sábado, 12 de março de 2022

MEMÓRIA ORAL (278)


FORDINHO, MECÂNICO ACIMA DA MÉDIA, DEIXANDO A VIDA LHE LEVAR SEM ATROPELOS*
* Escrevo hoje este texto mais leve, traçando um desautorizado perfil de alguém que conheci há pouco tempo e pelo qual me tornei de cara admirador. Como sábado, a prefeita vai rezar, deixando a cidade aos cuidados dos que a tocariam também nos demais dias sem suas decisões, hoje tudo rola tranquilo nas hostes políticas, assim, dou uma trégua nas cobranças e mudo de assunto. Conto aqui uma história de alguém a comprovar que nem tudo está definitivamente perdido.

A gente vai conhecendo as pessoas por acaso. Mês passado tive problemas com o câmbio do carro. Achei que fosse simples, levei no meu mecânico de confiança, o PC, ali na rua Inconfidência. Ele declinou do serviço, pois não era sua especialidade e se o fizesse iria terceirizar. Indicou um tal de Fordinho, segundo ele com mias de trinta anos de experiência nessa área, só com câmbios, dentro das oficinas da Simão e até se aposentar. Relutei e, como sabia a coisa ficaria cara, procurei outros. Cai aqui e ali, mas nenhum me convenceu e me deixou seguro. Acabei indo até o tal do Fordinho. Ele foi sincero de cara. Só podia me atender dali há quatro dias. Não tinha espaço em sua oficina e eu sem outra alternativa. PC me garantiu mais uns dias com o carro na sua. Chegou o dia, o carro adentrou a oficina JF, rua Paraná 1-64, vila Coralina e conheci seu proprietário.

De cara deu para perceber estar diante de um sujeito de bem com a vida. Sabe do que gostei de bate ptonto? Ele tem seu horário e nada o faz alterá-lo, não abre mão das horas de descanso. Respeita duas horas de almoço e quando possível desliga até o celular para não ser importunado. Ele e seus dois únicos funcionários, dois irmãos, crias da casa, formados por ele, treinados dia a dia para um dia assumirem o que faz. Estávamos perto do Carnaval, perguntei se ele trabalharia na segunda gorda? Sua resposta: “Não vale a pena. Eu preciso descansar e meus dois funcionários também, respeito todos os feriados. Aqui não passamos do horário, ninguém se mata, mas tudo é feito dentro de um padrão de qualidade que vai gostar”. Já gostei mais um bocadinho. E a coisa foi só acumulando coisas boas. Ele desmontou o câmbio, foi honesto no que precisava fazer, me ajudou a comprar de fornecedor paulistano e no frigir da coisa, mesmo saindo caro, ficou mais barato do que havíamos combinado.

Em cada retorno, sentava com o danado no seu pequeno escritório e o conheci melhor. Ele, é também amigo de outro grande do ramo, o funileiro Adelino, ali atrás da antiga Baurucar. Se as histórias que já contei do Adelino são de alguém que soube direcionar sua vida sem correrias, tudo para viver mais, estava diante de outro. “Seu Henrique, não adianta se matar. Se seu carro entrou aqui, ele esperou a vaga surgir é porque chegou a hora dele. Não adianta vir um endinheirado, dizer que tem mais urgência. Vai esperar o mesmo tempo que o senhor, aqui não tem privilégios e quem insistir, comigo não terá vez. Todos irão pagar o preço combinado, nada mais, nada menos”. Contou histórias passadas e disse que, está querendo deixar de morar ao lado da oficina, pois seus horários de descanso são sagrados. “Quando a pessoa não me conhece e vem num horário, almoço ou depois de findo o expediente, eu até o atendo, explicando que só estarei na oficina quando ela estiver aberta. De segunda a sexta das 8 às 18h, com parada de duas horas almoço. Sábado e domingo nem pensar”, me disse.

Age assim joga limpo e o resultado do que faz é sempre ótimo. Tem fila em sua porta. Dias atrás quando retornei para revisar o trabalho feito, quem estava por lá era um dono de carrão, morador de Bariri. Rodou a região e aceitou, como eu, as condições do Fordinho. Disse a ele, que fiz o mesmo e teria certeza, seria bem atendido. Fordinho é um especialista no que faz, faz bem feito, impõe suas condições, nem um pouco absurdas e segue vitorioso. Primeiro porque, creio ser o melhor dentro do que se propõe a fazer, enfim, se especializou. Além de tudo isso, dono de ótima cabeça. Sentar com ele para uma prosa não é se deparar com alguém sem noção das coisas. Primeiro ele te ouve, algo difícil hoje em dia, depois emite sua opinião. Gostei do que ouvi, ponderado e sem se deixar levar pelo que ouve ou vê. Falamos até sobre a guerra na Ucrânia e fui também surpreendido, quando mostrou opinião não divergente da maioria, mas sensata, ponderada e feita após muita reflexão.

Sabe o que aconteceu? Creio eu, sou agora amigo do tal do Fordinho e nem sei seu nome (deve ser Jeferson, mas não tenho certeza). Ele me disse, eu anotei, mas não gravei, mas não me esqueço mais do apelido, enfim, como ele é conhecido por todos os do seu meio e amigos, dado do período atuando numa revenda Ford. Escrevo isso num final de sábado e hoje, tenho certeza, suas mãos não estiveram sujas de graxa, pois soube acumular algo e nos dois dias do final de semana, bate asas e quando não está no rancho em Marilândia, Arealva, foge com a esposa de moto pelas estradas da vida. Numa das idas lhe perguntei: E quando ficar velho, quem vai te suceder? Ele: “Até tentei com minha filha, mas ele não se engraçou com esse negócio de oficina mecânica. Tentou, mas seguiu seu caminho. Eu ainda ficarei bom tempo por aqui, mas quando achar que não dá mais, os dois irmãos que formei, devem tocar pra frente a coisa”.

Eu olho para os lados, os quatro elevadores estão com carros levantados, mais dois com macacos hidráulicos, ocupando todo o espaço da oficina e mais dois esperando a vez. Câmbios espalhados por todos os lados, a maioria abertos. Uma organizada bagunça, dessas que, gente como eu, que vivenciei como se dá a coisa por ali, aprendi e repito: ali está tudo no seu devido lugar, assim como a vida do Fordinho, um sujeito que encontrou o seu ponto de equilíbrio, sem se matar e sem se deixar levar pelo canto da sereia.
Eu, sem seu consentimento, juntei tudo na cabeça e queria escrever muito mais dele, pois sei é um dos tantos que valem a pena a gente conhecer e se tornar amigo. Fico por aqui, mas ele me contou e ouvi muito mais. Ele, seu Adelino e PC, três donos de porretas oficinas são pessoas de fino trato. Gente em quem a gente pode confiar.


O “LADO B” E A POSSIBILIDADE DE CONHECER PESSOAS, ENFIM, VIVER*
* Esté é meu 54º texto para o semanário DEBATE, de Santa cruz do Rio Pardo, edição de hoje, quentinha circulando por aí.

Eu mantenho aqui em Bauru e acabo de realizar a 82ª entrevista semanal, bate papo denominado de “Lado B – A Importância dos Desimportantes”, tudo iniciado logo após o advento da pandemia, quando não podíamos mais nos encontrar pessoalmente. Fechado em casa, sem poder bater asas e vendo o que saia publicado pela aí, só com bate papos com importantões ou quando não isso, artistas que nada diziam, mas tinham espaço. Comecei a dar voz para os com pouco espaço na mídia, todos com belas histórias de vida. Para mim, estes os mais importantes em uma cidade, muito mais do que os tais grandões e sabichões, os tais donos do capital, chamados por aqui de “forças vivas”.

Podem prestar a atenção, as histórias populares são recheadas de passagens mirabolantes, muito mais interessantes do que a conversinha “cerca lourenço” a circular diariamente nas rodas dos mais abastados. Eram estes os que queria dar voz. E dei, entrevistando a pioneira do assentamento popular, o artista mambembe de rua, o artesão da praça, a ambulante e seu trailler, a travesti rainha do carnaval, a advogada ganhando a vida como diarista, o fotógrafo lambe-lambe, o renegado comunista rejeitado pela família, o padre revolucionário, o jogador de bola que lê livros nas concentrações, o cara que envelheceu sendo hippie, o moto-taxista que se veste de papai noel, o ambulante especializado em só vender pra armazéns rurais, o poeta caipira, a professora da periferia, etc.

Aquilo que começou como passatempo, está beirando o número 100. Me disseram que não teria mais quem entrevistar e hoje, tenho uma lista de gente aguardando chegar o seu dia. Na verdade, eu não entrevisto ninguém. Eu ouço as pessoas. Hoje, mesmo neste último, o tempo da conversa sempre fica determinado em uma hora, mas como deixo a pessoa falar e quem pouco fala, quando diante de uma oportunidade, contam tudo em detalhes, chegamos a 1h40. Nem sei se muitos ouvirão a gravação por inteiro, mas de cada um, extraio boas conversações e histórias inebriantes, daquelas de prender a respiração e a atenção. Não sei entrevistar, mas como sou um proseador por natureza, a coisa flui e quando vejo, me empolgo. Sempre quero mais.

São registros de vida, na maioria das vezes, de gente que, não encontro algo deles, pelo menos desta forma, em nenhum outro lugar. Muitos são controversos e comentam horrores de alguns (estes os mais interessantes), o que me faz buscá-los com maior avidez. Não sou o único a produzir algo assim e nem quero. O bom era mesmo, se mais gente se interessasse pelas histórias e relatos exatamente dos “simplões”. Eu quero confessar estar cada vez mais interessado em não parar mais, pois ouvir essas histórias também ajuda a mover a minha própria vida. Eu crio toda uma expectativa, a preparação para o que virá pela frente, quem será o próximo. Faço um roteiro, pesquiso, me informo e quando diante da pessoa, quase todos de forma virtual, eles de um lado, eu aqui de outro, soltamos a franga. Já ouvi cada história de arrepiar, algumas mais do que emocionantes, dessas com vontade de largar tudo e ir lá abraçar a pessoa.

O sentido da vida está muito em fazer o que se gosta. Eu gosto muito, deste contato com pessoas diferentes. Não me peçam para entrevistar um figurão empoado, onde mentiríamos um para o outro, pois daria merda. Quando a gente encontra algo que dá sentido pra vida, eis um prolongamento natural pra existência humana. Não é só estes encontros semanais que me movem, mas um deles. Desde o primeiro momento, quando me decidi escrever dos tipos populares de Bauru, creio ter encontrado um rumo diferente. Agora, no prelo, um livro com cem destas pessoas, as imprescindíveis que o visitante não pode deixar de conhecer ao chegar à Bauru. Depois vou compilar algo de cada uma destes bate papos semanais. Penso também em juntar histórias, reuni-las num condensado com pitada deste jeito gostoso de saber tocar a vida adiante. Projetos não me faltam, mas o cansaço me alquebra. Temo não ter tempo de fazer tudo o que tenho em mente. Acumulo novas ideias na cachola e a cada dia, dores se acumulando pelo corpo, uma só certeza, faltará tempo para colocar tudo em prática. Nem isso me faz parar. Eu só quero continuar tentando, insistindo e dando muito murro em ponta de faca. Mijo também, muito, fora do penico. Só não faço, ainda, xixi na cama.
Henrique Perazzi de Aquino, jornalista e historiador – www.mafuadohpa.blogspot.com

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