quarta-feira, 5 de março de 2008

MEMÓRIA ORAL (27)
TITO, UM MADI SAINDO DO ESTALEIRO
Tito Madi completará 79 anos em junho próximo e nem bem o ano começa, um baque para todos os seus admiradores. A saúde debilitada acaba levando-o para o hospital. Apreensivos, os familiares o preservaram. As informações sobre o seu estado de saúde eram distribuidas em drops, pois todos temiam um alarde desnecessário. O fato é que o grande intérprete e compositor da MPB, depois de anos padecendo do controle diário de uma diabete e de uma vida solitária, num apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro, acompanhando da inseperável dálmata Amanda, baixa ao hospital. Que fazer diante de uma pessoa com a brilhante trajetória, sendo reverenciado pelos grandes nomes da nossa música, quando o corpo pede um tempo? Aguardar ansioso e com muita esperança pela breve recuperação. É o que todos fizeram naqueles dias. Muita expectativa e fé em seu retorno sem sequelas, pois quem vive da voz, não se imagina sem ela.
Ao saber da notícia, em primeiro lugar, bate a saudade e ao invés de ouvir sua voz, busquei um disco do Guinga, numa letra de Aldir Blanc, na voz de Leny Andrade, quando num trecho de "Nem cais nem barco", cheio de dor está lá o lamento: "A chuva dessa tarde trouxe o Tito Madi e apenas eu ouvia...". As lembranças de um ano atrás são inevitáveis, ficando hospedado em sua casa por nove dias, janeiro de 2007, junto com o filho, Henrique Aquino, 13 anos. Havia acabado de vender seu antigo apartamento na rua Constant Ramos, indo para um duas quadras adiante, na rua Cinco de Julho. Tito sempre foi muito doce com os amigos e quando combinamos tudo, seu único pedido foi claro: "Só não chegue cedo demais, velho não gosta de acordar cedo". Cheguei às 6h, mas bati em sua porta só por volta das 9h.

Conheci Tito pelos amigos em comum de Pirajuí, sua terra natal, em especial Marcelo Pavanato, lá d'O Alfinete, cujo lema é "pica mas não fere". Tito reverencia sua cidade natal por onde passa, eternizando esse amor num linda canção, "Nova canção para minha terra" (CD, Ilhas cristais,
Dubas, 2001), quando canta: "Ah, que saudade da minha terra/ Que tão distante está daqui!/ Eu me transporto em pensamento/ E de repente acordo em Pirajuí". Estive com ele em dois lindos show no Rio, um no teatro João Caetano, junto com a Cláudia Telles e outro no Municipal de Niterói, numa homenagem ao jogador Zizinho, depois ele veio em Bauru no SESC, logo a seguir veio em Pirajuí receber o título de cidadão de sua cidade, quando fez um show no Parque Clube. Escrevemos até hoje no jornal e já tínhamos uma certa proximidade, quando o convidamos para cantar por aqui no Automóvel Clube, tendo casa cheia e até um coral cantando uma de suasmúsicas. Virei amigo, de ir ao Rio visitá-lo e papearmos ao telefone. Suas crônicas no jornal são reminicências maravilhosas de sua vida e da cidade que escolheu para viver. Por fim, quando o Beff Strett, do Alameda inicia a série Grandes Nomes, traz Tito num domingo de eleição (segundo turno do segundo mandato de Lula), na hora do almoço. A casa lota e o público contagia, mesmo com Tito rouco. Comovente.
Fui conquistando uma amizade prazerosa, ele lá, eu aqui. De vez em quando uma ligação, uma carta, uma visita. Como naquele janeiro e no anterior, janeiro de 2006. Dessas visitas li para ele uma frase do Carlos Leonam, da coluna Cariocas da Carta Capital, quando diz: "Visita é que nem peixe. Depois de três dias começa a cheirar mal", num claro recado para os turistas que se hospedam na casa dos cariocas nos verões. Tito ri e fala: "Você vem aqui, me faz companhia, me ouve, conversamos até tarde, divide as despesas. Vá ficando". Fiquei e a convivência serviu para conhecê-lo melhor. Tito é uma pessoa reservada, contida, perdeu a esposa e não quis dividir seu espaço com mais ninguém. Optou por morar só, com suas coisas, recordações. Quem aplaca a solidão é Amanda, uma rechonchuda e carinhosa dálmata. "Odeio quando a levo para passear e ficam naquele: Como está gorda! Gorda ela não? Concordo com uma fisionomia de desagravo, pois me irrita", diz ele. Aprendeu a conviver com rotina diária de uma diabetes que lhe atazana a vida: "Não é fácil esse negócio de se furar todos os dias, mas acabei acostumando. Faço tudo, desde as aplicações, medições e tento seguir a dieta de boca. Levo a tralha toda em todas as viagens por aí".Em casa, faz de tudo um pouco. A doméstica e amiga de tantos anos vem três vezes por semana, "é como se fosse da família" e nos restantes ele mesmo cuida de tudo, ao seu modo, desde os dejetos da Amanda a todos os afazeres domésticos. Aliado a isso, compõe e toca regularmente num teclado instalado na sala, junto a janela. Não abre mão da leitura diária dojornal O Globo e justamente com o que ali lê, noto algo a lhe atormentar: "Nós, os artistas mais velhos estamos mais do que esquecidos, renegados. Ninguém nos procura para nada. Nada acontece antes do Carnaval. Tudo agora é Chico (Chico Buarque estava de CD novo), todos os dias ele está em todas as citações. Gosto dele, mas falam demais dele. Essas colunas de notinhas citam ele para tudo, tudo é opinião dele e nada para o resto". Abro o jornal e acompanho a verdade antes constatada por ele.
Na primeira noite nos leva para jantar no Cirandinha, um restaurante na avenida Nossa Senhora de Copacabana. Ele reencontra velhos conhecidos, circula pelas mesas e chama os garçons pelo nome. No dia seguinte estávamos no Mala e Cuia, especialista em cozinha mineira: "Venho sempre nesses lugares, é tudo perto, tem variedade, não é caro e conheço todo mundo". Na segunda noite quem aparece é Haroldo Goldfarb, um pianista de mão cheia que o acompanha atualmente. Tito quebra a dieta, pedimos pizza e o melhor estava por vir, ele canta com Haroldo nos teclados. Repassam o repertório e algumas inéditas vão sendo ensaiadas. Nesses momentos as horas passam e ninguém percebe. Tito estava radiante e relembra o dia em que Guinga veio compor juntos: "Foi difícil, pois ele detesta cachorro e a Amanda não deixa ninguém quieto. Acabou se trancando no quarto e de lá não saia. Não conseguimos fazer nada juntos, a dupla não deu em nada e ele nunca mais voltou".
Ele não se arrisca a sair conosco pelas ruas, pois sabe que viemos com disposição para bater perna e foge disso. Reclama muito de dores nas caminhadas. Tem um medo imenso da diabetes provocar agravamento de problemas de saúde. Nossos papos são todos noturnos e num deles acaba me mostrando uma preciosidade, um caderno amarelado pelo tempo, com letras inéditas. Manuseio embevecido aquilo tudo e ouço a história de sua construção: "Aqui tem letras para vários discos. Tenho mais de vinte com o Paulo Sérgio Pinheiro e queria muito ver isso gravado, talvez pela Nana Caymmi. O projeto é barato, mas me cansa ir atrás disso". Ele se põe a
contar algumas delas e eu ali sem saber o que lhe dizer. Foi uma noite e tanto, ele tocando e cantando por muitas horas e eu, inebriado no sofá, tendo Amanda no meu colo. Me contou histórias bem pessoais, como a do sítio no interior do Rio que queria vender, pois os filhos já não tinham como dar atenção para aquilo: "Eu já não tenho forças para ir lá como antes, nem carro tenho mais. Cansei. Tudo um dia chega ao fim." Durante o ano vende o sítio.Numa manhã Tito atende o telefone e é surpreendido com uma ligação diferenciada. Era o tal do golpe do filho sequestrado. Fica nervoso, mas instantâneamente desliga o aparelho e liga para o filho. Quando percebe que ele está em casa, me pede para atender as ligações seguintes domeliante. Repetimos os diálogos trocados por muito tempo. Falamos muito de seu amigo paulistano, Francisco Bonadio, fã nº 1 dele, tendo todos os seus discos: "Ele sabe mais da minha vida do que eu próprio. Acompanha toda minha vida em São Paulo, shows e tudo. Tira cópias de músicas, grava, distribui, é meu anjo da guarda. Quando não me lembro de alguma coisa, ligo para ele. É uma enciclopédia". Nove dias passam muito rápido e quando percebemos já estamos nos despedindo. Mal havia voltado para Bauru, recebo uma boa notícia. A rede de supermercados carioca Zona Sul havia comprado os direitos da música Balanço Zona Sul, um dos seus maiores sucessos e lança um jingle na voz do Simoninha, permanecendo como hit daquele verão. Tito voltou a ser falado por um bom tempo.Hoje, passado o susto, Tito está se recuperando de um AVC, já em sua casa, ao lados dos dois filhos, numa fisioterapia lenta e gradual, porém cheio de esperanças: "Tem um monte de meninas bonitas ao meu lado me massageando e minha voz já está voltando ao normal. O maior sofrimento foi o passado no hospital, velho nenhum aguenta aquilo". Uma constatação, se está todo pimpão e reclamão é porque tudo caminha no sentido da recuperação. Torço muito por isso.
Henrique Perazzi de Aquino, escrito em 04/03/2008

3 comentários:

Anônimo disse...

Tito está quase de volta, para terminar de gravar um disco com Gilson Peranzetta. Faltam umas quatro músicas. Deve sair em breve. Pela sua recuperação e volta aos palcos.
Adélio, de Pirajuí, sua terra natal.

Anônimo disse...

Henrique acabo de ler seu texto e fico muito feliz por ter ao meu lado uma pessoa tão sensivel com a poetica pessoal....é com muita docura e afeto q suas palavras permeiam meus sentimentos!!!!!
gisele pertinhes

AVALON LAND KENNEL disse...

Gostei muito do blog e não nego minha satisfação ao rever a Amanda (dalmata). Eu a vi nascer e me lembro claramente do dia que levei ela na casa dele.
Márcia - Avalon Land Kennel