terça-feira, 29 de novembro de 2022

BEIRA DE ESTRADA (159)


espírito do cidadão ao acordar
O QUE VOCÊ ANDA LENDO NO MOMENTO?
Nada assim tão importante. Ou melhor, revendo, lendo algo pelo qual dou a maior importância. Deixei de lado - por uns tempos -, os clássicos e textos acadêmicos, aqueles onde tenho que ler o mesmo parágrafo várias vezes, pois numa só entendo quase nada. Leio trivialidades, ou sejas, maravilhas curativas. Garimpo muito o que leio, até porque, aos 62 anos, não vai dar tempo de ler tudo o que tenho aqui armazenado e a minha espera. Tento vencer a pilha, acordo cedo, carrego uns junto conigo, mantenho vários abertos ao mesmo tempo. Agora mesmo comecei este "De hoje não passa", cartas trocadas entre dois bocudos - não seria botocudos? -, um carioca, Eduardo Goldenberg e outro paulista, Júlio Bernardo. Troca de confabulações entre bons botequeiros, brizolistas, aldiristas e hoje lulistas. Uma delícia. É o que me arrebata hoje, livros assim com essa pegada. Este comprei na última ida ao Rio, na Folha Seca, do amigo Rodrigo Ferrari. Lá tem muita coisa a me atrair loucamente. Mostro na foto alguns mais comprados no Sebo do Ismael, sábado passado em Águas de Lindóia e cito os começados e não terminados, mas todos com clara intenção de serem devorados até o fim: "Vinicius Portenho", Liana Wenner; "Prosa Fiada e outrsos Goles", José Renato de Almeida Prado; "Soturna de Ontem, Arealva de Hoje", Nicolau Aparecido Juliano Nicolielo; "A Casa do Rio Vermelho", Zélia Gattai; "Diário de um Cucaracha", Henfil; "Quarto de Despejo", Carolina Maria de Jesus; "Cronista do Rio", Lima Barreto; "Era uma vez Bezzera do Sax", Carminha Carmen Lucia Bezerra Bandeira e Rogério Bezerra; "Fronteira Infinita", Edson Fernandes e Luis Luís Paulo Césari Domingues; "Paris é uma Festa", Hemingway; "Da Boca do Sertão", Antonio Miguel Carneiro; "Underground", Luiz Carlos Maciel e outros. No Mafuá mantenho outros abertos sobre a mesa, lendo bocadinho a cada dia: "Bestiário", Julio Cortazar, "Soy loco por ti, América", Marcos Rey e "Estranhos Estrangeiros", Caio Fernando Abreu. Em alguns momentos, inevitável, misturo tudo, embaralho as cartas e o bicho pega. Tudo acontece pelo simples fato de querer ler todos ao mesmo tempo. Só paro de ler, quando Ana Bia me chama para as obrigações domésticas, tenho que ruar ou ocorrência de causa maior, como me navalhar contra a extrema-direita. Do contrário, estarei mergulhado em alguma leitura. O tempo urge e eu já dobrei o Cabo da Boa Esperança. Neste momento, tirando o atraso.

O QG GOLPISTA EM DIA DE JOGO DO BRASIL NA COPA
Por Tatiana Karnaval Calmon

espírito do cidadão no final da tarde
A LUTA DE UM BRAVO CIDADÃO, DIA APÓS DIA, TENDO QUE MATAR UM LEÃO POR DIA - LABUTA SEM FIM E NENHUMA TRÉGUA
Seu Laerte é meu inquilino, casa ao lado do Mafuá, beirada do rio Bauru, quadra 1 da Gustavo Maciel. O conheci bem antes de lhe alugar o canto para morar. Ele tinha um caminhão, desses antigos e com ele percorria a cidade, circulava por todos os cantos e vendo entulho a ser recolhido, batia palmas e oferecia seus serviços. Recolhia e sabia onde levar. Preço combinado, serviço executado. Ajudou retirar muita coisa atulhando o Mafuá. Tempos depois bateu palma por lá quando soube da casa vazia. Contou sua história, a sua imediata necessidade. Acreditei, ele se mudou no dia seguinte. Fiquei de fazer contrato, não feito até hoje e lá se vão uns oito meses.

Quando precisamos de alguém para limpar o que sobrou e o lixo da casa incendiada do Esso Maciel, seu Laerte se prontificou. Combinamos um valor e ele começou. Ele já não tinha mais o caminhão, quebrado e numa oficina, aguardando ter mais dinheiro para o serviço necessário, que nãoi pintou até agora. Veio com seu carro branco, marcas de muitos anos de intensa labuta, puxando surrada carretinha e hoje, quase dois meses de serviço iniciado, perdemos a conta da quantidade de viagens feitas. Aprendi a gostar mais do danado, desses pau pra todas as obras. O observando esse tempo todo, não tem como não se sensibilizar. O danado sabe que, tem que agarrar a coisa bem cedo e ir até onde puder e aguentar, pois do contrário não leva nada para sua casa no final do dia e daí, o bicho pega. Ele não deixa pegar e, por isso, o admiro muito.

Vive de bicos e de pequenos serviços. Faz de tudo, não renega nada. Diante do monte de papel, material não aproveitado de campanha política, lhe digo que vai conseguir auferir um ganho legal, mas ele me desanima. "Seu Henrique, esse tipo de papel é o que menos paga. É R$ 0,01 centavo por quilo. Tudo isso que carreguei não deve dar uns R$ 4 reais. Mas tudo bem, pouco aqui, pouco ali, no final do dia, dá algo", me conta. Fico sabendo que as caixas de papelão dão mais, hoje em torno de R4 0,20 centavos o quilo, esse o motivo de tanta gente só querer papelão. Um vizinho do Mafuá lhe cedeu um corredor de uam casa desocupada para ele depositar o reciclável que coleta. Ele junta ali de tudo um pouco e não deixa nada na calçada. Posa fora só a carretinha e quando lhe pergunto se não tem receio que a levem me diz: "Já tentaram levar, mas dei um esfrega do sujeito e hoje os nóis sabem que essa não é para tocar, pois já disse a todos eles como resolvo as coisas". É a lei do mais forte, pois do contrário, segundo me diz, se bobear e se mostrar fraco, o farão de bobo.

Ele conhece todos os ferro-velhos da região, sabe aquele que paga mais e os que o enrolam. Tem dias que, não tendo outra saída, leva o que conseguiu para estes e sabe que vai ser enganado, mas como precisa de levar algo pra casa a cada dia, tem momentos onde acaba voltando, mesmo naquele onde havia dito pra si mesmo que nunca mais voltaria. Não renega serviço e não tem medo de pegar algo mais pesado. Lá do incêndio da casa do Esso, só me pediu para lhe arrumar algumas luvas, pois enfiava a mão no meio das coisas e me dizia: "Aqui tem de tudo, desde carrapato, pilga, rato, barata e escorpião". Semana passada conseguiu colocar um destes no vidro só para me mostrar e dizer, como sempre faz, sua forma de reclamar: "O bicho é feio, seu Henrique". É mais do que feio, é horripilante e eu só de vê-lo enfurnado no que faz para ganhar seu dia-a-dia, fico penalizado. Dias atrás se mostrou abatido e só foi ao médico, finalzinho do dia, pois estava mesmo fraco. Medicado, não ficou parado nem 24h e já se dizia pronto para retornar. Ele sabe que, não pode e não tem como parar, daí me diz, "minha vida é essa, é o que sei fazer e enquanto tiver força, vou fazer, eu sei que uma hora vai melhorar e terei meu caminhão de volta".

Ele é uma simpatia de pessoa. A Tatiana Calmon outro dia, lá defronte a casa do Esso o viu com uma bandeira brasileira fixada na carretinha e conversaram a respeito. Depois disso, ele por si só, achou por bem não mais fixar nada deste tipo no que é seu. Nada lhe foi imposto e também conversei com ele, quando me disse: "Eu tenho minha religião, vou toda semana e nem dou dinheiro lá, pois não tenho. Eles me entendem e também não me deixo levar. Não pediram meu voto para ninguém e nem se pedissem, não daria, pois religião é uma coisa e política é outra. Eu vou lá por causa do Cristo, do salvador e não para me dizer como devo votar". Ele sabe que sou Lula e sempre me pergunta dele, das coisas da eleiçõa. Conversamos e não tento lhe impor nada, mas mostrar o quanto este novo governo do Lula vai ser bom para todos os trabalhadores, principalmente os que não mais conseguem nem pagar a contribuição mensal para aposentadoria. O vejo a cada dia com um novo problema e dos desdobramentos feitos para dar a volta por cima e resolver, sem ter que interromper a labuta, ou seja, a luta diária.

Seu Laerte é um bravo guerreiro. Olho para a sua situação e nele enxergo a de milhões de outros brasileiros, na mesma ou até pior. Num dia, seu pneu estoura, mas não é só o estouro e sim, ter que trocar, pois aquele já estava imprestável. Noutro o que estoura é a correia do motor, quase funde, mas ele sabbia que, se se ligasse direto, daria para chegar ao menos no mecânico. Anda com um conjunto mínimo de ferramentas e mesmo não sendo mecânico, sabe o básico, o trivial para não ficar na mão. Ontem conseguiu rodar até a frente de uma mecânica, que lhe emprestaram a chave que precisava e assim trocou ele mesmo a peça avariada. Hoje me ligou para ver se podia passar o meu número de PIX, pois o seu ele não sabe manusear e se recebesse, se podia lhe sacar e lhe dar em dinheiro. Claro que fiz e assim vai continuar ocorrendo, pois amanhã, quando raiar o dia, todo o suor que teve que ter para conseguir vencer e conseguir levar para sua casa algo, já será passado e tudo recomeçará novamente. Eu o ajudo no que posso, pois sei o quanto luta. Ele quebra meus galhos e eu quebro os dele, assim continuamos, um entendendo o outro e irmanados, vida que segue. Eu tenho meus problemas - e são muitos -, mas quando olhos para os dele, sei que os meus são café pequeno perto de tudo o que gente como este meu amigo, seu Laerte, passa para ir tocando sua vida e a cada dia colocar a cabeça no travesseiro e amanhecer lépido e fagueiro, já pensando no que terá que fazer no novo dia para conseguir algo, o sustento do dia. Seu nome é Laerte de Oliveira Filho, nascido no ano de 1973, portanto com 49 anos, natural de Pongaí e um baita profissional, bravo guerreiro, destes que, infelizmente, não tem tempo para se preocupar com quem será o próximo presidente do Brasil. Ele sabe algo do que está em curso, mas sua preocupação principal, a que lhe move a vida é sobreviver, transformar sua vida, conseguir diminuir o ritmo e com uma renda suficiente para viver e ser feliz. Quando me diz algo dos seus sonhos, eu paro e fico a escutar, pois mais importante que tudo é saber que alguém o ouve. Eu ouço muito dos que tantos iguais a este Laerte estão a dizer e minha luta por dias melhores é mais por eles do que por mim.

espírito do cidadão lá pelas 22h
DEU RUIM - PRIMEIRA CHUVA FORTE DO PERÍODO E QUASE MEIO METRO DE ÁGUA BARRENTA DENTRO DO MAFUÁ
Desço para a limpeza, às 20h30 e por lá fico, pelo menos, até arrumar lugar decente para o cão Charles poder dormir. Amanhã rescaldo e a repetição da frase mais repetida nestes momentos: "Não aguento mais essa situação". Porém, tenho que aguentar. Até quando?

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