sábado, 22 de abril de 2017

DROPS - HISTÓRIAS REALMENTE ACONTECIDAS (141)


FRAGMENTAÇÃO DA VIDA SOCIAL – A RELIGIÃO INVADINDO SUA PRIVACIDADE

Li dias atrás um belo conceito dessa fragmentação social dos tempos atuais na revista Caros Amigos, entrevista com o sociólogo Sergio Adorno. Era mais ou menos isso. O mundo do trabalho como até então conhecíamos e era praticado, isso já se escafedeu e daqui por diante, prevalece o “deus nos acuda”, ou seja, um “salve-se quem puder”. A precarização foi oficializada e o mundo do trabalho se esvai. Com ele, a insegurança e tudo o mais. Junto dessa insegurança toda, começam a pipocar aqui e ali os salvadores do mundo. Os que enxergando tudo sob a sua visão, querem moldar todos os demais segundo a sua linha de pensamento.

Quem mais atua nesse sentido são segmentos religiosos. Tem seita para tudo quanto é gosto e sabor. Prometem mundos e fundos, tudo no campo do imaginário, do se você seguir a risca os preceitos ditados por eles chegará lá. Verdadeira aberração. Crescem desmedidamente, pois até hoje não vi nenhum governo barrar a explícita sacanagem com os incautos. De incauto, denomino todos os inseguros neste momento, pois fragilizados, estão mais propensos a cair em armadilhas. O que se vê são portinhas se abrindo a cada esquina e com isso, um acirramento competitivo entre eles. Cada um prometendo mais que o outro, tudo para conseguir o cliente, ops, digo, fiel. Apelam e a cada dia aumentam a intensidade da aproximação.


O sociólogo Adorno conta uma história e ela merece ser aqui transcrita: “Eu moro em um prédio e um dia um vizinho que eu nem conheço me liga e me chamando para ler a Bíblia. Eu fiquei chocado, é um bairro classe média, não vou dizer alta, Perdizes. Então você começa a se perguntar: nós estamos vivendo em um mundo onde também se perdeu o respeito à liberdade do outro. Você tem que se salvar, tem que salvar o outro. Então, você tem um mundo no qual você tem missões e essas missões tem que ser concretizadas. É cruzada. E cruzada é fonte de fascismo. Quando você acha que os seus valores estão certos e os outros estão errados, você acha que tem que partir da ideias para a ação e, portanto, você tem que expandir o seu universo de adeptos. Nós estamos em uma sociedade com traços fascistas bastante acentuados”.

Concordo em gênero, numero e grau e conto algo aqui do lugar onde moro. Tempos atrás uma vizinha nova chegou por aqui. Logo de cara deu para saber que não seguia a religião dela, aliás, não sigo nenhuma. Eu sempre respeito o semelhante e ouvia sua cantilena todo dia. Vinha em casa e me pedia para imprimir seus estudos bíblicos e se insinuava para comigo: “Deu uma lida no que imprimiu? Não quer saber mais a respeito? Quer conversar sobre isso?”. Respeitosamente me esquivava, não queria ser deselegante. Tudo seguia com essa anormalidade mais do que instalada até o dia em que marcou uma reunião de seu grupo em meu quintal e sem ao menos me comunicar. Cheguei e a coisa estava se consumando. Pedi a palavra e educadamente disse algo bem simples: “Sou umbandista declarado. Se continuarem com isso, me acho no direito de todos baterem tambor comigo ao final. Será uma troca”. Ela arregalou os olhos e tentou desdizer, com aquilo a encher o saco de todos: “Mas isso é coisa do diabo”. Foi o bastante para melar tudo, perdi a compostura. Não passou nem um mês, ela se mudou. 
Foi pregar em outro terreiro.
Falta muito pouco para isso...


Já que o negócio é contar história religiosa, conto outra, essa amena. Tinha uma vizinha divinal por aqui, perto dos 90 anos (ainda viva e bem de saúde). Conversávamos sempre no portão e quando passava diante de sua casa. Sabia ser ela muito religiosa, católica praticante da Paróquia Nossa Senhora Aparecida, conhecia meus pais, enfim, me conhecia desde criança. Certo dia, me vendo com essa barba branca, já meio arcado, andando lentamente, chegou perto e me fez um convite: “Faz tempo que quero lhe falar uma coisa. Você sabe, estou velha, cansada e atuo na igreja junto ao grupo de organização da Terceira Idade, com reuniões toda semana, grupo grande. Te vejo sempre escrevendo, fala bem e acho que seria a pessoa ideal para dar prosseguimento ao que faço. Não quer assumir a coordenação desse grupo?”. Educadamente recusei e no caso dela, houve compreensão mútua, nunca mais tocou no assunto. Já os demais, você renega e eles insistem, querem te salvar (do que, hem?) a qualquer custo e para tanto invadem sua privacidade.

Obs.: Aray e Anaí Nabuco, a Caros Amigos está ótima, como sempre, e com o novo formato, melhor ainda.

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