NÓS, OS ETERNOS PÉS-DE-CHINELO
Bastou um deputado estadual aqui de Bauru, o único inclusive, Pedro Tobias, do PSDB, ser colocado na parede sobre o escândalo da AHB – Associação Hospitalar de Bauru (desvio de mais de R$ 16 milhões de reais entre apadrinhados), estar resvalando perigosamente dentro do seu escritório político, para numa tirada de pouquíssimo humor libanês explodir diante das câmeras da TV Prevê local: “Não pode chegar qualquer pé-de-chinelo e denegrir sua imagem”. Denegrir não pode, mas exigir explicações e providências, todos, inclusive os ditos pés-de-chinelo podem (e devem). E a vida anda brava para eles, ou seja, a imensa maioria da população brasileira.
Pés-de-chinelo é o que não faltam nos dias de hoje, onde a grande massa tenta sobreviver mal e porcamente, não se sabe bem nem como. Enquanto uns poucos fazem grandes negócios, na sua maioria ilegais, os do lado de cá, os sem nada, fazem das tripas coração para continuarem comendo e sobrevivendo. Li o destempero do deputado ao lado de suas pessoas em situação pra lá de crítica, num dos pontos movimentados da cidade, o cruzamento das avenidas Nações Unidas e Nuno de Assis, bem ao lado da estação rodoviária de Bauru. Passo por ali diariamente por várias vezes e me constrange observar duas pessoas constantemente circulando pela região.
Na quinta, 26/11, por volta das 17h30 quem estava por lá oferecendo revistas para colorir aos motoristas e vestido como palhaço, sua indumentária diária era Reginaldo Campanholli (me pede para não errar, “com dois eles, por favor”) da Silva, 37 anos, paulistano e radicado em Bauru pelo amor aos trilhos e às muitas composições ferroviárias aqui localizadas. “Sempre, a vida toda estive nessa vidinha de vender doces e revistas nos sinais. Nem sei nem quando comecei. Já faz tanto tempo”, me diz sobre sua forma de ganhar a vida.
Chama a atenção pela roupa colorida e as tintas no rosto, uma idéia sua para aumentar a produtividade do que revende. Vive longe do restante de sua família, num quartinho no Hotel Cariani, ao lado da estação ferroviária, pagando meros R$ 15 reais de diária e mais R$ 5 reais de almoço e outro tanto no jantar. Seu horário é uma rotina dolorosa, estando por ali, faça sol ou chuva, sempre entre 14 e 20h. “Com doce bom ganho um pouco mais, já com a revista é bem menor, mas nem sempre tenho para comprar as caixas de gomas e drops. Dia de vender revista é triste, pois luto até o fim para conseguir o dinheiro para pagar o hotel”, continua seu relato.
Já dormiu na rua e quando lhe digo sobre ser um pé-de-chinelo, concorda entristecido: “Tem dia que não agüento o desespero e antes de voltar para o hotel, sento aqui na ponte e começo a chorar, pois tudo o que ganhei terei que entregar na portaria do hotel. Se isso é ser pé-de-chinelo, sou um. Luto muito e honestamente, muita gente me conhece e buzinam para mim (um motorista de ônibus faz isso instantes depois), mas o mais triste é a indiferença e a humilhação”. Com o sinal fechado, ele de janela em janela nos carros, noto alguns fechados, outros viram o rosto, mas outros tantos compram para ajudar. Essa é a rotina do Reginaldo, que além disso fala muito de ferrovia, do gosto pelos trens (“paixão começou quando tinha dez anos”) e um assunto para uma longa e bela conversa. Carrega consigo um modelo de ferromodelismo, presente do último evento realizado na estação ferroviária, no mês de outubro.
Nisso vem surgindo lá adiante o outro personagem que avisto sempre circulando por ali. Trata-se de Denis Marques, 58 anos e jornalista autodidata, pois não possui diploma, mas exibe crachás e um número de registro da profissão. Vim ali por sua causa, pois dias atrás me cercou na rua pedindo ajuda. Queria oferecer seu serviço, talvez para assinar pequenos jornais ou revistas, numa tentativa de arrumar alguma coisa fixa, um ganho certo, pois me conta estar cada vez mais difícil ter para comprar o que comer.
Ambos se cumprimentam, se conhecem do local. Tiramos fotos juntos e ouço elogios de um para o outro. “Estou com ele direto. Tinha uma época que queria se matar, dormindo debaixo de um viaduto, num bueiro. Incentivei ele a dar a volta por cima”, me conta Denis sobre Reginaldo. A história do jornalista Denis ele me conta mostrando um crachá de um jornal, o Sintonia Sertaneja, que circulou na cidade entre 1993 até 2003. “Parei com ele e tento voltar, mas está difícil. Quero ajudar num outro jornal, qualquer um que se interessar eu assino. Antes preciso ler, para ver se não vai prejudicar ninguém. Tenho preferência por tablóides, o que eles chamam de pasquim, ou seja, os pequenos jornais. Estou na área escrita, falada e televisada desde 1982”, me relata.
Hoje vive sozinho, está divorciado, mora longe dali, no Beija Flor, indo e voltando sempre a pé, mas não abandona a roupa social e a gravata, um traje obrigatório em sua indumentária. Tenta manter uma imagem, mas acaba por relatar que sobrevive por causa dos amigos e dos irmãos da igreja, a Assembléia de Deus do Belém, que lhe deram a mão num momento dos mais difíceis. “Os bicos pintam e ajudam bastante. Essa é a minha situação e não tenho vergonha de dizer. Me prometeram um emprego na Prefeitura, na Cultura e pularam para trás, me enganaram. Ofereceram outra coisa bem diferente da que sei fazer e não tive como aceitar, tenho princípios e vergonha na cara”, conta.
Atravesso a rua com Denis, que quer tirar uma foto debaixo de uma árvore, bem na beirada do rio Bauru. De lá continuamos avistando Reginaldo no senta-levanta, a cada abrir e fechar do farol. Noto um embrulho nas mãos do Denis e ele me conta ser seu jantar, um marmitex, embrulhado num saco plástico do mercado ali do outro lado do rio. Dali a pouco o tempo irá escurecer e ele segue seu caminho até sua casa. Dou também um tchau para Reginaldo, que prefere ficar até diminuir o movimento de saída do trabalho. Viro a esquina e caio no meu mundo, não sem antes tentar entender os motivos deles não poderem nem questionar um deputado ou quem quer que seja, de atitudes um tanto esquisitas. Nós, os pés-de-chinelo dessa vida, além da invisibilidade, temos que nos manter calados, pois alguns graúdos podem não gostar.
PS.: Quem quiser se comunicar com o Reginaldo, ele possui um e-mail, acessado algumas vezes durante a semana de uma lan-house. É o romulo_7820@hotmail.com . O Denis deixou seus telefones para os contatos de prováveis interessados em seus serviços. São os números 14.30185946 e 96956743.
Bastou um deputado estadual aqui de Bauru, o único inclusive, Pedro Tobias, do PSDB, ser colocado na parede sobre o escândalo da AHB – Associação Hospitalar de Bauru (desvio de mais de R$ 16 milhões de reais entre apadrinhados), estar resvalando perigosamente dentro do seu escritório político, para numa tirada de pouquíssimo humor libanês explodir diante das câmeras da TV Prevê local: “Não pode chegar qualquer pé-de-chinelo e denegrir sua imagem”. Denegrir não pode, mas exigir explicações e providências, todos, inclusive os ditos pés-de-chinelo podem (e devem). E a vida anda brava para eles, ou seja, a imensa maioria da população brasileira.
Pés-de-chinelo é o que não faltam nos dias de hoje, onde a grande massa tenta sobreviver mal e porcamente, não se sabe bem nem como. Enquanto uns poucos fazem grandes negócios, na sua maioria ilegais, os do lado de cá, os sem nada, fazem das tripas coração para continuarem comendo e sobrevivendo. Li o destempero do deputado ao lado de suas pessoas em situação pra lá de crítica, num dos pontos movimentados da cidade, o cruzamento das avenidas Nações Unidas e Nuno de Assis, bem ao lado da estação rodoviária de Bauru. Passo por ali diariamente por várias vezes e me constrange observar duas pessoas constantemente circulando pela região.
Na quinta, 26/11, por volta das 17h30 quem estava por lá oferecendo revistas para colorir aos motoristas e vestido como palhaço, sua indumentária diária era Reginaldo Campanholli (me pede para não errar, “com dois eles, por favor”) da Silva, 37 anos, paulistano e radicado em Bauru pelo amor aos trilhos e às muitas composições ferroviárias aqui localizadas. “Sempre, a vida toda estive nessa vidinha de vender doces e revistas nos sinais. Nem sei nem quando comecei. Já faz tanto tempo”, me diz sobre sua forma de ganhar a vida.
Chama a atenção pela roupa colorida e as tintas no rosto, uma idéia sua para aumentar a produtividade do que revende. Vive longe do restante de sua família, num quartinho no Hotel Cariani, ao lado da estação ferroviária, pagando meros R$ 15 reais de diária e mais R$ 5 reais de almoço e outro tanto no jantar. Seu horário é uma rotina dolorosa, estando por ali, faça sol ou chuva, sempre entre 14 e 20h. “Com doce bom ganho um pouco mais, já com a revista é bem menor, mas nem sempre tenho para comprar as caixas de gomas e drops. Dia de vender revista é triste, pois luto até o fim para conseguir o dinheiro para pagar o hotel”, continua seu relato.
Já dormiu na rua e quando lhe digo sobre ser um pé-de-chinelo, concorda entristecido: “Tem dia que não agüento o desespero e antes de voltar para o hotel, sento aqui na ponte e começo a chorar, pois tudo o que ganhei terei que entregar na portaria do hotel. Se isso é ser pé-de-chinelo, sou um. Luto muito e honestamente, muita gente me conhece e buzinam para mim (um motorista de ônibus faz isso instantes depois), mas o mais triste é a indiferença e a humilhação”. Com o sinal fechado, ele de janela em janela nos carros, noto alguns fechados, outros viram o rosto, mas outros tantos compram para ajudar. Essa é a rotina do Reginaldo, que além disso fala muito de ferrovia, do gosto pelos trens (“paixão começou quando tinha dez anos”) e um assunto para uma longa e bela conversa. Carrega consigo um modelo de ferromodelismo, presente do último evento realizado na estação ferroviária, no mês de outubro.
Nisso vem surgindo lá adiante o outro personagem que avisto sempre circulando por ali. Trata-se de Denis Marques, 58 anos e jornalista autodidata, pois não possui diploma, mas exibe crachás e um número de registro da profissão. Vim ali por sua causa, pois dias atrás me cercou na rua pedindo ajuda. Queria oferecer seu serviço, talvez para assinar pequenos jornais ou revistas, numa tentativa de arrumar alguma coisa fixa, um ganho certo, pois me conta estar cada vez mais difícil ter para comprar o que comer.
Ambos se cumprimentam, se conhecem do local. Tiramos fotos juntos e ouço elogios de um para o outro. “Estou com ele direto. Tinha uma época que queria se matar, dormindo debaixo de um viaduto, num bueiro. Incentivei ele a dar a volta por cima”, me conta Denis sobre Reginaldo. A história do jornalista Denis ele me conta mostrando um crachá de um jornal, o Sintonia Sertaneja, que circulou na cidade entre 1993 até 2003. “Parei com ele e tento voltar, mas está difícil. Quero ajudar num outro jornal, qualquer um que se interessar eu assino. Antes preciso ler, para ver se não vai prejudicar ninguém. Tenho preferência por tablóides, o que eles chamam de pasquim, ou seja, os pequenos jornais. Estou na área escrita, falada e televisada desde 1982”, me relata.
Hoje vive sozinho, está divorciado, mora longe dali, no Beija Flor, indo e voltando sempre a pé, mas não abandona a roupa social e a gravata, um traje obrigatório em sua indumentária. Tenta manter uma imagem, mas acaba por relatar que sobrevive por causa dos amigos e dos irmãos da igreja, a Assembléia de Deus do Belém, que lhe deram a mão num momento dos mais difíceis. “Os bicos pintam e ajudam bastante. Essa é a minha situação e não tenho vergonha de dizer. Me prometeram um emprego na Prefeitura, na Cultura e pularam para trás, me enganaram. Ofereceram outra coisa bem diferente da que sei fazer e não tive como aceitar, tenho princípios e vergonha na cara”, conta.
Atravesso a rua com Denis, que quer tirar uma foto debaixo de uma árvore, bem na beirada do rio Bauru. De lá continuamos avistando Reginaldo no senta-levanta, a cada abrir e fechar do farol. Noto um embrulho nas mãos do Denis e ele me conta ser seu jantar, um marmitex, embrulhado num saco plástico do mercado ali do outro lado do rio. Dali a pouco o tempo irá escurecer e ele segue seu caminho até sua casa. Dou também um tchau para Reginaldo, que prefere ficar até diminuir o movimento de saída do trabalho. Viro a esquina e caio no meu mundo, não sem antes tentar entender os motivos deles não poderem nem questionar um deputado ou quem quer que seja, de atitudes um tanto esquisitas. Nós, os pés-de-chinelo dessa vida, além da invisibilidade, temos que nos manter calados, pois alguns graúdos podem não gostar.
PS.: Quem quiser se comunicar com o Reginaldo, ele possui um e-mail, acessado algumas vezes durante a semana de uma lan-house. É o romulo_7820@hotmail.com . O Denis deixou seus telefones para os contatos de prováveis interessados em seus serviços. São os números 14.30185946 e 96956743.
Henrique,
ResponderExcluirÉ isso.
Resgate esses personagens anonimos, mas cheios de alma e vontade.
Creio que se você olhar para trás terá um livro sobre uma Bauru que poucos conhecem. Uma Bauru verdadeira. Não se esqueça que esse é teu compromisso com a história. Resgatar essa gente, verdadeiros bauruenses.
Meu nojo e meu escarnio para esse deputado ...
Abraços
ignácio Loyola Brandão
Henrique,hoje li sobre a Rute,o Reginaldo e o Denis. Pessoas de vidas tão diferentes, mas tão iguais quando buscam sobreviver, manter ideais e perspectivas, ao lado de um Pedro Tobias que de forma arrogante e desrespeituosa, tem a ousadia de se referir a pessoas que não fazem parte de seu grupo e do seu mundo de pé de chinelo.Em todos esses personagens tento ver o lado humano de cada um. Esses relatos nos levam a concluir como os políticos estão longe, muito longe do povo e da realidade , justificando ,através de suas falas o porque de estarem no governo.
ResponderExcluirQuero parabenizá - lo, pelo exemplo de humanidade e humildade que tem dado a nós, seus amigos, ao ouvir aqueles que muitas vezes nem é visto.Aqueles que muitas vezes precisam de um mínimo de atenção para que se percebam ainda humanos e vivos.
Em tempo: ainda não falei com a Rute.
Abraços.
Vera Tamião
Henrique: nem é preciso comentar sobre a sua maneira de escrever sobre gente de verdade...porque você É gente de verdade!!!
ResponderExcluirSó posso te dizer que, querendo ou não, já foi nomeado LOUCO POR ALEGRIA!!!
E TENHO DITO!
Abraços carinhosos, Rose
Parabéns Henrique, bela matéria, o Denis eu já conhecia, ele ia sempre na minha banca de revistas.
ResponderExcluirAbraço,
Ralinho Gomaia
Henrique:
ResponderExcluirÉ bem melhor ser pé de chinelo do que um bom sapato no pé comprado quem sabe com a quiréra dos sem sapatos...
É como diz o ditado " diga com quem tu andas que lhe direi quem és", não podemos ficar à mercê desta covardia imunda, e você mais uma vez merece o meu carinho e a minha admiração, continue assim, e se precisar é só falar que eu reconheço em baixo.
Beijão.
Valéria