quinta-feira, 10 de maio de 2012


BEIRA DE ESTRADA (19) – esse texto fica valendo pelo do dia 09/05/2012
O ‘CHAPA’ VIROU MEU CHAPA – crônica publicada na Revista do Caminhoneiro, nº 290, abril 2012, circulação nacional, 100 mil exemplares.

Trabalho para uma grande empresa no transporte de mercadorias e na entrada de uma de nossas maiores cidades. Por opção da empresa, durante certo período, buscava uma pessoa para o auxílio no descarregar a carga. Áureos tempos, onde o perigo ainda não rondava com tanta intensidade a beirada de nossas estradas. Perdia muito tempo fazendo tudo sozinho, além do cansaço. Como em toda cidade é muito fácil identificar esses profissionais, denominados de “chapa”, localizados nas entradas da maioria delas, com identificação característica, rabiscos feitos de improviso em precárias placas e debaixo de uma cobertura arrumada em algum descarte. Madrugam nos seus pontos e de lá ao avistarem um caminhão a se aproximar, estendem logo seus braços e acenam em busca do ganha pão do dia. Vida difícil, como a da maioria do trabalhador brasileiro.
Nunca menosprezei esse serviço e poucas vezes me decepcionei. São pessoas simples como eu, porém com menos sorte da que tive na vida. Estão ali, faça chuva ou sol. Se existe algum a desmerecer a categoria, isso não estraga o todo, pois sempre existem aqueles fugindo à regra colocando tudo a perder. Foi ali, correndo meus riscos, num ponto de chapa que conheci uma grande pessoa e tenho uma história que transformou a vida de outras, inclusive a minha.

Seu Vinagre, esse seu sobrenome e nome de guerra, não era muito moço quando o conheci, mas me inspirou confiança desde que parei o caminhão numa manhã de muito calor e muita coisa por fazer. Estava um tanto perdido naquele dia e sua ajuda, além da força física para descarregar tudo, foi do auxílio em achar com a maior facilidade os endereços. Passava dos 60 anos, ainda um tanto forte, queimado de sol e de pouca conversa, sério e valente no trabalho. Bateu uma identificação logo de cara, tanto que brincava chamando-o de “meu chapa”.
Virou rotina parar sempre ali e levá-lo comigo. Ele já sabia o dia em que estaria de volta na cidade e ficava a minha espera. Falhamos poucas vezes. Os anos foram passando, acho que uns três. Falava muito dele na empresa, tanto que os convenci a contratá-lo como ajudante de carga. Estava louco para dar-lhe a alvissareira notícia. Pois justo naquele dia seu Vinagre não estava lá e ninguém sabia do seu paradeiro.
 “Faz quase uma semana que não aparece. Deve estar doente”, me disseram.
Acabei me virando como pude por algumas vezes e o pessoal da empresa me apertando: “E aí, vamos contratar ou não o tal sujeito?”. Num dia mais tranqüilo,
especulei entre os demais chapas até conseguir seu endereço. “Longe demais, escondido do mundo, não vai nem achar”, um me disse. Fui atrás, vasculhei os cafundós de um bairro suburbano e acabei por encontrar a sua residência.
Seu Vinagre estava doente, ruim mesmo e sem auxílio, me reconheceu pela voz, vivia de favores e com a ajuda do filho, um rapagão de uns 19 anos. Aquilo me cortou o coração. Fiquei de voltar e algo novo foi crescendo em mim. Vinagrinho, o filho tinha cacoete para a coisa, apesar da absoluta inexperiência. Perdi muito tempo em treiná-lo, mas ele foi um bravo, igual ao pai e hoje, passados dois anos do falecimento do velho e inesquecível Vinagre, quem está de carteira assinada e dando um duro danado ao meu lado é o filho, meu fiel escudeiro. Conto isso pra todo mundo, pois praticamente adotei o rapaz. É como se fosse mais do que um filho, parceiros absolutos de estrada.
HPA, contador de estórias e histórias (Percebam uma homenagem no texto ao meu dileto amigo, José Augusto Ribeiro Vinagre, ex-secretário de Cultura de Bauru e hoje agente na área, movimentando o setor com peças, eventos e espetáculos. Deixou de ser chapa e foi ser menestrel, o que, confesso, sabe fazer muito bem).

Um comentário:

  1. HENRIQUE

    Esses personagens são muito frequentes em nossas estradas. Caras de sofrimento, profissão sem registro em carteira, dependendo da sorte do caminhoneiro parar e lhe oferecer serviço. Aquelas barracas mal construídas, de papelão e sobras de construção, sofás velhos, escorados em alguma árvore de beira de estrada, demonstram o quanto é de muito sofrimento a vida dessas pessoas. Voce tentou demonstrar que eles são pessoas batalhadoras. Ficou legal.

    Tenho visto seu sofrimento para postar os textos, que tem saído meio desregulados. Dqui a poco engrena. Peça ajuda aos universitários...

    Paulo Lima

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