terça-feira, 7 de junho de 2016

UM LUGAR POR AÍ (82)


OS LUGARES ONDE VOU QUANDO EM OUTRAS CIDADES – ESPAÇO 'NEM' NO RIO DE JANEIRO

Eu sou maravilhado com as coisas pequenas, as tais insignificantes para muitos, mas para mim de grande valia. As coisas poderosas, as dita de grande valia para mim possuem pouco significado. Passo três dias no Rio de Janeiro e sempre que por aqui aporto me cobram algo assim: “Mas não foi em nenhum lugar cheio de pompa, desses onde circulam as personalidades, os tais points da cidade maravilhosa?”. Isso me provoca sempre risos, pois esses lugares cheios de pompa são os que menos me interessa por aqui. Prefiro as vielas, cantos escuros, transversais. O que me encanta por aqui e por onde esteja são as quebradas do mundaréu. Prefiro muito mais papear num pé sujo com gente das mais simples, numa birosca suburbana do que num abastado botequim da moda e frequentado por turistas.

O Brasil em que fui criado, o no qual circulo e passo parte de minha vida passa muito longe dos salões requintados, das catedrais do consumo, dos shoppings centers, das esquinas chiques, dos restaurantes da moda e de lugares suntuosos. Sempre me sinto melhor nos campos de futebol de vila, nos botequins mais imundos, nos beirais de zonas do meretrício, mercados populares, feiras livres, terreiros de macumba, mercadinhos de vila, rodas de samba e de marafo. Não me dou bem sendo dono de nada e muito menos gosto de assumir responsabilidade de dar ordens a alguém. Na minha vitrolinha nunca deixou de rodar um Gonzaguinha, João Nogueira, Nei Lopes, Zé Ketti, Fátima Guedes, Tito Madi, Sérgio Sampaio, Aldir Blanc, Guinga, João Bosco, Leny Andrade e por aí adiante.

Sou um sujeito dos mais simples, nunca tive pompa para realizar tudo o que consegui concretizar na vida. Tento levar a vida na flauta, mas sempre peguei muito no pesado. As facilidades da vida passam ao largo de minha existência, mas as que insistem em circular no meu entorno, agarro com todas as mãos (e pés também) e daí tudo o que veem por aqui, as quais faço um certo estardalhaço, são sempre pequenas coisas, todas para mim de grande monta e de valia incomensurável. De uma pequena coisinha faço um mundão, amplio, reverbero e depois regateio de tudo. Tento transformar até coisas ruins em festa, pois viver em estado de tristeza é algo pelo qual não tenho a menor afinidade.

Levar a vida de uma forma mais simples requer saber que as limitações estão todas aí postas na mesa. A felicidade de shoppings centers é a que menos me interessa. Não vivo de fotinhos publicadas em colunas sociais, nem de viagens em lugares da moda. Quando consigo viajar, prefiro circular sempre pelos lugares populares, do que os indicados pelos guias de viagem. A verdadeira vida circula pela aí e é nessas arestas, encruzilhadas e becos, onde caio de boca. Faço tudo isso por me recuso a viver como manada, sempre dizendo sim, concordando com as convenções, os ditos pelas convenções. Não me peçam para ser politicamente correto, pois nunca o conseguirei ser.

Daí consegui voltar novamente pro Rio de Janeiro e por apenas três dias. Via a praia na chegada, da janela do ônibus da Reunidas. O pedaço que vi foi o mais fétido na Baía da Guanabara, parte onde ninguém mais sequer colocam os pés n’água, pois a poluição ali concentrada é aquela que faz o ar ter esse cheiro de bosta no ar. Olho de longe e lá do outro lado de um pequeno braço de mar o tal do Piscinão de Ramos. Já estive ali e sei que os papos que rolam ali devem muito mais interessantes do que os que rolam na praia do Pepino, da Barra e do Leblon. Cheguei e me instalei no subúrbio, pouco pra cima da Tijuca, mais precisamente no Andaraí, lugar dos mais aprazíveis. Uma delícia o lugar onde fui almoçar hoje, um botequim de esquina, com a parede vermelha, que apelidei de Vermelhinho e vi quando seu dono, um cearense e sua esposa o abriram anos atrás. Por causa disso, cai nas graças deles e toda vez que lá volto sou reconhecido. Dessa vez, a primeira vez nesse ano e mesmo assim fizeram festa com minha presença. Quer coisa melhor do que isso, ser reconhecido pelo dono do bar de subúrbio e ele vir sentar na sua mesa, puxar assunto, parar tudo o que está fazendo e querer saber das novidades? Meu almoço hoje foi assim.

Mas escrevo tudo isso só para contar de um lugar onde estive hoje pela manhã. Estava curioso para conhecer um tal de Espaço NEM, uma casa numa rua na Lapa, mas já do lado do aterro, apenas duas quadras, a Moraes do Vale. Tenho lembranças dali, coisa de uns vinte anos atrás quando vi sendo rodado um filme de quebrada, o Navalha na Carne (https://www.youtube.com/watch?v=bM-yR5RENUs), do escrito de Plínio Marcos e com direção do Neville D'Almeida, com a Vera Fischer no papel principal e o cubano Jorge Perrugoria no de galã. Aquelas casas antigas, com mato crescendo nas janelas lembra em parte a velha Havana e desde aquela época aquela viela me intrigou. Fui vender meus caraminguás e revi o lugar, parei para tirar fotos e quando me deparei com o tal do espaço, com inscrições de todos os tipos nas paredes, algo feito pelos seus frequentadores, parei tudo e me pus a fotografar disparando a maquininha em variados e múltiplos lugares. A lembrança do filme foi imediata e outras mais.

Daí, adentrei o NEM, que fico sabendo não é uma cooperativa, mas um COLETIVO, ou seja, um lugar cuja habitação é diversa, constituída só de travestis e no andar de cima a residência delas, no de baixo um espaço coletivo para eventos, festas, oficinas e trabalhos do mais variados. Não sei como conseguiram alugar o casarão, mas a administração tem a chancela de um travesti das antigas, Indianara, pela casa dos cinquenta anos e com umas quinze ali instaladas, as festas ocorrem para, na somatória pagarem o aluguel. Tomo conhecimento de cursos os mais variados ali ocorrendo, desde História a Química. Uma oficina de corte e costura fez o maior sucesso e algumas delas já conseguem os primeiros trabalhos. Tudo ali foi pensado e possibilitado com móveis conseguidos não se sabem nem como, sofás velhos, cadeiras idem e até mesas, que quando juntadas formam um lugar para reuniões ampliadas.

Quando das festas, que me dizem lotam e bombam, com quarteirão fechado para carros, fica mais gente do lado de fora do que dentro. Os que entram acabaram escrevendo de tudo nas paredes. Tem inscrições de tudo quanto é jeito, tamanhos variados e a maioria tendo como pano de fundo o tema LGBT. Engajadas, elas resistem juntas, coletivamente ao perigo desses últimos tempos, o que tenta restringir seus direitos. O lugar é pequeno e trata-se de uma experiência mais do que interessante de viver coletivamente dentro dessa selva de pedra. Elas perceberam que no mundo nos moldes como vem sendo tocado hoje, nada melhor do que se juntarem, pois assim se tornam mais fortes. E assim elas sobrevivem de uma forma audaz. Vi tudo superficialmente, numa passagem mais do que rápida na manhã do dia de hoje, menos de uma hora, mas nesse curto tempo pesquei algo dos mais interessantes, o de como o povo vai aprendendo a se safar dos embrulhos que os querem submeter. Lindo ver de como sacaram que juntos são fortes.

É disso que gosto, de ver essas possibilidades sendo concretizadas. Nada mais sei deles, além do que ouvi de três das ali residentes e pelas fotos aqui publicadas. Elas mostram a rua, o cenário no entorno e depois o interior da casa, o ambiente e a imaginação do que ali role. São espaços de resistência aos padrões uniformes do mundo global. Nesses lugares a alma de uma cidade grita a resistência. E, como se sabe, resistir é preciso. Por onde ande adoro ir, conhecer experiências iguais a essa, a envolver o povo mais simples e como fazem para ir driblando as adversidades. Adoro o modo de ser desse povo quando consegue atropelar convenções, fugindo do individualismo mais tacanho, esse predominando nos tempos neoliberais vividos nessa terra varonil. Adoro escrever sobre cidades, mas em questões assim, as ditas subalternas, as do meu interesse. São lugares como esse procuro conhecer quando estou em Bauru, Rio de Janeiro, Buenos Aires, Curitiba, Reginópolis ou qualquer outra.

2 comentários:

  1. Isso para mim é bagunça!!!

    Zelão

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  2. Sim, pode ser sr Zelão
    A bagunça faz parte da boa vida que todos os seres desse planeta teriam direito se vivêssemos num estado normal de convivência. Prefiro ela, a padronizada e advinda das camadas populares, ela ditando as regras, do que essa outra bagunça, a política e só privilegiando uns poucos. Não gosta de bagunça?
    Henrique - direto do mafuá

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