terça-feira, 10 de outubro de 2023

MEMÓRIA ORAL (298)


180 ANOS E NO MAIOR BATE PAPO
Tive o prazer de presenciar uma conversa somando 180 anos. Na verdade, propiciei a mesma e estava querendo mesmo ver no que iria dar. E deu coisa boa, como esperava. Levei para um passeio em Tibiriçá o antigo chefe de gabinete do superintendente da Rede, cargo ocupado pelo advogado Plinio Scripore. Ele, atuou na Rede, a antiga Noroeste do Brasil por 40 anos, por 30 anos esteve ocupando o cargo ao lado de variados superintendentes e já está aposentado há 30 anos. Quando disse tinha compromisso em Tibiriçá, pediu se podia vir junto. Viemos e depois de cumprido o compromisso fomos, como sempre faço quando por ali aporto, bater cartão na casa da matriarca da família Cosmo, os mais que famosos Baté.

Antes de levá-lo ao reduto principal da família mais famosa do distrito rural de Tibiriçá, distante 15 km de Bauru e hoje, com aproximadamente mil habitantes, demos uma volta pelo lugar. Ele queria muito rever a Estação, primeiro ponto de parada do trem que ia para o Mato Grosso e Bolívia e o último, antes da parada em Bauru. Seu olhar foi de imensa tristeza, como já era esperado, pois a estação mesmo tendo sido restaurada há tempos atrás, como nada foi feito para sua reativação, nenhuma atividade cultural ali acontece, está hoje se deteriorando. Mais uma edificação sob os cuidados da Prefeitura Municipal de Bauru no abandono.

Rodamos o distrito e o primeiro lugar de parada foi na residência da Dulce Cosmo, filha do casal Cosmo. Ela, aposentada da Prefeitura, tendo trabalhado por décadas junto a bibliotecas, inclusive a de Tibiriçá, hoje fechada e sem nenhuma perspetiva de ser reaberta. Dulce e seu marido, Wilson são a simpatia em pessoa. Somos levados para a sala e lá, Plínio se emociona, pois Dulve cita nomes conhecidos também por ele, inclusive antigos funcionários, cargos variados dentro da instituição ferrovia. Na sala, muitos quadros, inclusive um com a foto de sua bisavó, relatando tendo ela sido escrava. É a única foto existente dela, hoje muito requisitada por parentes. Plinio se interessa e um assunto liga a outro. Dulce relata algo também dos primórdios de sua família, de como ali chegaram e de como, seu pai, José Antonio Cosmo, trabalhou uma vida inteira na ferrovia. Plinio não o conheceu, mas brinca, "devo ter cruzado várias vezes com ele, pois a Rede teve numa época quase 4 mil funcionários na região".

Um conversa leva a outra e de lá, junto de Dulce, seguimos para a casa da matriarca, passando pela da Rose, sua irmã. Essa, moradora por muito tempo da vila Falcão, não aguentou e convenceu o marido para voltarem para o distrito e hoje, quando lhe dizem como consegue residir num lugar um tanto parado - em relação à Bauru -, diz ser isso falácia, pois ela se mantém ocupada o dia todo, sempre com atividades comunitárias. Uma maravilha ouvir isso e Plinio vai acumulando a cada parada um algo novo, chegando a me dizer num certo momento: "Henrique, tenho 91 anos, me desculpe se estou emocionado com essa família e do que me contam, do jeito como contam sua história. Sou emotivo e se me ver chorando, não se assuste, isso tudo que passo aqui me fez um bem danado".

Se o problema foi se emocionar, algo mais aconteceu quando adentramos a casa onde mora dona Irene Cosmo, a sempre reunindo toda a família, com uma ampla varanda na casa principal e um barracão para abrigar todos, nas constantes reuniões familiares. Eles, os Cosmo são muito unidos e vivem juntos, muito interligados. Impossível chegar ali na casa deles e em questão de minutos outros da família não surgirem. Nesta tarde, quando apresento Plínio para dona Irene, digo sua idade, quase igual a dela - ela com 89 anos -, ela com sua carapinha branca, olha bem para ele, também com cabelos brancos e lhe diz: "Que lindinho, tão simpático, um jovem como eu, mas muito mais esbelto, magro, corpo de moleque".

Daí por diante foi um encontro para lá de divinal, pois a troca de figurinhas entre eles, quase somando 180 anos ali juntos, merecia ter sido gravada. Falaram de tudo, relembraram algo da histporia, um citando algo e o outro retrucando, contando algo mais. Rose passa por ali a caminho de mais um agito no distrito e brinca com ele: "Então o senhor era lá do andar de cima do prédio da Estação, da Chefia né, dos que impediam a gente de atravessar por debaixo dos trilhos e pegar o trem mais rápido?". Falou rindo, bem ao seu estilo e Plinio, um gentleman, não retrucou, ouviu quieto e depois, quando estávamos voltando me disse: "Eu não podia dizer nada, pois fui do andar de cima, a decisão deles não atravessarem os trilhos dentro da estação não era minha, mas sei, eles tinham razão".

Dulce some e me leva lá para os fundos do quintal, onde armazenam um monte de abóboras. Quer presentear uma para Plinio. Vê-la batendo nas abóboras, com uma sapiência de quem sabe pelo som na palma da mão, se certificar se ela está boa. Escolhe duas e assim, também ganho a minha. Plinio se encanta e diz de Elza, sua esposa, doceira de mão cheia e dos tantos potes de doce que irá fazer com aquela imensidão. Outro filho da matriarca adentra o quintal, Dário, apresentado por mim, como noroestino, desses de não perder um jogo do seu time. Foi a deixa para Plinio contar sua peripécias quando diretor do Noroeste. Tudo rendia conversas alongadas e de uma passagem rápida, a noite já estava despontando, céu escurecendo.

Dulce aparece com peças da ferrovia, uma placa da Truma 3, lugar onde a família morou por décadas. Ele estava mais do que emocionado, daí Dulce volta lá pros fundos da casa e volta com uma peça parecendo um grandealicate, peça usada para carregar os dormentes. Eles eram pinçados e carregados, amaioria feitos de aroeira pura, madeira mais do que nobre. Irene o convidou para voltar e conhecer a turma do distrito, com muitas famílias oriundas da ferrovia. Ele se encanta e promete voltar, quando olha pra mim e diz: "Tudo depende dele, pois se depender de mim, volto amanhã com o dia bem claro". Ele aproveita e convida Irene, Dulce e Dário, o motorista da família, sempre levando uns e outros para todos os lugares, para quando forem para Bauru, irem em sua casa, pois quer muito apresentar todos para Elza.

Eu até esbocei vontade de voltar - mesmo querendo ficar -, mas os assuntos iam despontando e se prolongando. Não sei de onde tiravam tanto assunto, todos em pé no meio do quintal, enfim, não deu nem tempo deles sentarem, tal o encanto da conversa ali acontecendo. Tudo porém tem um fim, apressei a despedida e voltamos cada um com sua abóbora e cheios de assuntos, num conversê já prevendo um retorno para breve. Plinio se encantou e com certeza, Irene idem, num encontro de dois lados bem distantes dentro ad estrutura da antiga Noroeste, alguém lá do andar de cima e o dos trabalhadores lá da ponta, pois seu Cosmo, era da linha de frente, dos que suaram muito a camisa para colocar a estrutura toda funcionando. Tarde de muitas histórias e de tudo, vejo ter perdido uma rara oportunidade de ter gravado esse papo de 180 anos, com muita história ainda não registrada ali acontecendo. Isso me move, isso me conduz e me faz continuar promovendo encontros e reencontros desta natureza. Tarde melhor não podia ter acontecido com este escrevinhador, tentando neste momento juntar tudo o que ouviu e ir colocando no papel, pois teve muita coisa ali dita, ainda não escrita em lugar nenhum.

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