terça-feira, 6 de maio de 2008

MEMÓRIA ORAL (32)

A DESPEDIDA DO VELHO COMUNISTA
A notícia vazou pegando a todos de surpresa. O mais velho comunista de Bauru, Arconsio Pereira da Silva, com 92 anos completados recentemente estaria prestes a deixar a cidade, indo residir em São José do Rio Preto. Algo estranho pelo inusitado disso ocorrer justamente no momento seguinte a ele ter conseguido algumas reparações financeiras, após décadas de muito sofrimento, resultando na compra de sua casa própria e a da sua aposentadoria ser regulamentada.

Sofrimento é algo que Arconsio soube muito bem enfrentar durante toda sua vida, pois esteve a frente de incontáveis perseguições, todas derivadas por uma escolha que fez na vida, a de ser comunista e defender os direitos dos trabalhadores brasileiros, principalmente os da categoria dos ferroviários, sua principal atividade profissional ao longo de toda vida. Mudar de cidade todos podem fazê-lo na vida, até porque esse bravo nordestino fez isso em outras ocasiões. Veio muito cedo para o estado de São Paulo, construindo toda sua militância por aqui, constituindo família e obtendo o ganha pão, nas mais diferentes atividades profissionais.E por que, justamente agora, quando tudo parecia estar nos eixos, iria deixar a convivência com a cidade que o abrigou e os amigos conquistados por quase uma vida toda? Essa pergunta martela a cabeça de todos seus amigos e para respondê-la, só mesmo indo até o encontro de tão intrépida pessoa, ouvindo de sua própria boca os motivos para tão brusca decisão. Foi o que fiz, no final da tarde de 1º de Maio, feriado do Dia doTrabalho, encontrando-o só em casa, onde reside com a esposa Zuleide Julia de Souza da Silva, 57 anos, num bairro da periferia da cidade. O dia estava um tanto frio, chuvoso e Arconsio me recebe no portão, bem agasalhado e me convidando para logo adentrar o interior da casa, pois ventava um bocado naquele dia.
Somos velhos conhecidos. Estive ao lado dele num embate na Associação dos Aposentados, do qual é sócio fundador, com a carteirinha de nº 1, gravei sua festa de 90 anos num vídeo para a Secretaria Municipal de Cultura e acalentava um sonho de escrever algo mais volumoso sobre sua vida, tão cheia de histórias, todas intensamente vividas. O sonho do livro se desfez pela falta de tempo, mas estamos sempre nos ligando e nos encontrando nos acontecimentos da cidade, principalmente os da dita esquerda nativa. Isso me faz inquiri-lo de imediato sobre o assunto que me fez ir até lá dessa vez: "O que está te fazendo ir embora, meu velho?"."Comecei aqui, vi esse Bauru crescer. Ano passado a esposa foi me encorajando a mudar e tudo foi acontecendo aos poucos. Ela me quer ao lado das sobrinhas e já não decido nada sózinho. O que achar mais conveniente a gente faz. Vou sair daqui e morar com as duas sobrinhas, mais ela, num apartamento. Quando concordei, a esposa cuidou de tudo, arrumou comprador e até já vendeu a casa. Mudo até o final de maio, pois quando sair o financiamento do comprador, ele quer logo a casa. Só sei que em junho volto para o Nordeste. Fico mais uma temporada por lá, talvez uns dois meses, entre o interior de Alagoas e o Recife. Mas acho que ainda volto a morar por aqui", diz um Arconsio meio sem jeito. Muitos de sua família não sairam doNordeste, tendo sete irmãs em Maceió, uma em Viçosa e dois irmãos trabalhando no campo. Tem pressa em revê-los, pois sabe que da vida já usufruiu um bom bocado.
Acompanha a vida da cidade pela leitura do jornal, pelos noticiários de TV e rádio e pelos amigos, nas ligações telefônicas diárias. Disso vai sentir muita falta, pois lá em Rio Preto estará bem distante dos acontecimentos do lado de cá. Sai raramente de casa e uma das últimas foi para prestigiar a justa homenagem que a Câmara de Vereadores prestou para o amigo SebastãoPereira da Silva, um outro militante político, também cassado, num título de Cidadão Bauruense. "Só achei chato uma coisa, o ex-prefeito Nilson Costa me evitou, procurou se virar quando me viu, não me cumprimentou. Deixa pra lá", conta ele.
É um inveterado contador de histórias e as suas são sempre recheadas de muitos detalhes, como a acontecida em 1949, durante uma greve de ferroviários, quando foi preso justamente e tão somente por fazer greve, presenciando na delegacia a chegada de Guiomar Ferrari, que havia matado um funcionário público da Noroeste. "Matou com revólver e depois furou também. Nem ficou presa naquele dia, foi bem tratada e eu lá no fundão. Só depois ela foi condenada. Nossa sociedade era assim, fiquei seis meses preso e ela teve ampla liberdade", vai lembrando Arconsio. Quando relembra fatos das ferrovias, enfatiza que: "A Paulista era uma estrada admirada por todos, nem demonstrava que existia patrões e empregados. Todos era bem interessados nos destinos da empresa, tudo organizado, bem conservado, com ótimo atendimento. Acertava o relógio com o trem. A Noroeste sempre foi uma estrada mais regular, sempre teve uma má administração, era federal, com gente indicada pelo Governo. Teve um tempo que se desenvolveu mais e foi bem conservada. Agora, lá para cima, no Mato Grosso, Ponta Porã era ruim. Foi muito errado acabar com a Noroeste", conclui o velho militante.
Pelas suas contas trabalhou por 20 anos na ferrovia, tendo mais 37 anos como anistiado, do qual espera receber um dia, ainda em vida. "Quando veio o Governo Montoro ele tinha que resolver o problema de 32 ferroviários. Dentre eles o meu. Continuo com muita esperança, como acredito muito no Governo Lula. Sou admirador dele, é um grande presidente. No Nordeste, de cada dez, oito são a favor dele. A situação que ele pegou o país foi muito ruim, não estava nada boa e hoje é bem outra. Isso é um princípio humano que, as vezes a gente critica e o Lula também ajudou todos os parentes dele", continua relatando.
Quando voltamos a comentar sobre sua despedida da cidade, desabafa: "Eu queria mesmo era mudar daqui onde moro. Aqui já foi muito violento, hoje está bem melhor. Quero voltar para Bauru quando sair minha indenização. Vou voltar, afinal foi aqui que vivi a maior parte de minha vida". Não se furta a comentar os temas latinos: "A Venezuela está bem mais quente do que aqui. Eles estão com o americano na garganta". E sobre as eleições que se aproximam, diz sobre a situação local: "Fico triste por ver o PMDB dividido. O grupo de esquerda parecia que ia ser fortalecido, ainda é uma força e pode ter um bom fim. O Tuga (atual prefeito de Bauru) é que não quer aparecer tanto. Eu gosto dele. As suas demonstrações a respeito dos candidatos, dizendo que da Rosa (Rosa Izzo, provável candidata à prefeito) nada podia falar, pois ainda nada fez, foram muito boas". Tudo isso continua demonstrando o quanto está antenado com nossos assuntos do momento.
Na despedida, diante de um belo jardim, muito bem cuidado, ocupando toda a frente da casa, revela uma desilusão: "O comprador vai acabar com as minhas árvores. Já falou que vai derrubar o pé de graviola. Olha como está florido, não vai dar nem tempo de colher os frutos". Nisso, já na calçada, quem chega é a esposa Zuleide. Tiramos fotos juntos e antes de adentrar o carro, me segurando pelo braço diz: "Você volta aqui antes de ir em definitivo, não?".Henrique Perazzi de Aquino, escrito em 04/05/2008.

3 comentários:

Anônimo disse...

Obrigado Henrique pelo envio. Estou inserindo no Vivendo Bauru

abraços
RENATO CARDOSO

Anônimo disse...

Querido Henrique,
que lnidas linhas saem dessa mão.

Adoro sua produção. Compile e publique.

Parabéns.

Saudade, abração,

Rubens Costa Marques - Campo Grande

Anônimo disse...

Recebi sua correspondência. Sobre Arcônsio escrevi quando ele foi homenageado pela Câmara. A sua história política confunde com a história dos inconformados com o nosso pobre Brasil, cheio de desigualdades. Abraços.
Irineu Bastos