal da Cidade e eles fizeram uma matéria sobre as vendas rurais no entorno de Bauru. Foi assim que eu fiquei conhecido por aqui por causa desse gosto que tenho pelas vendas rurais". 

O mafuento HPA hoje está com o ego lá pras alturas, contentamento que não cabe no peito. Por essas e outras, tenho a mais absoluta certeza: é dessas pessoas que quero escrever, contar histórias e estar cada vez mais junto de mim. Ponto final - por hoje.

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