domingo, 3 de abril de 2022

UM LUGAR POR AÍ (159)


LINGUAGEM DAS PAREDES, LUGARES PÚBLICOS
Isso me interessa demais da conta. Fotógrafo frases, dizeres e saberes por onde circule. Paro para registrar e depois me ponho a refletir, me colo ar no lugar do outro e tentar buscar o melhor entendimento, sacando dos seus motivos. Recife tem inscrições de todos os tipos grafadas em suas paredes e círculo entre elas como ceciobador de álbum de figurinhas. Tem de todos os tipos, coladas, grafadas, lamentos, alertas, poesias, recados e tudo o mais. A grafia propiciada das caminhadas são mais do que um entendimento do povo frequentador dos mesmos espaços onde tenho o prazer de estar neste momento. Curto muito isso tudo.

PRAZER INCOMENSURÁVEL REENCONTRAR NO RECIFE EDNA E GUILHERME CUNHA LIMA - RELEMBRANDO O BRIGADEIRO FORTUNATO CÂMARA DE OLIVEIRA
Viemos pro Recife para isso mesmo, reencontrar pessoas queridas. Ontem o reencontro foi com Carmen Lucia Bezerra Bandeira e hoje com dois dos maiores mestres do Design brasileiro, Edna Cunha Lima e seu marido, Guilherme. Ganhamos, eu e Ana Bia um almoço na casa dos professores, além de uma bate papo de horas, após desfrutar de comidinhas mais que especiais preparada pela Mida, a gerente do estabelecimento. Quem acompanhou a conversa com toda a atenção foi o cão Milou - o mesmo nome do cão do personagem TinTin, não desgrudando de sua dona um só momento. Mal pudemos nos aproximar, pois o danado é mais do que ciumento. Rodeados de livros por todos os lados, todos transportados recentemente do Rio para Recife, quando decidiram se mudar para a capital pernambucana, para ficar mais próximo do filho, Ricardo, dando aulas na Federal de Pernambuco. Uma conversa que versou de tudo um pouco e reafirma a amizade de Edna por Ana. Tenho lembranças inenarráveis de Edna me dando uma lição para apresentação de meu trabalho acadêmico no Congresso de Palermo - Argentina, quatro anos atrás, quando estivemos bem próximos por pouco mais de uma semana em Buenos Aires. Ou seja, ser amigo de pessoas tão gabaritadas só enaltece e engrandece a conversa e os rumos da prosa.

De tudo o que conversamos, Edna nos contou a história de seu pai, Fortunato Câmara de Oliveira (1916/2004), tenente coronel da Aeronáutica, carioca de fibra, cassado pelo Ato Inconstitucional nº 1, ou seja, logo depois do golpe de 1964. Fortunato foi taxado como comunista, daí os golpistas não se contentaram em somente afastá-lo das funções, mas mantê-lo preso incomunicável e sem que ninguém soubesse de seu paradeiro por mais de 50 dias, mas praticamente jogá-lo na reserva, sem remuneração.

Nem precisa dizer ter passado anos dos mais difíceis na sequência, quando solto e perseguido. Todos os que lhe davam emprego, eram também perseguidos. Seu Fortunato foi um forte, resistiu e se virou, juntamente com a esposa, dona Edna. Ele nunca ser vergou, nunca se entregou e dignificou não só seu nome, mas os que defendiam verdadeiramente este país. Conseguiu a anistia mais de vinte anos depois, alcançando o coronelato, depois o almejado posto de brigadeiro. Atuou também como ilustrador, xilogravuras hoje valorizadas no meio cultural, tendo muitos de seus trabalhos assinados com o pseudônimo de Nát, inclusive n'O Pasquim.

A história de Edna e Guilherme são bem conhecidas entre todos do meio do Design, respeitadas e reconhecidas, portanto facilmente encontradas, mas essa do brigadeiro Jerônimo nem tanto. Sua biografia consta do livro Brasil Nunca Mais, com algo de todos os desparecidos políticos ou os que enfrentaram a ditadura com a cara e coragem. Dela muito me interessei, pois para alguém ser cassado logo no AI 1, é porque era realmente alguém de grande valor. Saímos de lá e essa história não me sai da cabeça. Assim como tantas outras, anoto o que posso e vou em busca do algo mais. Edna falaria horas mais conosco sobre assunto tão próximo, enfim, ela acompanhou toda a história de resistência do seu pai e de tantos outros na mesma situação. Não tínhamos só este assunto para tratar, enfim, após tudo isso que passamos, a sobrevivência mútua depois da cruel pandemia, celebrávamos também a vida. Ana saiu de lá mais que recarregada e eu, absorto pela conversa sobre seu Fortunato, um brasileiro não tão conhecido, mas dos tantos que resistiram e lutaram contra a ditadura militar, desde o primeiro momento.

CONVERSAS DE SULISTAS COM RECIFENSES ASSISTINDO JUNTOS FINAL COPA DO NORDESTE - QUIOSQUE NA BOA VIAGEM
Assistir a final da Copa do Nordeste, jogo entre o Fortaleza e o Sport Reccife (1 x 1 no jogo de ida) do quarto do hotel é algo pelo qual essa dupla não suportaria. Tentamos algo da feirinha na praia de Boa Viagem, bem defronte o hotel onde ficamos, mas ninguém estava com a TV ligada. Vamos em direção à praia e num quiosque, latão de Skol a R$ 7, mas animação pouca. Andamos mais um pouco e no próximo, quem toma conta do pedaço é seu Moacir, policial aposentado. A TV está ligada e pelos comentários ouvidos de soslaio algo motivando a parar e ali permanecer: torcedores do Santa Cruz, o time de maior torcida no estado e hoje na 4ª divisão do Brasileirão. Gostamos de cara. O Fortaleza fez um gol de pênalti, Picaxu, ex-Vasco e Paissandu. Faltavam 15 minutos para terminar a contenda e o pessoal do Santa torcia contra o Sport. Seu Moacir serve cerveja Skol gelada e nos aceita como espectadores e comentaristas, mesmo sendo um paulista e uma carioca. Mais ouvimos que falamos. O Sport tenta mas perde o jogo e o Fortaleza é campeão. Ao nosso lado, um engenheiro recifense, Leandro e nos dá dicas das coisas do futebol por aquelas bandas: "Santa é o time das massas, o Sport a gente rivaliza e o Náutico é o time da eleite local, dos barões da grana. Aqui todo mundo é Santa, mesmo ele estando na nhaca atual". O jogo acaba e a conversa agora é sobre os tais tubarões na praia de Boa Viagem. "Meu caro, eles existem sim, mas a chance de você ser mordido por um deles é pequena. É quase a mesma de você ir pro ir pro Rio de Janeiro e ser assaltado. Eles estão por aí, ano passado atacou uma garota paulista. Adentramos a água, mas estamos atentos", explica seu Moacir. Leandro ao saber sermos de Bauru, fala muito de um tal de Zeno, seu amigo bauruense, também engenheiro, com muitas obras no Recife. Ouvimos, não o conhecemos, mas damos corda, enfim, queremos conversar. Por fim, ele me indica onde comprar uma camisa do Santa a preços módicos, num mercado de rua e prometemos voltar amanhã, pois aqui na praia são poucos os lugares com cerveja Skol, gelada e com gente boa de conversa pra prosear sem melindres. Adoramos o pessoal e já estamos agendando algo pro final de nossa agenda de amanhã, enfim, estar enturmado é também sobreviver. E não é todo dia que, alguém como o Leandro coloca, tão logo o jogo termina, um pen drive com suas preferidas para rolar e tudo começa com Alceu Valença.

CAPIROTO NÃO É MALUCO, MAS MUITO MAL INTECIONADO
Na qualidade de historiador não consigo entender como lógica a frase do presidente capiroto deste país, 'rifando' técnicos que criassem obstáculos à aprovação de empreendimentos imobiliários, em detrimento da legislação existente no IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Todos devriam saber que, suas obrigações, a do instituto e do presidente deveriam contrariar os interesses privados. Portanto, a crise atravessada pelo Iphan tem particularidades que atravessam o ímpeto de destruição da arte e da cultura. Márcia Sant'Anna, do conselho Consultivo do órgão afirma: "Quando Bolsonaro diz que o Iphan não incomoda mais ninguém, ele revela sua importância. Historicamente, essa é uma instituição que não se dobra". Vivemos duas situações igualmente graves: deixar de fazer o que precisa ser feito e fazer o que não poderia ser feito. Enfim, o patrimônio histórico incomoda todos os governos, mas o que nenhum governo parece ter tido capacidade de fazer é, orgulhosamente agir de forma a privilegiar amigos e vangloriar-se de passar por cima da memória, do urbanismo e da legislação. Esse é apenas um dos tantos motivos para se posicionar contrário a tudo o que venha deste doente e criminoso desGoverno Federal.

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