quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

MEMÓRIA ORAL (79)

POSSO CUIDAR DO SEU CARRO?
Quem circula pelas imediações do Pronto Socorro Municipal, Instituto Adolpho Lutz, Postão de Saúde Estadual e AME – Ambulatório Médico de Especialidades, recentemente inaugurado, todos em Bauru, conhecem uma pessoa muito popular por aquelas imediações. Diariamente, de segunda a sábado, das 5h30 às 19h30, Jorge Adilson Valeriano de Barros, 48 anos, está devidamente identificado com seu jaleco azul, exercendo por ali a função de guardador de carros. Incansável no vai-e-vem, subindo e descendo a rua Rubens Arruda e suas transversais, a Antonio Zuiani até a Silvério São João, sempre com uma prancheta nas mãos e uma abordagem clássica, a tradicional, “Posso cuidar do seu carro”, Adilson faz do ofício sua única fonte de renda, a que lhe resgatou de momentos aflitivos sem emprego, e conseqüentemente, sem nenhum rendimento.

Na verdade, seu verdadeiro ofício é o de vendedor. Viajou por esse estado todo, fazendo de tudo um pouco. Nos áureos tempos foi vendedor de fitas-cassetes gravadas, que ia vendendo de cidade em cidade, cada dia numa diferente. Ganhou bastante e isso perdurou por quase dezessete anos. Depois vieram os CDs, já de curta duração, os gêneros alimentícios e produtos plásticos. Com a necessidade sempre batendo à sua porta, chegou um momento em que não podia mais escolher produto. “O que viesse eu tinha que pegar e sair vendendo. Mas tive um grande azar em minha vida. Sofri um acidente besta. Me acidentei num prédio, cai de uma escada e foram quatro parafusos no joelho, uma placa na perna direita e quase seis anos afastado pelo INSS. Batalhei muito, mas não consegui me aposentar e um dia tive a tal Alta Programada, que me obrigava a voltar a trabalhar. Mas trabalhar no que, se nem emprego tinha”, faz um breve relato de sua vida.

Foram os anos mais difíceis de sua vida. Não sabia o que fazer para obter alguma renda e foi ser ajudante de feira, arrastando a perna. Ganhava muito pouco, mas nunca perdeu a dignidade. Até que um dia descobriu que podia trabalhar com o pessoal ao lado do Pronto Socorro Central. Primeiro sondou o pessoal que já estava no local e soube conquistar uma grande amizade com os donos de pequenos comércios na região, surgindo depois uma vaga de guardador de carros. Não perdeu a oportunidade e desde então, lá se vão três anos e meio cuidando dos carros de todos que estacionam por ali.

Nossa conversa é interrompida constantemente com a chegada de novos carros e a saída de outros. E lá vai Adílson conversar com cada um deles. “Esse último me perguntou quanto eu cobro. Disse a ele que o valor a ser dado é o que manda seu coração. Não posso estipular nada e cada um dá o que pode”, me diz. Nisso passa um médico e ele vai até ele, como faz com todos. Paramos do outro lado da rua e conversamos com Fabiana Souza, que divide uma barraca de lanches com sua sócia, uma no período da manhã e ela à tarde. “Almoço com um marmitex cedido pelo restaurante onde distribuo panfletos e o jantar são dois salgados e um refrigerante que a Fabiana me dá quando a ajudo a limpar defronte sua barraca, antes de irmos embora”, fala diante dela. Além de guardar os carros, para dar uma pequena melhora nos rendimentos distribui cartões de um restaurante nas imediações e de um moto táxi. Quando aparece faz pequenas entregas na região, sempre a pé.

Pergunto sobre sua renda mensal e ele me diz que não passa de uns quatrocentos reais, tendo que pagar uma diária na pensão onde mora, na quadra três da Avenida Rodrigues Alves. “Saio tão cedo de lá, que nem café da manhã tomo. Venho tomar aqui, na barraca da minha amiga. Ajudo ela a abrir e a receber as mercadorias, depois tomamos um café com pão juntos”, conta. Percebo sua tristeza ao relatar seu relacionamento com alguns familiares: “Minha família mesmo são essas pessoas aqui. Muitos me abandonaram, mas continuo fazendo a minha parte. Visito meus três filhos todo domingo e até levo algum dinheirinho para eles, mesmo todos eles sendo maiores de idade. Não posso perder esse contato”. Com a prancheta na mão vai anotando os dados dos carros estacionados, enquanto não para de contar detalhes de sua vida.

Vestindo um jaleco azul sob a roupa, ganho do restaurante fica fácil identificá-lo. Diz que além dos dois, está para ganhar novos com os dados das firmas impressos na frente e nas costas. Vê-lo em atividade é algo a comover, pois não tem descanso, tal a intensidade de pessoas chegando ou saindo, um que vem só para conversar, outro deixa algo em sua confiança para ser entregue a um conhecido e a ajuda que não se cansa de prestar para os outros ali estabelecidos. Mal o movimento de carros diminui, pega na vassoura e dá uma limpada na calçada ou vai levar algo que lhe pediram fosse entregue ali perto. Adílson se desdobra o dia todo e se lhe perguntarem se está triste ou descontente, não pensa duas vezes: “Dou graças por ter encontrado isso aqui para me virar. Imagina na minha idade, parado e sem o que fazer. Onde iria arrumar emprego? Nem gosto de pensar nisso”.

Percebo um único motivo de preocupação, quando lhe falo se continua pagando as contribuições com o INSS: “Não vou mentir, parei, não tenho como pagar. Não me sobra para isso, mas penso muito em voltar. Preciso é pensar como poderei fazer. Sei que é o meu futuro que está em jogo, pois ninguém é eterno. Isso é outra coisa que também não gosto nem de pensar. Hoje estou muito melhor do que algumas situações do passado. Já vivi momentos de grande sofrimento e hoje com o pouco que me entra toco a vida”. Essa é a rotina do batalhador Adílson, que não tem mesmo muito tempo para pensar nessas coisas, pois corre bastante, com seu dia passando de uma forma muito rápida e ao chegar em casa, resta-lhe tempo só para um bom banho e cama. E tudo já recomeça no dia seguinte, mal começa a clarear.

Um comentário:

  1. Puxa, sou de Boracéia e conheço o Adílson de muitos anos atrás. Comprei dele muitas fitas-cassete com gravações musicais. Ele vinha com a pasta cheia de fitas e visitava todos os comerciantes, portas de fábricas, bancos e tinha como ponto central a praça da cidade. Voltava de uns quinze em quinze dias. Devo ter até hoje algumas fitas vendidas por ele. Que boa recordação e um pouco de tristeza por perceber que a vida não lhe foi lá muito boa. Pelo menos estáconseguindo dar a volta por cima.

    Leonardo

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