sábado, 5 de setembro de 2015

MEMÓRIA ORAL (186)


VIRGINIA E A MAIS LINDA REAÇÃO DIANTE DA FILHA

Uma foto é uma foto, mas algumas delas dizem muito mais do que mil ditas palavras. A do menino morto numa praia turca é uma dessas. Expressa uma secular luta dos vendilhões de almas, os que fazem tudo (e mais um pouco) por dinheiro, destroem nações com um simples estalar de dedos (falo dos EUA, viu!) e não estão nem aí quando a discussão resvala para a solução dos problemas causados justamente por eles. Essa semana, mesmo distante de Bauru, vi uma foto a me tocar profundamente. A de uma idosa mãe brincando e mostrando a língua ao ver diante de si a querida filha. Ela, igualmente diz mais do que mil palavras, por motivos diametralmente opostos a outra, mas igualmente diz.

VIRGINIA CALMON foi austera professora durante o período onde atuou como mestra de gerações nessa varonil Bauru. Uma altiva senhora, dura na queda, porém transparente em tudo o que faz. As professoras de antanho tinham outra forma para se imporem, outros tempos. De suas decisões, eram assim e pronto. E quem era inteligente respeitava, acatava sem pestanejar. Existiam pouquíssimas alternativas em contrariar decisões tomadas, que o digam seus filhos, dentre eles, a hoje espelho da mãe, Tatiana Calmon. Seu marido, o self made man (se fazia sózinho, por si só, nada mais) Fred Calmon a entendia e deixava essas decisões domésticas todas por sua conta. O inexorável tempo passou, Fredão já se foi, mas Gina, como Tati as vezes a chama, resiste bravamente e bem cuidada, ao rever a filhona, uma reação diferente para cada dia. Essa da mostrar a língua me lembrou de cara a minha mãe, confesso, quase chorei. Essa, já doente, quando diante de mim, me olhava com aquele jeito só seu e desferia um: “Seu velho. Tu ficou velho”. Nessas reações de nossos anciões, queridos e insubstituíveis, o nosso inapelável derretimento. Como não correr para seus braços e abraçá-los fervorosamente?


DUTRA É TAXISTA E PROSEADOR NAS 24H DO DIA
Quem gosta de ouvir uma boa história quando diante de alguém que goste de prosear, pronto, eis o cardápio para intensas e prolongadas conversações. Taxistas, na imensa maioria das vezes proseiam que é uma belezura. Eita categoria profissional para ter relatos de tudo quanto é espécie para relatar. Pudera, estão rodando pela aí, ouvindo relatos daqui e dali, assuntando coisas inimagináveis e além da nossa imaginação. Esse aqui do relato hoje é um desses, pessoa boníssima e quando instigado, conversador pra lá de dedéu. Vejam o que juntei dele.

BENEDITO DUTRA é daqueles senhores pau para toda obra. Por 14 anos foi motorista numa empresa que hoje não mais existe em Bauru, a saudosa Alexandre Quaggio, a dos circulares amarelos que durante décadas percorriam a cidade de ponta a ponta. Saiu pouco antes do fechamento da mesma e dela guarda boas lembranças, como a do velho Quaggio pegando parafusos e porcas pela oficina e reparando em sua oficina pessoal nos fundos de sua casa. Diz ter tido sorte por ter saído numa época onde conseguiu receber tudo o que lhe deviam. De lá para cá foi exercer outro ofício, o de taxista e lá se vão mais umas décadas, sempre com o volante às mãos. Histórias não lhe faltam e nelas, pelo menos umas cinco das tantas vezes em que seu viu frente a frente com gente querendo lhe assaltar. Teve sorte, pois continua inteirinho e sempre sorridente a recordar das façanhas todas. Duro mesmo foi quando tempos depois se deparou cara a cara com um que lhe havia assaltado e pouco pode fazer. Seu Dutra mora lá na vila São Paulo e tem seu ponto ali junto do antigo Aeroporto, o original, na Octávio Pinheiro Brisolla e desses dois lugares sai para atender seus clientes, sem medo de acordar cedo e nem de deitar tarde. Roda a cidade toda, a região e até lugares distantes, sempre de bem com a vida. Quer ouvir boas histórias? Simples, pegue o táxi dele e ouça um bocado delas.


DEUSALINA BATE NAS ONZE PARA SUSTENTAR A SI E AOS SEUS
As muitas histórias aqui retratadas possuem belos elos de ligação entre si. Em princípio você acaba conhecendo uma pessoa num certo lugar e depois, num outro momento lá está ela em outra situação completamente diferente. Na junção disso o doído dessa vida, saber que aquela pessoa que está ali naquele momento rindo alegremente já no outro seguinte está tendo que lutar pela conquista daquilo que é o sustentáculo de sua vida. Cada um possui algo de muito marcante e ao ir tomando conhecimento de cada nova história, a interior só daquela pessoa, a ampliação da admiração. As histórias populares são as que mais me tocam, me reviram tudo por dentro e ao expô-las, junto delas, a ciência de que muito ainda temos que fazer para transformar esse país em algo bem mais palatável.DEUSA ELIANA BARBOSA é uma conhecida, vibrante e aguerrida torcedora do Esporte Clube Noroeste. Lá pelos lados do estádio Alfredo de Castilho e entre os torcedores ela é conhecida como DEUSALINA. Mora bem do lado do estádio, no cruzamento da rua Benedito Eleutério com a Pixinguinha e fez do quintal de sua casa uma das tantas formas que vai buscando para fazer renda. Ali virou um famoso estacionamento de motos e até alguns carros defronte a mesma, não só nos jogos de futebol, mas também nos de basquete, voley e tudo o mais. Ela é a simpatia em pessoa e virou uma espécie de xodó, a mascote mais querida do pedaço. Deusa é vista em todas as festas ali perto na sede da torcida organizada, a Sangue Rubro e ali dá também aquela ajuda para manter tudo no seu devido lugar. Outra coisa que faz regularmente e sem nenhum tipo de receio ou vergonha é juntar latinhas de cerveja, sejas nos dias de festa ali na sede ou mesmo outras. Ontem, domingo, estava lá na Nações Unidas, na Parada da Diversidade ajudando uma amiga a vender bebidas e com dois grandes sacos juntava as tais latinhas, outra fonte de renda. Trata-se de uma mulher desprendida, dessas que, se preciso for arregaça as mangas e vai à luta no que for preciso para conseguir o sustento dela e dos seus. Gentil, amorosa, essa baixinha das mais simpáticas, também atua como garçonete, ajudante de cozinha, diarista e servente. Alguém com a cara e a vivência do time ali defronte a sua casa, o Noroeste, que um dia foi chamado acertadamente de “Onze Camisas Futebol Clube”. Ela encarna bem isso tudo.

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