sábado, 7 de março de 2020

PALANQUE - USE SEU MEGAFONE (137)


ELEVADOR DE SERVIÇO É O LUGAR DOS POBRES

Eu moro num edifício com 18 andares e antes morei num outro, menor, mais popular e com muito mais moradas. Em ambos essa praga de dois elevadores. Não que isso não seja bom. Ter dois é ótimo, pois quando sem um, você pode utilizar o outro. No que morei primeiro não existia a distinção de Social e Serviço, mas nesse atual sim. Isso é um praga. Tive inúmeras pequenas histórias envolvendo sua utilização e uma delas conto aqui, pois exemplifica muito bem o que escreverei a seguir. Estava no subsolo, chegando com o carro e peço o elevador. Chega junto de mim um vetusto cidadão engravatado, conversamos o trivial um bocadinho só e quando o elevador chega, o vejo saindo e falo: “Vamos juntos?”. Sua resposta é definitiva para definir a diferenciação existente somente neste quesito elevador: “Obrigado. Eu não faço uso do elevador de serviço”. Deu a entender não ser para ele e se foi atrás do Social (sic).

Esse tema dos dois tipos de elevadores no Brasil merece um textão daqueles, prova inconteste dessa loucura, onde um tipo de gente usa um e outro tipo outro. Queria ter escrito, demorei e essa semana leio algo definitivo na coluna de Esther Solano sobre os elevadores de serviço, “Cenas do Brasil que odeia pobres”, para a edição 1095 de Carta Capital. “São os objetos do cotidiano que carregam mais crueldade, porque a crueldade deles é aquela que se repete todo dia, a todo instante, sem descanso, um ciclo infinito e ao mesmo tempo tão costumeiro que ninguém lhe presta atenção. Quando vi o primeiro, pensei ser estupidez e um desserviço sem sentido ter um elevador só para isso, até que certo dia entendi seu significado. (...) Eu, no Brasil, aprendi muito por socos no estômago. Lembro-me do momento, do rosto dela, uma senhora de uns 60 anos, que trabalhava como doméstica, e que nunca tinha ido à Disney. Eu entrei no prédio com ela, abri o elevador social (o de serviço estava no oitavo andar) e ofereci a ela entrar junto. Ela recusou. “Não , não quero incomodar”. Nesse instante, eu me perguntei interiormente da forma mais ingênua possível: “Como uma pessoa incomodaria outra por subir junto no elevador?”. Respondi que não ia me sentir incomodada e ela soltou o soco no estômago: “É que tem muito morador que não gosta que empregada vá junto no elevador, por isso sempre pego o de serviço”. Insisti e, finalmente, ela concordou em subir comigo, mas meu cérebro estava em curto-circuito, como quando você entende sem entender.

Cheguei em casa, sentei no sofá e estive um longo tempo pensando no que acabava de escutar. Queria dizer que havai gente que não gostava de dividir um espaço físico por alguns segundos com o “serviço”. Queria dizer que havia gente que pensava que o serviço, ou seja, o pobre, deveria respirar outro oxigênio, transpirar por outros espaços, viver outros mundos. Até então, nunca havia refletido com cuidado sobre o que a expressão “ódio a pobre” significava. Aquela senhora me fez entender com toda a dureza da simplicidade de uma cena do cotidiano. (...) Era ódio, era asco. Um Brasil que odeia e sente asco dos pobres. O Brasil do elevador de serviço, do avião só para “eles”, da Disney. O Brasil de Guedes que não suporta o pobre e que sempre farão tudo para eliminá-lo”.

Encerro esse texto com outra historinha, essa de minha lavra. Outro dia aqui no prédio acabou a força e os elevadores pararam de funcionar. Eu subi pela escada, tinha pressa numas coisas, Ana preferiu sentar lá embaixo e esperar voltar. Depois ficamos a falar sobre o assunto. Vimos uma senhora de mais de 60 anos, empregada doméstica num dos andares superiores, creio que 17º. Ela chegou, botou a mão na cabeça e decidiu subir sem pestanejar pela escada. Brincamos com ela: “Sente aqui no saguão, deve voltar logo”. Ela de cabeça baixa deu o soco no estômago: “Não posso sentar aí e muito menos esperar, meu patrão não vai gostar. E já estou um pouco atrasada”. Não existe mais sensibilidade humana nas relações e ao serviçal só resta cumprir sem pestanejar. Sempre foi assim por essas plagas, sei não ser exclusividade dessa bestialidade bolsomínia, mas agora tudo mais acentuado, declarado, explícito. O ódio viceja mais e mais, pulsa por todos os poros, tanto que Guedes, o ministro do pibinho não se conteve e soltou o que pensa sobre as empregadas viajarem de avião e, ainda por cima, para a Disney.

Aqui no prédio viceja regras impondo que o uso do Social é restrito para pessoas e o Serviço para tudo o mais, desde compras, mudanças, caixas, etc. Tudo bem, sem problemas. Não existe nada prescrevendo sobre pobres, pois isso não está no papel, e sim nas ações, mas eles só usam o de Serviço. Certa feita um amigo negro chegou e me avisaram pelo interfone com um algo a mais: “Deve deixar subir pelo Social ou de Serviço”. Foi a gota d’água, desci deixando recado para os porteiros de todos os turnos que, todos que chegassem para minha casa deveriam subir pelo Social, sem nenhuma distinção, desde o eletricista, manicure, amigos, visitas, enfim, todos. Até o momento nada me disseram, pois como sou visto como o “vermelho” do pedaço, creio eu, também me quisessem ver no de Serviço, mas se seguram que é uma beleza.
OBS.: As fotos são meramente ilustrativas.

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