sábado, 6 de maio de 2017
MEMÓRIA ORAL (210)
O DIA A DIA DO TRABALHO DE UM ASSUMIDO “MARRETEIRO” – COMO SE VIRA UM DOS MUITOS SEM CARTEIRA ASSINADA A campainha toca lá pelas 9h30 da manhã e ao abrir a porta:
- Henrique, sou eu, o Carlo Moreira, vim te fazer um convite que é a sua cara. Vou fazer uma tour por uns clientes meus em comércios de lugares empobrecidos, comunidades carentes, as tais favelas e queria que viesse comigo. Vais poder escrever um daqueles textos seus. Vamos?
Cheio de compromissos pela frente, infindáveis escrevinhações, penso rapidamente e lhe respondo na lata:
- Vamos.
Apronto a matula, ou seja, máquina fotográfica, caneta e um bloquinho para anotação, subo em seu Scort 1988 e ouço melhor por onde iriamos;
- Meu caro, viajo a semana inteira como você bem sabe, percorrendo as vendas rurais e vendendo produtos variados, os que acho que teriam boa aceitação pelas estradas da vida e aos sábados me concentro mais na região periférica de Bauru. Em sistema de rodízio, começo lá pelas 9h e vou até o arroz secar. Hoje vou visitar clientes no jardim Nicéia, no jardim Europa e no parque das Nações.
Carlo é desses que, após dar muito murro em ponta de faca e ter a ciência de que não amis conseguiria emprego de carteira assinada, “se virou nos trinta” e cavoucou ele mesmo o seu emprego. E o que fez? Simples. Como já conhecia a precariedade de como ocorriam as relações comerciais entre as vendinhas enfurnadas pelas estradinhas de terra no entorno de Bauru e região (aproximadamente uns 200 km de cada lado), mais ou menos sabia o que cada um vende com mais frequência e foi em busca desses fornecedores. Passou a comprar caixas desses produtos e saiu mascateando estrada afora. Foi a maneira encontrada por ele para não se dizer desempregado e também auferir uma grana no final do mês nas despesas do seu dia a dia. Sempre se virando como pode, começou e não mais parou.
Sua experiência com venda é antiga. Trabalhou para atacadistas e outros ramos. Quando o cinto apertou, resolveu continuar circulando pelas quebradas de cada cidade, lugar onde se sente muito bem, o diálogo flui sempre bem, segundo ele e as relações comerciais são sempre cheias de calor humano.
- Eu nunca fui muito ligado nesse negócio de que iria enricar. Minhas relações profissionais sempre me levaram para atuar mais ao lado desses todos moradores dos cantos de cada cidade. Sinto-me bem ao lado deles. Eu sou um deles, moro do Eldorado II, lá perto do Fortunato, um lugar que dizem ser dos mais perigosos da cidade, mas para mim, um como outro qualquer. Sempre vendi para comércios iguais ou até mais periféricos de onde resido e te digo, nunca perdi dinheiro em favela. Perdi sim, em lugares mais acertadinhos. Nos mais pobres, faço sempre um toma lá dá cá, mas como já conheço muita gente, vendo para muitos no sistema de caderneta. Entrego hoje e começo receber semana que vem e todos eles cumprem o riscado, no fio do bigode. Nas cidades, chego e faço um pente fino, visito tudo e depois filtro. De cem visitados, uns vinte mantenho como cliente e acabam virando fixos.
Começamos pelo Nicéia, um bairro ao lado da rodovia Bauru-Agudos, ao lado de alguns condomínios residenciais e perto da Unesp. No bar do seu Carlinhos, ali estabelecido por mais de quinze anos, entra e pergunta da família. Um já sabe o que outro faz e eles encurtam a conversa, são objetivos. Dessa vez, o pequeno comerciante não compra nada, mas confirmam algo para a próxima semana. Segue em outros e em quase todos entra já falando o nome da pessoa atrás do balcão. Pergunto se conhece o nome de todos e enquanto caminhamos de um lugar, foi quando adentra uma nova venda:
- Não vai nada hoje dona Maria?
- Mas o que você trouxe?
E hoje essa foi. Dona Maria tem uma venda com luz elétrica e água encanada lá nos fundos do jardim Europa, quase nos fundos dos muros do condomínio Villagio, um dos mais afortunados da cidade. Ali tem muitos outros clientes. O casal dona Jacira e seu Clodoaldo são outros, dos fixos, desses que para e senta um pouco para papear. Ele roda pelas ruas de terra, bem abaixo do jardim América (dois mundos bem distintos um do outro e com uma divisão de poucas quadras) e ali algo a ser notado. Percorre os lugares com muita desenvoltura, conhece cada canto.
Ao dobrar uma esquina, sabe que no meio do próximo quarteirão tem uma venda. Para, desce do carro e deixa tudo aberto. Volta para pegar o que vendeu, entrega, recebe e assim segue adiante. A pobreza é nítida, todas ruas de terra batida, pouca iluminação, mas todas muito limpas, varridas, muitas arvores ladeando tudo e sem lixo. As lixeiras das casas, todas feitas de improvisada madeira são elevadas, para que os cães não espalhem lixo.
Questiono sobre sua condição de trabalho e ele me explica:
- Recolho sobre o salário mínimo para a Previdência. Por experiência com colegas, não adianta recolher sobre três ou quatro salários, pois na hora do vamos ver irei receber sobre um. Não vão me pagar os 100%, sei disso. Aprendi a não jogar dinheiro fora. Na minha idade, sei que vou pagar muito e me diga, onde irei arrumar emprego fixo? Gosto do que faço, daí cato o carro e me viro como posso. Quando me perguntam se sou caixeiro viajante, digo que não, pois me vejo numa condição até mais fragilizada e digo que sou, na verdade um marreteiro. Isso mesmo, eu compro e revendo e faço isso da forma mais elementar do mundo. Sei que a maioria dos lugares que percorro são abertos como pontos de pura sobrevivência, algo feito por não terem outra alternativa de vida. Eu chego, ofereço algo que eles precisam, me pagam e sigo a vida. Trago de tudo, desde cola, doces variados, chiclete, pipas, borracha de panela de pressão, presto barba, tudo na pronta entrega.
No Parque das Nações, ele para diante de um comerciante e faz questão que desça e conheça o seu Arlindo, mais de trinta anos de relações comerciais, um dos primeiros comerciantes do lugar. Ele é de um tempo quando não havia nada na região e hoje, o pequeno comércio cresceu e abriu uma padaria mais para cima. Com esse trabalho criou os filhos e nem pensa em sair do lugar. Recebe a visita de firmas atacadistas, mas nunca deixa de comprar algo do Carlo, afinal são amigos de longa data.
Assim é a rotina desse inusitado vendedor, mais um resistente nesses novos tempos. “Eu sei que até isso que faço está com dias contados, mas como não sei o que farei depois disso tudo se esgotar, continuo e te digo, gosto disso tudo, de ir de um lugar para outro, de conversar o dia todo, prosear, fazer minhas vendinhas e levar todo dia algo para casa. É o que sei fazer”. E faz rindo, mesmo com todas as dificuldades mais do que certas pela frente. Encerra com uma frase lapidar e cheia de esperança, uma que para ele nunca morre: “O sol nasceu para todos. Tem quem venda para o comércio dos mais ricos e tem quem venda para a venda dos mais pobres. Eu sou um desses. Alguém precisa continuar fazendo isso, para os que nem condições de se deslocar e ir buscar produtos em atacadistas. Quis te mostrar isso e queria que você contasse isso numa daquelas histórias que você escreve”. Contei...
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