domingo, 30 de abril de 2017
OS QUE FAZEM FALTA E OS QUE SOBRARAM (99)
O ÚLTIMO DIA DO MÊS NA FEIRA E O “FIO CONDUTOR” E assim termina abril. O que salva tudo são as companhias, as que escolhemos para tocar esses e todos os demais dias pela frente. Se as coisas não andam lá muito boas e ainda por cima não as temos ao nosso lado, as complicações são mais torturantes e bate aquele sentimento de isolamento, derrota total. Quando eu sei que, indo a certos lugares, frequentando os locais onde os iguais a mim por lá estarão, mais do que um alento. Mesmo diante desse mar de problemas, nada como poder compartilhar de conversa saída, bem humorada, bem pautada e disso não se pode mesmo abrir mão.
É o que faço aos domingos. Meu dia, como todos os últimos estão apilhados de compromissos, mas impossível não abri mão momentaneamente, tudo para rever pessoas queridas e conseguir, ao lado delas todas, recarregar um pouco mais as baterias que movem uma vida. A feira dominical é meu local, primeiro a banca do Carioca, onde ouço hoje uma das frases mais espetaculares que se pode ouvir durante a existência humana. “O melhor de tudo é quando você aparece. O pior de tudo é quando o dia passa e pessoas como você não aparecem”, me disse. O queixo cai a cada reencontro nesse sacrossanto lugar. Hoje, um sujeito de Ribeirão Preto, pela primeira vez ali vendo livros, compra dois, ouve palavras inesperadas vindas de um livreiro da feira e ao sermos apresentados me diz: “Que lugar cheio de luz é esse. O cara tem a banca recheada de coisas boas, leituras para todos os gostos e ainda nos enche de luz. Conheço muitas bancas e sebos, mas igual a esse, só esse”. Esse o sentimento de quem por ali aporta, assunta e a partir daí, não existe mais saída, estará contaminado.
Saí de casa às 11h e queria permanecer na feira por pouco tempo, mas já na banca do Carioca encontro o Geraldo Bergamo e o Manuel Rubira e, confesso, ambos são cativantes. Cada um tem um jeito só seu de voltarem todo domingo e dali irem para o Bar do Barba, sentarem sempre no mesmo lugar e esperar a chegada de outros tantos. Vieram hoje, o Sivaldo Camargo e nos contou uma história tão linda de como o Gilberto Gil deixou a macrobiótica, depois a Camila Godevice que precisa sair escondida de casa com a camiseta do DNT Petista, tudo para não chocar a mãe, depois o Cláudio Lago e a Luzia Siscar, que perdeu o danado do marido no meio do “rolo”. Fui obrigado a lhe dizer: “Motivo aqui não falta para perdições, fique atenta”. Ele é muito conversador, se perde em conversas. A Cristina Zanin conta detalhes de resgates feitos na biblioteca de um dos maiores juristas bauruenses, seu eterno sogro, Gastão de Moura Maia e o casal Neiva e Dauri, chegaram quase no final e gostaram tanto da conversa q2ue, quase convenceram todos para continuarem a contenda num churrasco lá pelas bandas do mafuá. Foi por pouco.
O assunto do dia foi o falecimento do cantante Belchior e com ele outro tema, o das pessoas que, como muitos ali presentes, vivem sozinhas e ao morrerem são descobertas pelo cheiro, o mau cheiro. Ali mesmo na feira, um carro da polícia parado no meio de movimentada quadra e eu já crendo ser para batidas ao contrabando. Nada disso. Haviam descoberto o corpo de um morador da Júlio Prestes nessa situação, morto deitado e em cima disso, todos demonstram o profundo pesar por Belchior, que tantos sonhos nos embalou e o fez até no seu momento de reclusão, quando pediu para ser esquecido num canto qualquer do país. Vivia esse momento de ostracismo e nele feneceu. Como o cantamos e ao falar de sua morte (nem sei como o foi), relembramos quantos de nós não vivem sozinhos e podem muito bem ter o mesmo fim do escrito João Antonio (um dos meus preferidos) que, foi encontrado uma semana depois no seu apartamento em Copacabana e pelo cheiro.
Criamos ali mesmo uma espécie de “fio condutor”, uma espécie de “verificador obrigatório da vida do amigo”, quando todos em apenas dois dias sem notícias do outro, deveríamos acionar os mais próximos e ver o que se passa. Pedro Valentim passa pelo local envergando a camisa do Corinthians (hoje é o dia), com a Folha de SP debaixo do braço e mostrando a pesquisa (“ninguém tira do Lula numa eleição honesta”) de capara, mas ao pegar o exemplar nas mãos comento com o Bergamo: “Li tanto esse jornal e todos os outros, mas hoje mais nenhum deles”. Bergamo encerra o assunto: “E dá para ler algum deles hoje?”. Não dá. Estão mortos e não sabem. Alguém precisa avisá-los.
Com o voto vencido de fazermos um churrasco, cada um vai para seu lado. Sivaldo sobre com Camila por uma feira já sendo desfeita, levando a Zanin debaixo de um lenço palestino. Lago e Luzia vão em busca de um lugar para o almoço. Dauri faz subir em sua moto a Neiva e somem pela Rio Branco. Eu sigo só para casa, pago o Barba e vou lendo a Carta Capital pelas ruas. O cara do estacionamento puxa conversa e a partir daí, (re)descubro o quanto é importante esse reencontro dominical ali no meio do furdunça. Estava totalmente recarregado para o que possa vir pela frente. Atravesso a linha, relembrando as palavras de Claudio Lago, que me disse, ontem, sábado ter ficado o dia todo ainda meio em estado de transe e sua ficha só caiu no final do dia com o que havia presenciado e participado nas ruas de Bauru quando da Greve Geral. Ali foi outro momento de união, de encontros e reencontros. Venho pensando em como precisamos mais e mais de rua, de botar o bloco permanentemente nas ruas. E daí vou pra casa, me tranco e me ponho a ler e escrever isolado do mundo e até do barulho da TV do vizinho (o Corinthians deve ter ganho).
OBS.: Peço antecipadas desculpas a todos os citados, mas são vocês alguns dos culpados por gente como eu continuar viva. Sem a presença e encontros revitalizantes não sei o que seria de mim, já tão debilitado. Vocês são a força!
OBS 2: e semana que vem o Geraldo Bergamo não vai descer pra feira, pois vai estar se recuparando de cirurgia. Vamos dar um "fio condutor" nele, hem!!!
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