* Ao longo do dia, algumas tristes historietas a demonstrar como será daqui por diante, com o advento da "modernidade", as tais relações trabalhistas.
1.) Vladimir (o nome é fictício, a história é bem real) é meu dileto amigo. Mora perto do Mafuá, nordestino do Recife, um trabalhador braçal, pegando no pesado de segunda a segunda, saqueiro até meses atrás, devidamente registrado e tendo conseguido anos atrás algo pelo qual sabe, daqui por diante praticamente impossível: "Viajei para rever os meus em dois momentos de avião. Quando conseguirei novamente?". Final do ano passado o patrão, sob alegação dos tempos serem outros, o chama para reservada conversa, diz das tais dificuldades, vai ter que fechar a filial e será despedido, mas continuará precisando de seus serviços. Ufa! pensou ele, menos mal. Hoje, mesmo em tempos de pandemia, esposa desempregada, continua trabalhando e sendo a única fonte de renda em sua casa, é chamado de duas a quatro vezes por semana para serviços na antiga empresa, mas seguindo o novo padrão, mais modernoso, não tem mais vínculo empregatício com a mesma. Trabalha por empreitada, agora é um empreendedor, porém, com o que ganha, muito menos que antes, consegue sobreviver, pagar as contas e comer, mas desde então não mais recolhe os valores mensais para a Previdência. Nada sobra para isso. Eis a tal da modernidade que invadiu de vez as hostes trabalhistas brasileiras, dando adeus para o atraso de antes, onde existiam firmas conscientes ou obrigadas a respeitar a legislação vigente, mantinham funcionários registrados, recolhendo benefícios. Bolsonaro & Cia chegou para transformar e modernizar tudo, resolvendo assim de vez a situação do pobre e desprotegido trabalhador brasileiro.
Essa história me faz lembrar trecho de artigo que li na semana, da verve do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, "O trabalho tem futuro?": "...a aceleração do progresso tecnológico deslocou um contingente significativo de trabalhadores para atividades de baixa qualificação, o que deprime a produtividade e a capacidade de consumo dos trabalhadores submetidos ao emprego precário. Em seu rastro de vitórias, as legiões do progresso tecnológico deixam uma procissão de desgraças: além do desemprego, promovem a crescente insegurança e precariedade das novas formas de ocupação, a queda dos salários reais, a exclusão social".
Que seria do país sem a modernidade batendo à nossa porta e mudando tudo? Vivo de saudade e louco para dar minha modesta contribuição para virar logo de uma vez por todas essa mesa. O país não aguenta mais tanta modernidade advinda de Paulo Guedes e sua cabeça só pensando e atuando pra resolver os problemas da minoria mais rica. Desde então, histórias como a aqui relatada pululam por todos os cantos.
2.) Juca (seu nome é fictício, a história bem real) faz entregas regularmente aqui no portão de casa e em cada retorno faço questão de prosear e ir tomando conhecimento de como se dá suas relações trabalhistas. Trabalha para um conhecido restaurante da cidade e me diz ter começado há pouco tempo, coisa de três meses. Pergunto se sabia algo de como eram as coisas antes da pandemia, tipo ano passado. Seu relato: "Dentre todos os motoqueiros hoje trabalhando na firma, só um já vinha trabalhando anteriormente. Ele me disse que, antes era registrado, carteira assinada e tudo, mas tudo mudou e o patrão, alegando as dificuldades, cortou os registros e a partir de então todos passaram a trabalhar no novo formato. Nenhum de nós somos funcionários da firma e nem do aplicativo, é como se fossemos patrões de nós mesmos. Ganho pela produção que tenho em cada dia, alguns dias mais de doze horas nas ruas. Quando as entregas são poucas ganho menos, tudo em cima de percentual, valor definido e no montante geral, um percentual. Não consigo controlar direito, mas como tenho esposa e um filho, tudo o que ganho gasto em casa, não sobrando mais nada. Previdência já era, ainda mais porque para todos que vão perguntar isso para o patrão, ele diz que agora nós somos os nossos patrões". Essa sua história, concluída de forma melancólica no último sábado: "Para evitar qualquer tipo de reclamação, o patrão, que diz agora não ser mais patrão, mas sim o que me possibilita atuar como empreendedor, mostrou uma lista com vários nomes de motociclistas entregadores, como a deixar bem claro, para ficarmos quietos, pois a fila na porta esá grande. Trabalhamos assim, agora é dessa forma, carteira assinada não existe mais".
Volto ao mesmo artigo do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, "O trabalho tem futuro?", última edição de Carta Capital, onde ele cita o filósofo Franco Bifo Berardi em Phenomenology of The End, tentando desvendas as transformações em curso: "O capital deixou de alugar a força de trabalho das pessoas, mas compra 'pacotes de tempo', separados de seus proprietários ocasionais e intercambiáveis. O tempo despersonalizado tornou-se o agente real do processo de valorização e o tempo despersonalizado não tem direitos nem demandas. Apenas deve estar disponível ou indisponível, mas essa alternativa é meramente teórica, pois o corpo físico, a despeito do desconsiderado juridicamente, ainda tem de se alimentar e pagar aluguel".
Essa a crucial transformação nas relações de trabalho como até então a conhecíamos e era praticada pela legislação trabalhista e o capitalismo contemporâneo, ambos sendo desmontados. O tal do progresso em curso desmonta de forma vil, pusilâmine a dissolução das relações de assalariamento, o dito 'emprego formal' que sustentou essas relações ao longo dos séculos de evolução da assim chamada economia de mercado. Todos estão jogados na dura e crua realidade das ruas, sendo taxados de empreendedores, quando na verdade estão sendo mais e mais escravizados.
3.) Flávio (esse nome é inventado, mas a história é bem real) é um garotão novo e fica quase todo dia vendendo doces embrulhados em papel celofane ali na esquina das Nações com a Marcondes Salgado. Enfiaram na cabeça dele que é um empreendedor e assim se apresenta diante da janela dos carros que param no semáforo. Chega sempre muito animado, bem vestido, algumas vezes até com gravata, numa das mãos cesta com os doces e noutra uma placa com dizeres de que é um vencedor, que vai chegar lá e se tornar um empresário de sucesso a partir da iniciativa. Se tornou conhecido de muitos, até pela persistência, mesmo na adversidade, uma constante nos tempos atuais. Enfiaram em sua cabeça que, se ainda não está conseguindo auferir a contento os dividendos para tanto, algo ainda está fazendo errado, ou seja, precisa se dedicar mais, esforços além do já realizado. Diante do seu sorriso eu me contenho, não quero ser desmancha prazer de ninguém, ainda mais de um jovem na flor da idade, cheio de sonhos e esperançoso de que, com o que faz já é um arrojado empreendedor. Diante de um mundo onde o emprego na forma anteriormente conhecida, com carteira assinada é algo praticamente em extinção, a proposta do capitalismo é jogar todos na roda viva, fazendo-os girar em círculos e diante de futuros fracassos, não culpem o sistema e sim, a incapacidade pessoal da pessoa em não ter se adaptado a contento. É muita crueldade embutida num modelo cada vez mais excludente.
Volto novamente para o texto que li do Luiz Gonzaga Belluzzo, na última Carta Capital, o "O trabalho tem futuro?", onde ele cita algo mais sobre esse novo formato em experimentação e com cobaias nas esquinas: "Os trabalhadores autônomos, empreendedores de si mesmo, assumem os riscos da atividade - investimento, clientela -, mas estão submetidos ao controle da plataforma na fixação de preços e repartição de resultados. (...) O capitalismo das plataformas transforma a possibilidade de tempo livre na ampliação das horas trabalhadas, na intensificação do trabalho, na precarização e no empobrecimento do óleo queimado que sobrevive na bolha cada vez mais inflada dos trabalhadores em tempo parcial".
O rentismo, que na verdade é a forma mais vil do capitalismo, pois se antes existia o empresário investindo em seu país, propiciando empregos, hoje nem isso, com estes vivendo da lucratividade do dinheiro amealhado e dando lhufas para a legião de desassistidos, hoje todos na rua da amargura, sem eira nem beira, futuro cada dia mais incerto e nebuloso. Chove gente pelas esquinas se virando como podem para tentar uma honrosa saída, essa cada vez mais complicada e quase inalcançável.
OBS.: Todas as fotos são meramente ilustrativas.
Diziam que era só tirar o PT e tudo iria melhorar!!! A classe média com medo de ver os pobres ascenderem, pq odeiam pobres, concordaram com essa politica de destruição. As elites, a burguesia... ahhh....., os ricos serão sempre ricos não importa o que aconteça com o país!!!
ResponderExcluirNilza Tavares