segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

MEMÓRIA ORAL (25)

UM DIA EXCEPCIONAL NO HOSPITAL ESTADUAL

O Hospital Estadual Bauru faz um atendimento regionalizado, preenchendo deficência local e regional no atendimento ambulatorial e também clínico. Muitos aportam diariamente nos seus guichês em busca de tratamento médico. É comum ver ambulâncias e lotações das mais variadas cidades estacionando ali por perto logo nas primeiras horas do dia. Um desses atendimentos é prestado na Farmácia de Medicamento Excepcional. Para o paciente fazer jus a receber o medicamento prescrito pelo médico, ele obrigatoriamente, com a receita em punho, vêm até esse guichê e faz seu pedido. Espera um tempo determinado, podendo chegar até a 30 dias, onde são consultados estoque, feitas novas compras, voltando para buscá-lo na data marcada.
Conferi esse processo no dia 11/2, segunda-feira e o que vi foi de assustar. Na entrada principal é feita uma triagem, conferindo se o medicamento está realmente disponível. Só assim é dada uma senha e a orientação para o local onde irão aguardar serem chamados. O salão é imenso, com outros variados tipos de atendimento no mesmo local. Particularmente nesse dia, o que mais gera espera é o da retirada dos medicamentos. No canto desse grande salão, com espaço para umas 50 pessoas sentadas, tudo está cheio e todos os presentes completamente antenados com o barulhinho do sinal eletrônico, avisando que mais um número está sendo chamado. Na placa ali está escrito: "Retire seu cartão de acesso e aguarde a chamada do painel". A espera nesse dia está infernal, demorando até três horas e nem todos esperam esse tempo pacientemente.
Todos ali já passaram pelo médico e estão somente aguardando para retirarem seus medicamentos, muitos denominados de alto custo, tendo que retornar todos os meses. Quem necessita do medicamento todo mês tem que seguir rigorosamente as datas previamente marcadas, pois corre o risco de ficar sem ele. Cheguei por volta das 13h e o que vi foi muita gente estressada com a demora desse dia. O portador da senha 455 veio buscar medicamento para a esposa. Diz que custa mais de R$ 700 reais e não tem como pagar: "Pegava no Posto de Saúde e lá faltou algumas vezes, tendo que ir até o juiz para resolver. Há uns dois anos passou para esse Hospital. O remédio nunca faltou, mas tenho que enfrentar essa espera. Chega-se aqui bom e com a demora, ao sair já estou também doente, com os nervos em frangalhos. Depois chego no ponto e o ônibus demora mais um tanto. É a gota d'água. Para explodir é um pulo".
O portador da senha nº 464 me alerta para uma placa logo ali na frente: "Olhe lá, diz: Queremos ouvir você. Só que ninguém diz nada, somos todos cordeirinhos". Outro, o com o número 502 na mão é mais controlado: "Nunca vi isso aqui dessa forma, venho todos os meses e sempre é no máximo umas 15 pessoas na fila. Hoje passou dos limites. Se levantasse todo mundo, eles iam ter que fazer alguma coisa. Lá no atendimento, tem lugar para três pessoas, mas em certos momentos só tem uma. Assim fica difícil". Não precisa muito para ouvir outra reclamação, a do dono da senha 458: "Nêgo não tá pensando no dia de amanhã. Se hoje tá assim, imagina daqui há uns vinte anos. Terreno eles possuem aqui de montão. Precisam é olhar mais para a gente". O 492 veio com a mãe, pegou a senha, sentou e marinheiro de primeira viagem achou que sairia logo. Ela, com 70 anos, ouviu sobre o tempo de espera e a fez levar embora. Foi aconselhado a fazer tudo o que tem que fazer na cidade e só depois voltar, pois nada está andando rápido nesse dia.
O 472 foi mais esperto, trouxe uma revista e quando me aproximo desabafa: "Já estou ficando preocupado, pois estou quase terminando a leitura e tem uns 30 números na minha frente". Uma garota veio acompanhar a avó e acaba tentando fazer o tempo passar manuseando o seu celular, enquanto a vó procura assunto com a vizinha de cadeira: "Ela quer sair, ir lá fora, mas não posso deixar, não conheço isso aqui direito. E se não acho ela mais depois?". O 356 quando percebe estar chegando o seu número, levanta e vai mais perto da porta de entrada. Contei os minutos que ele ficou lá dentro, foram menos que quatro. Quer dizer, o atendimento até que é rápido, mas é que muita gente está por aqui hoje. Nisso, o portador do nº 441 me alerta que mais um guichê começou a atender. É uma esperança de que tudo vá um pouco mais rápido. Percebo que a portadora da senha 499 achou um lugar vago, mas logo levanta esbravejando: "Fora o tempo de espera ainda ter que tolerar sentar ao lado de gente com cheiro de suor forte é demais. Prefiro continuar em pé". Foi dar uma volta lá fora em busca de ares mais respiráveis. Um senhor de óculos, o 508 sabe que terá que esperar muito, observa o atendimento e comenta: "Se tirarem aquele velho, que é lento demais e colocar outro mais novo, com mais vontade, eu até que teria uma chance de sair mais cedo disso aqui". Um outro, de uma cidade vizinha está preocupado com a hora que fecha o hospital: "Perguntei pro moço e ele me disse que as cinco e meia fecham, mas quem estiver aqui dentro, tendo senha são atendidos".
Às 14h54 chamam o nº 398 e umas 50 pessoas continuam sentadas nos bancos disponíveis, outras tantas, circulam pelo salão e não desgrudam os olhos do painel. Duas senhoras estão revoltadas, acabaram se conhecendo na espera e para passar o tempo conversam, falam das novelas, do BBB e quando o assunto rareia voltam às reclamações: "Ouvi que uma das moças do atendimento está de férias e somente um guichê vai atender". É isso que ninguém entende, tinham dois guichês atendendo, agora voltou a ser somente um. Nada do que ouço difere muito um do outro, vejam o 485: "Quando cheguei tinha umas 120 pessoas na minha frentre. Já faz uma hora que estou aqui e a coisa não anda". Andar até que anda, mas não rende e o calor, cujo termômetro marca 30º, pelo abafado do lugar, com ventiladores desligados, a sensação térmica é de muito mais. Muita gente transpira e o desconforto aumenta.
Uma moça conta 48 números na sua frente e pergunta para um mais experiente: "Quero ir no mercado, será que dá tempo?". "Você está de carro?", pergunta o homem. Ela responde que sim, que o mercado é ali perto, uns 600 metros. Ela caba indo, mesmo ouvindo: "Se eles voltarem a ter dois atendentes, você corre risco de perder a vez". Quem eu vejo voltar é aquele que havia levado a mãe embora, o 492: "Levei ela em casa, dei uma passada no serviço, fui ao banco, chupei sorvete lá fora, encontrei dois conhecidos do bairro e papeamos um pouco lá fora e ainda faltam 42 números para o meus. Se soubesse, teria ficado mais". A 528 dorme com a cabeça encostada na parede e de vez em quando acorda sobressaltada. Olha para o painel e logo está a dormir de novo. Lá do fundo ouço algo repetitivo: "Não costuma ser assim. Não sei se fechou algum atendimento na cidade, pois dessa vez está demais. Esse era um dos setores que não gerava reclamações, mas hoje está demais".
Todos reclamam muito entre si, numa insatisfação generalizada, mas ninguém quer se identificar. Ouço o 524 falando disso: "Eu preciso do remédio, estou sendo humilhado aqui, mas temo perder o benefício do remédio gratuito se reclamar e causar problema para os funcionários. Eles podem inventar uma história qualquer e me bloquear o remédio. Não posso correr esse risco". No geral, é isso o que acontece com a grande maioria ali. Vou numa rodinha e ouço outra coisa: "Nesse sistema de senha não tem idoso, nem doente. O que vale é a senha, velho, moço, todos esperam a mesma coisa". Observando melhor nota-se muitos jovens vindo buscar os medicamentos para os mais velhos da família. Uma senhora de boné faz tricô para passar o tempo. No alto falante uma funcionária anuncia: "Pedimos a todos os pacientes fazerem silêncio. Permaneçam em silêncio". Com ironia, um lá do fundão diz: "Nem conversar pode, temos que além de tudo ficar de boca fechada".
E assim deve ter sido até o final da tarde. De todos que saiam do atendimento, outra constatação: "Conheço o pessoal que trabalha na entrega dos remédios. São todos legais e fazem o que podem. Estava bravo quando chegou minha vez, fui tão bem atendido, conversaram de forma tão agradável comigo que me desarmaram. Não tive como falar nada para eles. Afinal, eles não tem culpa de nada, são meros funcionários e fazem o que podem". Também não constatei se a demora é sempre dessa forma, mas que nesse dia foi, isso foi.
obs.: a última fora saiu fora de foco propositalmente.

Henrique Perazzi de Aquino, escrito em 12 de fevereiro de 2008.

3 comentários:

  1. Vergonha esse negócio aí e o tucanato dizendo que aquilo lá é um brinco, uma das sete maravilhas. Já vi que não é nada disso.
    J.

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  2. Sabe, às vezes fico pensando que memória fotográfica é a sua...

    Da forma como vc escreve as cenas não precisa nem confirmação das fotos (tremidas do celular) heheehehe.

    É serio, vc leva maquina digital ou usa o celular? Pura curiosidade...



    Beijão, espero que sua saúde esteja boa e que o episódio relatado aqui seja apenas mais um exercício



    Rosa Maria

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  3. sou um dos atendentes da farmacia... e fiquei impressionado com a reliadade q conseguiu colocar em seu texto. A vida na farmacia de alto custo não é das melhores. Lidamos com a realidade cruel do sistema unico de saude: a falta de estrutura. Somos treinados a atender bem (e agradeço a parte q nos toca). Garanto a todos vcs q nao é por vontade nossa que as coisas funcionam desse jeito. Esse texto foi publicado ha dois anos atras, e de lá pra cá, pouca coisa mudou. Começamos no HE com 4 mil pacientes cadastrados e hj ja ultrapssamos os 20 mil, com o mesmo numero de funcionarios, equipamentos e etc. Em 3 atendentes, em breve precisaremos trabalhar das 8 as 24 horas pra dar conta. O HE não é responsavel pela farmacia, apenas pelos funcionarios. A SES responde pela Farmacia, quando convém. Enfim, tenho a esperança q um dia melhore. Planos existem, mas só creio neles quando sairem do papel. Obrigado mais uma vez por nos elogiar (o atendimento) nos esforçamos pra nao descontar no paciente a falta de visao de um futuro melhor.

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