quarta-feira, 20 de março de 2013

MEMÓRIA ORAL (138)

ARARAQUARA, A HISTÓRIA COM SARTRE E TRÊS RESISTENTES LIVRARIAS
Ter um filho estudando distante 140 km da sua cidade requer de início uma visita coletiva ao local e uma circulada para conhecer alguns de seus locais mais interessantes. O filho é o meu, Henrique Aquino, 19 anos completados em 15 de março, a cidade onde irá estudar é Araraquara e o curso é o de Letras, na Unesp. Bauru com 380 mil habitantes, Araraquara 200 mil e o filho numa quitinete, num simples atravessar de rua da universidade e a partir dali um mundo novo à sua frente. Revi junto dele uma cidade que não pisava os pés fazia bem uns dez anos. A impressão foi ótima, com uma das ruas mais arborizadas que vi na vida, bem no centro, árvores se encontrando por todos os lados, bares com nomes sugestivos, aparente limpeza, terminal urbano de ônibus, shopping da Lupo e uma revelação que aos olhos do filho parecia insólita desde o princípio: “Você sabe que Sartre e Simone de Beauvoir aqui estiveram em 1960?”. Para mim isso é um fato, para ele, quase impossível. Antes de tudo, como primeiro ato de reconhecimento das novidades todas, uma visita ao local onde isso se sucedeu.

A Casa de Cultura Luiz Antônio Martinez Correa é um casarão incrustrado bem no centro da cidade, escadaria alta e a informação inicial de que ali funcionou a histórica Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais, reduto de encantos mil e avivando a memória de tanta coisa boa ali vivida. Quem nos acompanha na visita é a simpática funcionária pública, Rita Michelutti, a quatro anos no local, mas décadas de serviços prestados à municipalidade. Abre o cadeado da porta do salão que leva o nome de Sartre e na placa a data da histórica visita, 04/09/1960 e da tão propalada “Conferência de Araraquara”. O filho sai a ler os cartazes com as explicações e nomes dos ilustres participantes, Jorge Amado, Bento Prado Jr, Antonio Cândido, José Celso Martinez Correa, FHC e Ruth Cardoso, entre outros. “Faltou o Loyola?”, pergunto eu. Ela responde: “Devia ser muito novo, mas o irmão trabalha até hoje ali ao lado. Quer conhece-lo?”, me instiga. Permanecemos por ali, absortos no clima do local, mesa central e poltronas preservadas.”Além de tudo o que já sabia dele, descubro aqui ter sido também ativista literário, preocupado com os destinos da humanidade”, me revela o filho.

Rita nos explica algo desconhecido para os dois. “A vinda dele nasceu do questionamento feito a ele certa vez, por alguém daqui e Sartre lhe disse que não poderia lhe responder ali, mas nada ficava sem resposta em sua vida. A resposta veio com a visita”, disse e para sabermos mais iremos pesquisar a respeito. Dali fomos conhecer o MIS – Museu da Imagem e do Som, guiados pelas competentes mãos de duas servidoras, Karen e Amanda. Disponíveis as fotos da visita, mas para usá-las é necessário pedido à Cultura local. Viajamos com os olhos por tudo e por fim pergunto à Karen: “Sabe qual a impressão que estou tendo daqui. A de que é uma cidade menos conservadora que a minha”. Com um sorriso entre os lábios, já tendo residido em Bauru, me diz: “Deve ter tido muito boa sorte nos encontros que teve”. E mais não disse e mais não lhe perguntamos. Todas as três nos falaram de um curta-metragem feito na cidade, o “Pelé no jogo, Sartre no amor”, de improvável encontro entre esses dois, uma lenda que de “tão forte tem até testemunhas”, disse Rute, cuja filha, Julia, cineasta, participou da produção. O filho saiu satisfeito do encontro araraquarense e sartreano, sendo-nos sugerido visitas aos museus, um de paleontologia. Queríamos mesmo era conhecer algo diferente e o tempo urgia, encurtado pelo passar rápido das horas.
 
Indicado por elas fomos ter nas livrarias da cidade. Disseram-nos serem quatro. Uma delas descartada, a Nobel, no shopping da cidade. O interesse era pelas resistentes e nas calçadas, nas ruas, sebos e locais de encontro, reencontros e ainda com o romantismo dos velhos tempos.  Impossível uma cidade com um Curso de Letras não ter boas livrarias, fomos à busca dos detalhes e da confirmação disso. Na primeira delas, ainda com letreiros sendo repintados, letras garrafais com seu nome, Uraricoera Livros, dos irmãos Celso e Fábio. Dois ambientes e tudo bem dividido nas prateleiras, temas bem esmiuçados e até com uma atendente estagiária do curso de Letras. Algo salta aos olhos, vinis de Egberto Gismonte espalhados em cima de uma prateleira. “Vendo muitos ainda. Esses são raridades, saem por volta de R$ 40 reais cada”, conta Celso, um ex-estudante de Letras, hoje atrás do balcão, fazendo o que gosta e ampliando seu negócio. Numa rua de muita movimentação, a Sete de Setembro, ponto obrigatório de passagem de alunos, principalmente os da Uniara, uma particular famosa ali nas imediações. “Quando montei esse sebo, pensei como aluno, que a cidade mesmo tendo livrarias não tinha um sebo popular, que atendesse a custos mais reduzidos. Foi o que fiz e daí não parei mais”, conta, enquanto um casal compra três produtos, ele um LP, ela um livro e para a criança do casal, um DVD do Popeye. Celso encontrou seu nicho de mercado e dele não mais se afasta.

De lá, poucos quarteirões separam de outra, essa também muito bem montada, paredes altas um amplo salão, bem iluminado, livros bem dispostos e com uma impecável organização, tudo capitaneado pessoalmente por Marcos Murad, 52 anos e há 25 em atividade. A Livraria Murad é a cara do seu dono, um sósia do escritor Mário de Andrade, estudioso e apaixonado pela obra de Machado de Assis. Nem tudo é brilho na vida dos livreiros dos dias atuais, pois mesmo com o esmero com que continuam tocando seus negócios, algo é bem visível em todos. “Se tivesse que pagar aluguel não estaria mais aqui. O prédio é próprio, tenho duas funcionárias e quase não saio da loja, mas nada é como antes”. Quando lhe pergunto sobre a relação entre os estudantes e os livros sua resposta é clara: “Minhas vendas não são tanto pelo Letras, mas mais pelos médicos, advogados, pessoas cultas de todas as matizes e que continuam buscando ler os clássicos. Quem pergunta eu indico sempre esses e os tenho quase todos aqui”. É verdade, pois percorrendo com ele as prateleiras, fala de cada obra e não precisa abrir a primeira página para ver o preço ali fixado, sabe tudo de memória. Quando peço detalhes do acervo diz para clicar no Google duas palavras, “Sebo Araraquara” e “lá terá uma ampla visão dessa casa e de outras da cidade”.

A terceira livraria só conseguimos visitar após as 18h. É na mesma avenida, a Brasil, quadra da frente, Livraria Machado de Assis e sentado detrás de uma mesa com computador está seu proprietário, Antonio Vieira da Silva, 60 anos e ao questioná-lo do horário diz: “Não se preocupe, fecho às 22h”. Na primeira só sebo, na segunda uma mistura de ambos e nessa só livros novos. “Encontrando alguns com aspecto de velho, são pelo tempo aí nas prateleiras, mas são todos novos”, nos explica, contando também ter adentrado o ramo em 1975, tendo 40 anos de ofício. De tudo um pouco, mas uma atenção especial aos clássicos, o interesse do meu filho. Enquanto tira um da estante, consultando seu preço no computador, responde meu questionamento sobre a resistência dos que continuam abertos nas ruas das cidades interioranas: “Se pudesse faria outra coisa, mas pelo tanto que tenho investido aqui, vou continuando. Sou formado em Ciências Sociais, mas vejo que se tivesse seguido Química teria tido mais êxito. Hoje, as grandes editoras vendem mil livros para as grandes redes e não se interessam mais em ficar vendendo três ou quatro exemplares para os pequenos. É uma dificuldade continuar aberto diante de um quadro desses”. É um sentido desabafo, mas acredito, que não saberia fazer outra coisa na vida, diante de tantos anos vividos ali. Aproveita a primeira compra do filho e faz uma ficha com seu nome, enquanto sozinho no horário, tenta atender mais dois clientes.

Ao sairmos desses três divinais lugares, com algo comprado em cada um deles, algo dito pelo último a ser visitado, Antonio, foi o motivo de nossa conversação até a volta para a quitinete do filho. “Vocês fizeram o que tinha que ser feito, percorreram o roteiro literário da cidade, algo que nem todos mais fazem hoje em dia. Espero terem ganho o dia? Mas tem muito mais, voltem outras vezes”, disse-nos. Ganhamos, eu por vivenciar uma bela história e o filho por travar conhecimento com lugares onde sei voltará com certa regularidade. A noite caia sobre Araraquara, os trens ainda continuam lotando seu pátio ferroviário, os bares começavam a lotar e algo que não havia sido mencionado em nenhum instante, o tema futebol, foi lembrado pelo filho: “Qual o nome do time de futebol daqui, pai?”. Respondi, “Ferroviária”, mesmo ciente não ter ele nada puxado pelo também gosto futebolístico do pai, preferindo frequentar os lugares percorridos nas últimas horas. E vamos juntos assistir em sua apertada morada o vídeo que retrata o improvável encontro de Sartre com Pelé, numa das tantas reminiscências araraquarenses. Deixo-o com seus novos livros e volto os 140 kms até Bauru ouvindo no carro um som gaúcho, CD comprado no sebo do Celso.
 
OBS.: Para saber mais do que aqui foi tratado clique nesses links: Prefeitura Municipal: http://www.araraquara.sp.gov.br/Home/Default.aspx , Sebo Uraricoera: www.uraricoera.livronauta.com.br, Livraria Murad: http://guia.araraquara.com/empresaDetalhes/2711/livraria-livraria-murad-sebo-araraquara-sp
e Livraria Machado de Assis: www.livrariamachadodeassis.com.br

12 comentários:

  1. Caro Henrique,
    Acabo de ler sua visita a Araraquara.
    Gostei porque foi uma visita diferente.
    Você busca o que tambem busco por lá.
    Fez bem de evitar a Nobel.
    Imagine que procurei livro meu lá, a moça me disse: o senhor encomenda, em 15 dias estarão aqui.
    Trabalham na pre-historia.
    Gosto do sebo do Murad, sempre passo por lá, encontro coisas. Achei engraçadissima a jovem da Casa de Cultura dizer que eu não estava na conferencia do sartre, porque era muito novo.
    Ora, sou um ano mais velho do que o Zé Celso, e seis anos mais novo do que a falecida Ruth Cardoso.
    Não só estive em Araraquara, como tambem fiz a cobertura da palestra do Sartre no Teatro Municipal para o jornal Ultima Hora. Ele falou sobre Cuba.

    Enfim, bom saber que seu filho está na minha cidade.
    E assim nos falamos, você e eu.
    Abraços
    Ignácio
    Se a jovem da Casa de Cultura lesse, ou ao menos lesse as coisas ligadas a terra, teria lido a biografia de Ruth Cardoso que escrevi. O episodio Sartre está ali e com humor.
    Quanto ao meu irmão, João, ele mora em Goiatuba, Goiás, e dá aulas lá.

    Iganácio de Loyola Brandão

    ResponderExcluir
  2. Não sei se você concorda comigo mas Bauru em termos de cultura é pobre.....temos um simulacro de teatro,uma biblioteca municipal que parece um sebo,não temos um Cine Arte,museu?.pinacoteca?....estes dias foi aniversário do Marcos Pontes,o único astronauta brasileiro e latino,bauruense, e siquer uma linha foi escrita nos jornais,ao passo que competiçaõ de hipismo merece 1 ou 2 folhas de jornal,como se fôssemos centro de referência do esporte...poderíamos ter uma Sala da Fama para homenagear bauruenses que elevaram o nome da cidade...
    Holmes Rodolfo Martins

    ResponderExcluir
  3. caro ignácio

    meu pai iria ficar feliz por saber o quanto você incentiva o genro que foi querido ao longo do pouco tempo durante o qual tiveram contato. com muita alegria, fico feliz por papai e por henrique com tanta consideração. e, agradeço suas palavras de incentivo - que compartilho - para que o amor da minha vida prossiga nos escritos. até o todo sempre. muito respeito e admiração tenho por ti. um abraço forte da ana bia andrade

    ResponderExcluir
  4. Sr. Henrique

    Queria ter acesso a esse filme curta metragem citado no seu texto. Deve ser hilário e se tiver como assistí-lo em algum lugar me informe, por favor.

    Sou de Pederneiras.

    Lúcia Banhos

    ResponderExcluir
  5. amigo Ignácio
    Suas palavras são um conforto para quem promove uma mera tentativa de escrevinhar. Muitas pequenas falhas no texto, problemas até na transcrição, mas de tudo, o mais salutar é que muita coisa de bom pulsa lá pela sua cidade natal e vi isso na visita efetuada. Obrigado pelas informações que, com sua retificação podem desde já serem corrigidas. O importante é escrever e acredito que o que fiz foi enaltecer um lado de Araraquara, o bom e isso ficou evidenciado no texto, mesmo com todas suas imperfeições.

    Comprei o jornal de domingo de lá, o Tribuna Impressa e lá uma bela entrevista sua e algo sobre sua ida para a Feira de Frankfurt. Maravilha criativa!!!




    LÚCIA

    O vídeo é esse link abaixo e lá no youtube muito mais sobre a Conferência. Vale a pena ver mais outras coisas. Um instigante tema.

    http://www.youtube.com/watch?v=1gqDPw8LHVM

    Henrique - direto do mafuá

    ResponderExcluir
  6. Não sei se voces sabem, mas aos domingos os museus não abrem em Bauru, já falei algumas vezes com antigos secretários da cultura e até hoje nada.

    Fernando Calixto

    ResponderExcluir
  7. HENRIQUE, escreví meus 6 livros de Geografia, da Editora do Brasil, em Araraquara na casa de minha Tia. Gosto muito da cidade...tenho amigos por lá que não vejo há mito tempo.
    Boa sorte ao filho (será prof. ?)
    Abs.
    MURICY DOMINGUES

    ResponderExcluir
  8. Que texto lindo!!!
    Agradeço pela visita e pelas carinhosas palavras.
    Abraços!

    Karen Yoshizava
    MIS - Araraquara: (16)3322-9708

    ResponderExcluir
  9. Lígia Moraes de Freitas23 de julho de 2013 às 23:45

    Ah! Meus pais sempre contavam sobre a palestra de Sartre. Nós morávamos defronte a Faculdade de Filosofia, e, cá entre nós, eu e meu irmão éramos tão pequenos, que íamos brincar de pingue-pongue no Centro Acadêmica da Faculdade, e, hoje, acho que eles - alunos -, gostavam de nós. Mas, voltando a época não tínhamos nem noção de quem era Sartre e Simone..
    Mas, hoje, tenho a verdadeira noção em que época vivi. Nós inspirávamos cultura e como aprendi com meus pais.
    Ao ver todos estes escritos, acredito que Araraquara ainda inspira cultura. Fico muito FELIZ!

    ResponderExcluir
  10. Lígia Moraes de Freitas23 de julho de 2013 às 23:54

    Gente esqueci de comentar a respeito do Inácio de Loyola Brandão. Mamãe sempre acompanhou as suas palestras.
    Fugindo um pouco do assunto... quando em uma entrevista do Sr. Loyola, no programa do Jô, e ele lembrou do sorvete Creme Suíço do japonês, famoso em Araraquara, senti uma enorme saudade... Nós sabemos como é bom o sorvete. Quem não conhece, tem que conhecer, vcs irão adorar. Tomem um sorvete por mim e pelo Prof. e Mestre Loyola.
    Ahhhhhhh que delícia!!!

    ResponderExcluir
  11. Adorei o texto e tive a liberdade de postá-lo na página de Araraquara no Facebook. Quanto ao mestre Ignácio, minha admiração de leitor e conterrâneo e meus votos de muita saúde e muitos livros. Contando em breve com a visita de todos até a página deixo aqui o link abaixo. Abraço e felicidades!
    https://www.facebook.com/minhaararaquara

    ResponderExcluir
  12. O senhor visitou um dos locais mais legais de Araraquara: a Casa da Cultura. Mas deveria ter falado com as pessoas certas.

    ResponderExcluir