terça-feira, 17 de março de 2009

MEMÓRIA ORAL (62)

O CARA DE ITAQUI AQUI EM BAURU (Parte 1)
Sexta de carnaval, 20h, campainha de casa toca, vou atender e um homem me pede para usar o telefone. Vejo ser de um celular, conta história de que uma mulher lhe havia prometido um acerto financeiro. Portão já fechado, não o deixo entrar, mas lhe dou um prato de comida. Penso no seu sofrimento, ter que esperar até o fim da festança para resolver a pendenga. Logo esqueço. Dia seguinte ele volta, nem fala mais da tal mulher. Come e conversamos mais. Já me chama pelo nome e eu fico sabendo ser gaúcho, um andarilho perdido nesse vasto mundo, indo de um lado para outro, sem prumo e destino.

Ouço suas histórias, um dia fala algo, noutro vem com coisa bem diferente. Muito do que fala não bate, mas percebo logo de cara que não tem aspecto de morador de rua. Diz ter saído de Itaqui, interior gaúcho, quase fronteira com a Argentina, após perder a mãe e pelos desentendimentos seguidos com a família a partir daí. Pede para guardar duas malas, pois teria que ver um emprego numa cidade vizinha. Permito, não sem antes vasculhar na presença dele todo o conteúdo. Só roupa suja, frascos vazios de perfume e uns sapatos gastos. Peço para tirar umas fotos, ele permite, anoto seus dados pessoais e lá seu nome completo, Jocelino Reus Rodrigues da Silva, 37 anos. Guardo tudo e tento levá-lo para o Albergue Noturno, mantido pelos espíritas do Lar Amor E Caridade, onde teria banho e pouso descente. Desconversa, prefere a rua. Após sua ida, passo por lá e confirmo, Jocelino nunca havia pernoitado por ali.

Some por umas duas semanas. Na véspera de uma viagem para o Rio de Janeiro, o reencontro nas ruas. Vem ao meu encontro e diz estar precisando das roupas. Fica de buscar no final daquele domingo, 08/03. Continua me contando suas histórias de empregos em circos, oficinas, de uma cidade para outra, terminando tudo aqui em Bauru. Empregos mal sucedidos o fizeram viver nas ruas. Decido escrever um texto e lançá-lo na internet, via meu blog e distribuo em e-mails para entidades (prefeitura, associações, rádios e jornais) de sua cidade, Itaqui e da vizinha São Borja. Não estava em casa quando veio buscar as malas, mas levou tudo. E lá no meu texto, algo sobre o que espero disso tudo: “Descobrir algo sobre esse moço desgarrado do mundo, esse gaúcho já com alguns problemas mentais me seria muito grato. Espalho as fotos e textos por aí, como uma garrafa lançada ao mar contendo uma mensagem de socorro e fico no aguardo de algum retorno”.

Viajo e lá no Rio, na segunda, por volta das 9h toca o celular. Do outro lado, Silvio Mendes, chefe-adjunto da Prefeitura de Itaqui. Reconheceu Jocelino, mas nada sabe a seu respeito. Diz que irá distribuir o e-mail para as rádios locais e me deixará atualizado sobre o andamento da procura. Na parte da tarde várias ligações, o texto foi teatralizado na rádio Cruzeiro do Sul, uma das mais ouvidas na cidade e logo aparecem o pai, as irmãs e muitos amigos. Aos poucos a história vai sendo contada. Após a perda da mãe, muito sentida por ele, decidiu ir trabalhar na colheita de maçãs em Vacaria e de lá sumiu no mundo. Quase um ano sem notícias, causando muitas preocupações em todos. Até Boletim de Ocorrência fizeram pelo desaparecimento. Nenhuma notícia até então.

A cidade de Itaqui, 36.000 habitantes, distante 730 km de Porto Alegre mobilizou-se por Jocelino. Entro no ar ao vivo no programa de rádio “A Tarde é Nossa”, transmitido por Ceneu Salcedo, por volta das 17h. Falo com o pai, irmã e respondo perguntas do locutor, sobre o que me motivou a repassar o comunicado via internet. Pronto, os familiares estavam localizados e todos confirmam a apreensão pelo seu sumiço. Faltava reencontrá-lo. Nada poderia fazer distante de Bauru. Na terça continuam as ligações. Sílvio faz a ponte, liberado pelo prefeito Gil Marques Filho (PDT), 52 anos, médico cardiologista, que pede a esse: “Faça o que for preciso para ajudar Jocelino e sua família”. Na quarta, 11/03, já em Bauru leio a primeira de uma série de três matérias que o jornal Bom Dia (“E-mail ajuda achar família de andarilho de Itaqui”), através da jornalista Cristina Camargo faz sobre o caso, também influenciada pelo meu texto. Todos agora estávamos empenhados em localizar o desaparecido Jocelino. Fico sabendo que Sílvio, tão logo leu o e-mail, identificou-se de cara com a história, pois seu pai ficou desaparecido por 15 anos e foi encontrado somente cinco dias após sua morte, tão distante quanto Jocelino nesse momento, em São José do Rio Preto. A mobilização por lá continua, falo com o escrivão de polícia Curvelo, buscando formas de virem até Bauru. A cidade está sensibilizada.

Nas ruas, por onde passo muitas notícias sobre o seu paradeiro. O Bar do Hélio, do proprietário do mesmo nome, é uma espécie de ponto de encontro do pessoal de rua na cidade. Eles se reúnem por ali toda manhã e o proprietário confirma: “Está aqui todos os dias. Hoje mesmo, já lhe mostraram o jornal. Deve estar circulando por aí com a turma dos desalojados”. Notícias de um lado a outro e nada de reencontrá-lo. Duas funcionárias da SEBES – Secretaria do Bem Estar Social de Bauru, Simone e Telma ligam e se colocam a disposição tão logo o encontremos, para um acompanhamento. Imprimo uma foto dele e a mostro em vários lugares. Num deles, no posto de gasolina, 100 metros da linha férrea, recebo uma ligação por volta das 22h: “Ele está nesse momento dormindo debaixo da marquise do Bettio Auto Peças”. Já que estava dormindo, decido ir lá somente à manhã do dia seguinte.

Quando passo por lá pela manhã seguinte ele já havia sumido, mas não demoro a encontrá-lo nas ruas. Conto toda a história, ele agradece por tudo o que fiz, mas resoluto diz: “Não volto para lá. Depois da perda da minha mãe não tenho mais motivos para morar lá. Estou bem arrumado aqui, tenho amigos e emprego”. Os amigos são os colegas de rua e o emprego, na verdade não existe, faz parte das histórias repetidas por ele e a cada momento contada de uma forma diferente. Marcamos de ir à Casa de Referência dos Moradores de Rua, mantida também pelos espíritas, por volta das 13h30. Às 12h ele já me espera no portão de casa e repete: “Sou um homem de palavra. Disse que viria e cá estou”. Almoçamos, mostrei os comentários feitos no blog, as fotos e juntos vamos ao encontro da tarde.

Lá somos recebidos por Luciana, a atenciosa assistente social, num tratamento primoroso com os invisíveis da rua. Cristina Camargo e o fotógrafo Cristiano Zanardi, do jornal Bom Dia e Telma, da SEBES acompanham tudo. Com muita atenção ele é ouvido, as histórias não batem, mas nada é contestado junto a ele. Fala de empregos, moradia, mas na verdade, no momento da checagem nada disso existe. Conversa por telefone com o pai e a irmã, onde todos se emocionam. Faz uma visita ao local, recebe acompanhamento de um psicólogo, faz a barba e permanece por lá até o final da tarde. Quando começa a demonstrar irritação, pede para sair e o deixam ir. "Tratamos com todo carinho e atenção, mas respeitamos o direito de ir e vir de cada um. Não podemos segurar ninguém contra sua vontade. Temos que conquistá-lo e tudo o que for decidido será por decisão dele, pois não existe laudo nenhum de problemas com ele", relata Luciana.

Revejo no final da tarde, quando discute com o dono do posto de gasolina, tudo porque esse havia se recusado a encher uma garrafa de água para uma colega de rua. Silvio me liga e reproduz uma fala trocada com ele na tarde: “Ele me explicou a falta que mãe lhe faz e fez uma relação minha com o emprego que tenho aqui na prefeitura, quando me disse: Imagina o que irá lhe acontecer quando não tiver mais a prefeitura”. Ele não aceita dormir no Albergue e dorme no local de costume, às ruas. A partir daí fico sendo uma referência total para ele. Não sai mais do meu portão. Volta e meia surge do nada, sempre com um assunto novo. Num momento diz que voltará, que sente saudades do pai doente, noutros, alega que ninguém o quer por lá e que irá somente fazer uma visita e logo a seguir, afirma que daqui não sairá, pois gostou da cidade, onde possui emprego e amigos. Dou dinheiro, comida e converso muito. Ao passar na rua onde fica sou cercado, ele vem de braços abertos, diz que a serralheria já está montada, o barracão alugado, o banco lhe emprestará dinheiro e os clientes já o procuram. Nem quer falar em pernoite no albergue.

No sábado, Centro de Referência fechado, está no meu portão logo cedo, depois na hora do almoço (compro um marmitex) e no final da tarde volta para pedir uma grana para comprar um botijão de gás e algo para por na geladeira. Não dou o que quer, nem o chamo a atenção pelas estórias. Continuo prestando toda atenção e ouço dele ao ser contrariado: “Vou me virar sozinho, não vou ficar sem esse gás e não volto mais. Não quero mais ficar te importunando”. Silvio liga de Itaqui, junto com sua irmã, Ulisséia Rodrigues da Silva. Eles conversam e se acalma. Pede para fazer uma outra ligação, para alguém de Bauru, faz e também nada consegue. Do lado de lá, Silvio faz o que pode, eu do lado de cá, tento segurar as pontas até a solução do impasse.

Lemos no computador os comentários no blog, postados pelos amigos. Negro, de São Borja, diz que seu apelido por lá é Jijo e torce muito pelo seu retorno. Luciano, um primo de segundo grau, comenta que "não sei como foi parar aí, mas tenho certeza que seus familiares estão tomando as providências para trazê-lo novamente". Filipe Kirinus, cirurgião-dentista, também de São Borja lembra de um show que foram juntos em 1996, do Engenheiros do Hawaii, tempo em que Jocelino era uma espécie de capataz numa granja. "Ele é uma pedra muito preciosa para nós", conclui o amigo distante. Nesses momentos ele diz querer estar lá, mas quando volta de um outro período passado nas ruas, a conversa é outra.

Concordou em voltar a falar com a Luciana, do Centro de Referência na segunda. Sílvio falará com o pessoal da rádio sobre uma campanha para resgatá-lo. Ele já tenta fazer um roteiro e quando será necessário gastar para isso (por volta de R$ 800). Digo a Jocelino que no domingo, na volta da feira, ali nas imediações, passo onde ele fica e conversamos. Mobilizações lá e cá, tudo ainda incerto. Tenho receio de que se evitar as conversas, ele pode desaparecer. O vi por duas vezes nas ruas no domingo, bebendo entre os desalojados. Um breve aceno e só. Na segunda ele desapareceu. Sumiu da vista, não o vi em nenhum lugar. No Centro de Referência, Luciana me diz que ele não voltou a fazer contato. Gil liga e me passa detalhes da reunião da família do Jocelino, na casa de sua avó paterna, Maria Tereza Fernandes da Silva. Pouco conseguiram, pois não estão em condições de arcar sozinhos com o envio de um acompanhante e as despesas de ida e volta. A irmã, Ulisséia Rodrigues da Silva, fez cópias do meu post no blog e distribuiu pela cidade.

Nas últimas novidades, Gil diz que "a promotoria de Itaqui solicitou um laudo médico constatando algum problema com ele, para a partir daí tomarem alguma providência, caso contrário não tem como ajudar". A história não pára por aí. Não sei como foi a campanha na rádio, iniciada ontem. Na cabeça de Jocelino tudo deve estar girando a mil. A história continua e os desdobramentos eu continuo a contar por aqui. Jocelino continua nas ruas, necessitando muito da ajuda. Desorientado, está preferindo continuar vivendo entre os da rua, arredio e por fim, de minha parte um questionamento: O que fazer, como agir, quando você percebe a pessoa se destruindo no dia-a-dia nas ruas, envolvido com aquele clima das calçadas, com muita bebida, sem conseguir sair dele sózinho? Tudo ali diante dele e a solução cada vez mais difícil.

6 comentários:

  1. Henrique, aqui no sul temos uma expressão de máximas que é, BARBARIDADE, o jijo como tinha problemas de dicção dizia...ARIDADE!!!
    Era uma pessoa que gostava muito de ir a bailes, pergunte a ele se ele lembra da cidade de maçambará e das idas e vindas dele daquela cidade.
    O jijo era uma representação da alegria, sempre alegre e contente com a vida, colorado fanático!!! Gostava de jogar um futebolzinho e sua posição...adivinha qual era...atacante!!!
    Outra coisa que não me faz esquecer dele, era quando passava as férias pra fora e olhavamos os filmes antigos do didi....ele adorava isto também!!!!
    Ele era mais velho que eu mas eramos amigos e ficavamos o dia inteiro fazendo BARATEZA (peripécias) quando estavamos na granja pitangueira.
    Agradeço muito por essa sua atitude, são de almas boas como a sua que o mundo precisa.


    FIIPE KIRINUS

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  2. Henrique

    Essa história não terminou mesmo.
    Vamos conversar muito com o Jocelino e trazê-lo de volta para nossa cidade. Quando ele rever isso tudo, os amigos, os lugares, as histórias todas, acho que fica aqui de vez. O que precisa e urgente é arrumarmos uma colocação, um emprego para ele. Talvez até um temporário, para que ele se sinta valorizado.
    Sua atitude é das mais dignas.
    João Cunha

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  3. Sou Itaquiense e conheço o gijo assim como sua flia,que pena ele estar nesta situação pois sua mãe era uma mãe dedicada aos filhos .Mas tenho certeza q breve encontrarei com o gijo pois sua flia o trará de volta.Como Itaquiense agradeço ao sr Henrique por esta atitude maravilhoza de se importar com os seres humanos,o mundo presiza de gente com o senhor.Obrigado Deus Ilumine seus paços.Abraços

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  4. Henrique,sou a irma dele (a seia)e estou muito agredecida pela sua dedicação com meu irmão.estamos lutando para arrecadar meios para que possamos ir busca-lo o mais rapido possivel.hoje enfim podemos ver todo o docomentario,num cyber aqui da cidade eu e meu esposo jardel,que Deus ilumine cada vez mais voçe um grande abraço para voce e meu irmao.

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  5. Grande Padrinho, muito comovente a história e grande exemplo de dedicação o seu. Fez com que eu me lembrasse de uma matéria sobre um colega do RN que faz um trabalho nesse sentido. Dá uma lida na matéria, de repente em contato com ele pode pintar alguma solução para viabilizar o retorno do rapaz para a cidade dele. Segue o link:
    http://www.fenapef-desenv.org.br/fenapef/noticia/index/20670

    Grande abraço,

    Guto

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  6. Darlene Tendolo, seu sapatão encubado, e toda a sua corja da SEBES, vão todos tomar no cu!

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