domingo, 6 de março de 2016

BAURU POR AÍ (124)


A CASA DA ENY NOVAMENTE NAS PARADAS, COM ALGO SOBRE OS FIM DOS BORDÉIS

Alguns temas são inevitáveis quando se discute Bauru país (quiçá mundo) afora: o sanduíche, Pelé, Noroeste e a casa da Eny. Alguns abominam isso, o da mera lembrança desse prostíbulo, o maior do país no que se propôs. Representou uma época, cheia de muita infração penal acobertada sob seus lençóis, enfim, a prostituição de luxo encobria os inconfessáveis pecados (não só eles, mas também as infrações penais, essas ocultas até hoje) de muitos dos frequentadores. Esse outro ponto, nunca devendo ser esquecido quando da lembrança de casas como a bauruense da Eny Cesarino. Pois bem, algo recente na imprensa sobre o tema. Na Carta Capital 890, a da semana passada, um grande texto na abertura do QI, a “O fim do bordel”, sobre a morte de uma dona de bordel francês, talvez um dos maiores do planeta. Inevitável quando se fala de bordeis desse tipo a lembrança do maior no Brasil e foi o que o jornalista Nirlando Beirão produziu junto ao tema principal com o “O champs-Élysées em Bauru - Eny tinha votos e prestígio, além das meninas”. Vale e muito como registro não só de uma época, vai além do glamour e reafirma o que de fato persistiu por décadas na cidade. Compartilho o texto da revista, enviado a mim em solicitação por e-mail (ainda não está disponível no site da revista), para ser publicado aqui, até como forma de amenizar um pouco o tenso clima dos últimos dias. Ambos os textos merecem uma leitura e boa reflexão, se é que ainda isso é possível num quente (sic) domingo como o de hoje:

O fim do bordel?
A morte de Madame Claude, a cafetina mais influente
de Paris, decreta o fim da era dos luxuosos salons do prazer
Por Nirlando Beirão

Madame Claude, aliás Fernande Grudet, administrou por três décadas, dos 50 aos 70, o mais luxuoso bordel de Paris. Uma sólida porta de madeira vermelha, de dois gomos, daquelas típicas entradas de palais particulier, número 18 da Rue de Marignon, no chique e fino 8º arrondissement, off Champs-Élysées, preservava a discreta intimidade do lugar, ainda que os frequentadores quase sempre ficassem tentados a explodir em inconfidências entusiasmadas após experimentarem o variado cardápio erótico proposto pela magnífica cafetina. Só faltava divulgar no Pariscope.

O plantel, amealhado entre ex-modelos e atrizes frustradas, mais estrangeiras do que francesas, escandinavas e germânicas, de preferência, era de primeira e Madame Claude tinha a manha de tratar com deferência digna de um Príncipe de Gales ao mais anônimo de seus, digamos, comensais.


Taki Theodoracopulus, jornalista de origem grega e trêfego alpinista social a bordo de um conveniente passaporte inglês, escreveu que o trato chez Madame Claude era tão cativante que, quando em Paris, ele acabava se dedicando a um frenético rito de ida-e-vinda até o vizinho banco Rothschild, onde tinha sua conta. “Fiquei viciado, gastava tudo que tinha”, contou. Quem o apresentou às “Claudettes” foi o playboy dominicano Porfirio Rubirosa. Dizem que Rubirosa era o terror das profissionais por conta de seus dotes exageradamente avantajados.


Eram cachorros gordos os clientes dispostos a pagar até 500 dólares da época (5.000 dólares de hoje) depois que, no início dos anos 70, os petrodólares árabes vieram inflacionar os mercados europeus – inclusive o do prazer. À cafetina cabiam 30%, mas ela jamais quis se imiscuir nos outros aspectos da contabilidade pessoal das meninas, como as joias com que o Xá do Irã, Reza Pahlevi, presentava as suas favoritas. Em raríssimos momentos de generosidade a proprietária era até capaz de aceitar que pagasse a noitada, em desenhos seus, retratando em pelo a companheira de leito, aquele insaciável tiozinho de origem russa, artífice dos pincéis, chamado Marc Chagall. Os desenhos valeriam uma fortuna.

Podia acontecer de, na mesma noite, sentarem-se nas poltronas adamascadas do lupanar Moshe Dayan e Muammar Khadafi – mas, felizmente para Madame Claude e para o resto da humanidade, não aconteceu. De John Kennedy, sempre ele, sabe-se que elegeu para acompanhá-lo na alcova uma beldade bastante parecida com a mulher Jackie – “só que bem ardente”, deixou escapar a cafetina num comprometedor livro de memórias publicado em 1994, após se aposentar (Madam, assim mesmo, com perfume de nobiliarquia inglesa, é o título do livro). A autobiografia fechou o ciclo. Já simplesmente Fernande, ela se refugiou na Riveira francesa – onde veio a falecer, aos 92 anos, na virada do ano.

Levou com uma compreensiva indagação: ainda existirá no mundo de hoje lugar para o ofício esmerado e luxuoso de uma Madame Claude? Já que o sexo saiu à rua, respira leve e solto nos melhores ambientes, não carece mais de se dissimular entre almofadas de seda e lençóis de linho, trepida nos clubes e nos bares, não parece haver mais futuro viável para as eficientes gerenciadoras da libido de tão meritório passado.

No seu especial biz, não teve concorrente à altura, Madame Claude, mesmo porque sabia saciar a fantasia às vezes bem esdrúxula da endinheirada clientèle. Não dá para imaginar que Jack Nicholson e Marlon Brando, por exemplo, se contentassem com o papai-mamãe. E, em relação ao general De Gaulle, devia haver cuidado especial além de uma cama-gigante. Certa vez, temerosos de se exporem ao olhar alheio, o banqueiro Elie de Rothschild e Lord Mountbatten, vice-rei da Índia e primo em segundo grau da rainha Elizabeth, recrutaram um punhado de “Claudettes” para um animado raid aéreo sobre Paris e vizinhanças. Quem também gostava de recorrer ao delivery era o casal Maria Callas e Aristóteles Onassis. Meninas, mas também meninos eram despachados a domicílio para apimentar o já tórrido romance da dupla.

Em sua autobiografia, Madame Claude foi acusada de polir seu passado, em contorções de mitomania. Reivindicava, por exemplo, um nobre pedigree. Disse ter nascido num castelo do Loire e se educado, com votos de pureza, num convento de freiras. Na Guerra, teria aderido à Resistência e sofrido as consequências no campo de concentração de Ravensbrück. Um documentário francês tratou de demolir as frágeis estruturas de seu passado de fantasia, reiterando uma infância pobre e a iniciação precoce no trottoir da manjada Rue Godot de Mauroy, atrás da Madeleine, mas Patrick Terrail, chef do Ma Maison, de Los Angeles, e filho de um clã de restaurateurs afamados na França, veio socorrê-la na mais inverossímil das histórias. “Ela tinha, sim, no pulso, uma daquelas tatuagens de campo de concentração”, testemunhou. “Vi com meus próprios olhos.”

Nessa Los Angeles onde ela buscou refúgio, no fim dos anos 70, “deslocada como uma Napoleão em Santa Helena”, definiu um amigo, ciente de que a acusação de evasão fiscal era apenas o pretexto escamoteado pelo governo conservador de Giscard d’Estaing para reprimir o comércio do amor (Giscard aparentemente não estava no seu book de fregueses), a cafetina émigrée deu ao jornalista da Vanity Fair uma versão menos edulcorada de seu aprendizado. “Eu vendia Bíblias na rua”, afirmou. Na rua aprendeu que o vício rendia mais do que a virtude.

No biz do sexo não há nada o que contestar a respeito dela. Honrou o legado daquela Paris libertina e devassa dos bulevares, dos cabarés e dos cafés-concertos, a mística safada da Cidade Luz que acendia a libido nas noitadas do Pigalle, do Moulin Rouge, do Lido e do Crazy Horse Saloon. A Paris apimentada das cocottes e das filles publiques, das melindrosas e dos apaches. De seu QG do 8.ème, Madame Claude defendia a tradição. “Meus clientes não pagam pelo sexo, pagam por uma experiência”, gostava de alardear.

Que o diga Gianni Agnelli, dono da Fiat e um assíduo da maison, que se tornou tão íntimo daquela imperatriz dos boudoirs que a presenteou com um carro zero para consolá-la ao fim dois seis meses de prisão que teve de encarar –acusação de proxénétisme – ao voltar da Califórnia, em 1986 e, ao que consta, tentar encetar um retorno à sua expertise.

Embora ela própria não fosse muito interessada no assunto (teve uma ou outra relação afetiva, não mais que isso), Madame achava muito natural que o resto do mundo se deliciasse com sexo – e, mais normal ainda, que o prazer fosse objeto de compra e venda.

A atriz inglesa Joan Collins contou que, num tête-à-tête com a ex-Claude, agora Fernande, no restaurante Ma Maison, durante o desterro dela em Los Angeles, a cafetina soi disant aposentada se apresentou para agenciá-la. Sugeria que Ms. Collins, atriz de renome no teatro e no cinema, recém-divorciada de um magnata da indústria fonográfica, poderia acrescentar uns trocadinhos na sua pensão alimentícia encarando a vie à l’horizontale.


Na versão da atriz, que já tinha no currículo três casamentos e um rumoroso affair com quem mesmo? ah, ele, John Kennedy, o gentil convite foi descartado no ato. Em suas memórias, Madame Claude diz que Joan Collins chegou a cogitar. Mas, de todo modo, preservou a imagem. Ms. Collins é hoje uma condecorada Dame do Império britânico.


O champs-Élysées em bauru
Eny tinha votos e prestígio, além das meninas
Por Nirlando Beirão

Entre um bordel flaubertiano vizinho dos Champs-Élysées e aqueles prostíbulos xexelentos que, em Jorge Amado, insistiam quase sempre em se nomear Bataclã, instala-se a lenda de Eny e seu rendez-vous de fino trato, em Bauru, a mais de 300 quilômetros de São Paulo. A casa de Eny não aspirava ao esplendor de chez Claude, mas tinha seu aplomb, seu requinte, sua classe.

A paulistana Eny Cezarino (ela nunca se escondeu atrás de um codinome) era filha do italiano Giuseppe, que chegara ao Brasil, procedente de Salerno, a bordo de um navio infestado de cólera, e, garota, virou “a menina das marmitas”– delivery de casa em casa que servia para aumentar o faturamento da pensão de sua mãe, dona Angelina. Foi educada em colégio de freiras e estava destinada a esperar pelo príncipe encantado, de preferência muito rico.

Mas tinha corpo de escultura e uma labareda na alma, o que a encaminhou para um ofício onde ninguém, nem mesmo ela, esperava vê-la. Fugiu de casa, iniciou-se no Rio, passou por Paranaguá, aperfeiçoou-se em Porto Alegre, mas o destino, meio de graça, conduziu-a até o lugar onde faria fortuna e fama. Em Bauru, incorporou-se ao plantel da Pensão Imperial. Ganhou imediato prestígio. A riqueza das fazendas e do comércio incentivava o negócio do prazer e, em 1963, a morena de olhos perfurantes já podia se dar ao luxo de abrir seu próprio estabelecimento. Chamou-o de Eny’s Bar. Aceitou, em prol da hipocrisia generalizada, situá-lo fora do perímetro urbano da cidade. Ironicamente, passou a ser o melhor atrativo turístico de Bauru.
Nas décadas seguintes, tempos de fastígio, o cabaré que era muito mais que um cabaré chegou a hospedar 70 meninas, muitas delas com aquela mística de “universitárias”. Até estrangeiras ali militavam. O Eny’s Bar tinha 40 quartos, sauna, jardins, piscina, restaurante. O carisma da cafetina irradiava para muito além das fronteiras paulistas. “O grande bordel brasileiro” aposta, no título, o magnífico trabalho biográfico encetado pelo jornalista Lucius de Mello (publicado em 2002 pela Objetiva e reeditado em 2015 pela Planeta).

A premissa de seu impecável profissionalismo era a discrição. Eny recepcionava governadores, senadores, prefeitos. Comportava-se como uma dama de salon, benemérita da cidade que a acolheu e influente liderança local. Sabia alcovitar votos para seus favoritos (obrigava, por exemplo, suas demoiselles a mudarem o domicílio eleitoral para Bauru). Tão respeitável era aquele seu entreposto da luxúria que até a sacerdotes ela dava albergue e servia de confidente.

Morreu num hospital, em 1997, aos 69 anos, queixando-se de asfixia e de miséria. Os velhos e bons tempos de prostíbulos de excelência – dizia ela – tinham sido dizimados pela pílula, pela revolução sexual e pela decisão de as moças de família serem mais putas que as próprias putas. Com Eny falecia toda uma era.

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