domingo, 19 de dezembro de 2021

FRASE DE LIVRO LIDO (172)


FEIRA, BUKOWSKI, GEBARA, ESSO E ME SINTO RECARREGADO
Domingos são sempre os dias entediantes da semana. Não fosse a feira, a maior delas, a da rua Gustavo, ali junto da Feira do Rolo, creio essa cidade seria mais do que o caos aos domingos. Exatamente por causa disso desço todo domingo pra feira, pra escapar do tédio. Ali junto do povão, ouvindo aquelas histórias todas e vivenciando outro tanto eu me recarrego. Chego sorumbático e volto recarregado. A cada domingo tenho motivo novo para depois escrever e passar mensagens. Hoje não foi diferente.

Na banca do Carioca, um livro me chama a atenção, o “Charles Bukowski - Vida e loucuras de um velho safado” (editora Conrad, 2000), do jornalista inglês Howard Sounes. O arremato por R$ 16 pratas e ao fazer a escolha, ouço da boca do carioca o que sempre me leva até ali: “Coloquei hoje à venda, pois antes o estava lendo. Esse cara é mesmo da pá virada. Vivia nas quebradas, bebia todas e era porreta”. Conversamos depois sobre ser “porreta”. Carioca é meu livreiro nestas plagas. Para mim não existe outro. Na verdade ele nem firma estabelecida possui, mas entende do riscado e sua casa é tão cheia de livros, que os mantém, por falta de espaço, até no banheiro. Me conquistou de cara e hoje, bato cartão ali aos domingos, não só em busca de suas promoções, mas para bater papo e ver pessoas. Me instalo ao fundo da banco e fico vendo as pessoas passarem. Vejo de tudo, inclusive pernas de mulheres. Comentamos de tudo e bebemos algumas. Tentamos ser Bukowski, mas não chegamos nem aos pés do mestre. Seremos sempre dedicados aprendizes.

Me despeço dele e ouço algo dos que, como Carioca, ainda consegue extrair algo de bom disso tudo: “Agora só em janeiro. Semana que vem não monto a banca, pois estarei num evento com a alma gêmea e depois ela me leva para uma praia em Santa Catarina”. Ele é dos poucos por ali que, ainda consegue, juntar caraminguás o ano todo e quando pinta algo diferente, deixar de vir montar seu pequeno negócio dominical e sai pelo mundo. Dou minha volta no lugar e observo a movimentação. Estava quase desistindo de tudo, quando me deparo com o Gebara, isso mesmo, o homem dos tecidos finos desta aldeia. Sua loja é uma das mais refinadas da cidade, mas ele mantém hábitos estranhos, assim como os meus. Moramos perto, em prédios próximos e me diz: “Não consigo permanecer preso lá dentro muito tempo. Venho aqui logo cedo, mais pra ver gente, andar, ver as novidades, cheirar e reencontrar pessoas, como você”.

Engatamos uma conversa e ele me propicia um passeio diferente pela feira. Entendido em tecidos, percorremos muitas bancas de roupas e em cada vou colecionando suas observações, algo precioso para mim. Diante de um vestido com uma malha diferente, passo a mão e digo a ele: “Isso deve ser quente”. Ele, do alto de sua sapiência roupística me apresenta um estudo de caso sobre a mesma: “Essa é daquelas que a pessoa não pode sair ao sol com ela, pois esquenta pra dedeu. Isso é o que nosso povo veste hoje, ou melhor, o que nosso povo ainda consegue vestir”. E assim foi se sucedendo em outras tantas, cada qual, eu lhe falando da vestimenta e ele me dando uma aula. Ganhei a manhã, pois aula do Gebara sobre tecidos em plena Feira do Rolo, com exemplos vivos sobre cada tecido é algo para poucos, ou melhor ainda não havia ganho o dia por completo. Pergunto sobre o calendário do ano novo, que sempre me presenteia. “Ia te deixar na portaria do prédio, mas já que estamos aqui, venha comigo até o carro”.

Paro no Barba para tomar um chopp e no caminho falamos de pães e padarias. Fazemos uma lista delas e por fim, ele declina a sua favorita. Ele, como eu, vamos longe em busca de bons pães, mas como hoje, amanheço e Ana quer um pão fresco. Sem aquela vontade de pegar o carro e ir buscar em quilômetros de distância, compro na padaria mais próxima de casa. Ele não aceita um chopp, diz que seus remédios o impedem, mas não do café com amigos, toda manhã, saindo de casa 6h30 para ir se reunir com alguns em lugares onde ainda são servidos essa hora da manhã. Ganho o calendário, feito em pano, peça rara hoje em dia. Digo que ontem mesmo havia lido de amigos perguntando onde ainda encontrariam calendários do próximo ano. “Eu continuo fazendo mais só para amigos, meu negócio é pano, fica mais caro, mas mantenho a tradição”. Diante do seu carro, me espanto e lhe digo ter esquecido o vidro e a porta do carro abertos. “Eu deixo aos cuidados sempre do mesmo guardador, ele já me conhece e eu a ele”.

Não era nem 10h da manhã e já estávamos nos despedindo da feira. Voltei ao Mafuá, dei comida ao cão, conversei com dois vizinhos e antes de voltar pra casa resolvi ir levar a gravura do búfalo que a artista Viviane Mendes fez para o Esso Maciel. Entro no seu portão, os cachorros fazem barulho e nada dele me ouvir. Pudera, descubro, que ele não estava em casa e logo a seguir me pega em fragrante dentro do seu quintal. Ele também é da turma da manhã da feira e está voltando de lá, com dez fitas de DVD. Tarado por filmes, Esso não sabe baixar filmes e os compra na bacia das almas da feira. Diz ter pago R$ 15 por todos e agora tem filmes pra semana toda. Pede para sentarmos na beirada da calçada, pois quer me contar algo. Conta, mas como a maioria com pedido de guardar segredo – dois velhos segredando um ao outro -, conto só o que me autorizou: quer sim ser homenageado em algo que devo impulsionar para o próximo ano, além da estampa da camiseta do bloco do Tomate. Ele, sorri e me conta histórias, segredos de alcova e assim saio de lá, agora tendo algo mais só para mim. Imagina, eu e Esso tendo um segredo em comum, algo de muita responsabilidade. Compro um panetone para amigo de longa data, entrego e retorno para meu lar cantarolando pelas ruas, uma do Lupicínio: “Ah, esses moços, ah, se soubessem o que eu sei...”.

Uma manhã bobinha, com poucas novidades. Volto lendo o livro do Bukowski enquanto paro o carro nos sinais e acho que, acertei na mosca, pois a leitura das primeira páginas é inebriante. Volto pra casa, afazeres domésticos dominarão meu dia. Estou pronto para tudo o mais, até para os processos que a gente leva ao longo da vida, tudo por querer bater de frente contra tudo aquilo que não concordamos, no caso presente, esse bolsonarismo doentio, pregando algo contra a Ciência, incitando leigos e incautos a algo perigoso. Sou do time dos que não se seguram nas calças. Ainda bem existe a feira e tudo o que por lá encontro. Bauru seria modorrenta demais sem tudo o que ali ocorre. Queria uma dessas a cada dia da semana, mas isso acho que já é pedir demais, né!

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