sexta-feira, 23 de maio de 2008

MEMÓRIA ORAL (34)
A MADRUGADA DA VIRADA NA ESTAÇÃO
Como havia ocorrido ano passado, novamente entra no circuito da II Virada Cultural realizada em Bauru, um dos locais mais visados pelo público jovem, o hall de entrada da famosa estação ferroviária da antiga NOB –Noroeste do Brasil. O local é cult e promove um revival para o passado da cidade, cuja história está entrelaçada com os trilhos férreos. Quando da definição dos locais, nos acordos entre a Secretaria de Estado da Cultura e o secretário municipal da pasta, um previamente definido sempre foi a estação. O secretário José Augusto Ribeiro Vinagre discutiu um nome de peso para a apresentação no local, que ano passado teve como atração, João Gordo num evento como DJ. O local bombou e foi assunto por meses na cidade. Até hoje tem aqueles que se arrependem de não terem estado por lá. Para esse ano, o escolhido foi Edgard Scandurra, ex-Ira, que iria preceder o DJ, André Juliani. O primeiro acionando suas picaps por volta das 1h30 e o segundo às 3h30, num show denominado “Scandurra Live P.A”.

Os preparativos começam bem antes. A estação pertence hoje aos trabalhadores ferroviários, entregue a eles numa pendência trabalhista do Governo Federal, que os pagou entregando-lhes a edificação mais famosa da cidade. Como não são comerciantes do ramo imobiliário, estão com o “elefante branco” na mão e toda vez que o pessoal da Cultura local necessita fazer algum evento, uma autorização é conseguida junto ao Sindicato dos Trabalhadores Ferroviários. Tudo é conseguido sem problemas, pois eles são parceiros do vizinho, parede meia com a estação, o Museu Ferroviário Regional de Bauru. Após esse primeiro passo, vem a questão social envolvendo a estação. Ela está fechada há mais de dez anos e no seu entorno dormem mendigos e andarilhos, principalmente debaixo de sua marquise central. Um trabalho de limpeza necessita ser feito a cada liberação, pois o cheiro de urina é forte e o lixo acumulado pelos vidros quebrados das portas é grande.

Vencida mais essa etapa, vem outra, a da adequação do espaço para o evento que irá se realizar. Cada caso é diferente do outro, necessitando de uma condição diferente. Nesse, com um evento musical de grande concentração de equipamentos, ocorre um reforço de fiação e um cuidado especial na parte elétrica, para não ocorrer sobrecarga. O servidor municipal, também eletrecista, Antonio Sérgio de Paula, fica encarregado de dar retaguarda aos técnicos que não conhecem a realidade do prédio. “Muita coisa é improvisada e quem chega tem que entender isso, pois isso aqui não foi feito para shows dessa natureza. No final, fazemos tudo e mais um pouco, seguimos algumas regras, sem maiores problemas e sem as famosas gambiarras”, relata Sérgio.

A estação está localizada bem no coração da cidade, na sua região central mais degradada, justamente pelo abandono causado após a privatização da ferrovia. A praça onde está inserida é um deserto à noite e sua movimentação até bem pouco tempo ocorria até por volta das 21h, quando terminava um culto da Igreja Universal, num dos seus cantos. A igreja inaugurou templo novo e o aspecto de abandono só aumentou. Na noite do show, 17 para 18 de maio, a calmaria persiste pelo início da madrugada e só é quebrada pelo barulho da montagem e dos testes de som, além do pessoal que instala um bar no local. Algo um tanto surreal para a penumbra das madrugadas por ali. Quem dorme debaixo das marquises acorda no meio da noite e é obrigado a procurar outro local para esticar o corpo, pois o entra e sai é um prenúncio de que algo muito estranho está prestes a acontecer.

Passa da uma hora da manhã e os preparativos internos estão mais do que prontos. O tédio toma conta de todos, pois o sono chega para quem fica até essas horas numa paredeira de dar gosto. Do outro lado da cidade, no teatro chega ao fim o último show da noite e no parque Vitória Régia, como término do show da banda gaúcha Cachorro Grande, tem início o último por lá, com o Funk Como Le Gusta. Público mesmo só alguns por volta das 2h equando o DJ Juliani vê que tem mais gente fora do que dentro, pede que sejam permitidos a entrada dos sem convites, pois “sem público fica difícil, necessito de um clima para tudo pegar legal”. Com umas cem pessoas o evento começa com meia hora de atraso e desde o começo aglutina diversas galeras da cidade, desde os habituais frequentadores de raves, de discos, os do hip-hop e também os de pagode, além dos curiosos em busca dedivertimento variado. Estão todos por lá, sob o olhar apreensivo de uma equipe de segurança, coordenada por Cofrinho, proprietário da Nossa Segurança. “Não tem como fazer revista nessa noite, pois faltam muitos vidros nas portas de entrada da estação. Se alguém quiser passar algo, entra sem e outro lhe passa pelos buracos. Vamos ficar atentos é em garrafas e mais vigilantes do que a conta”, conta o experiente segurança, adorado por artistas, como Ivete Sangalo, que lhe exige nas apresentações pelo interior paulista.

Edgard Scandurra chega com a empresária e se instala no improvido camarim, previamente montado dentro de um vagão dormitório de uma composição turística, do Projeto Ferrovia para Todos, pronto para circular na cidade na manhã que se aproxima. “Estive aqui, acho que em 1982, num outro momento de minha vida, quando estava a caminho do Festival de Águas Clarase me lembro da grande movimentação que era isso aqui. Ouvia histórias variadas acontecidas no tal Trem da Morte, aquele que ia para Bolívia e isso tudo me voltou à mente nessa noite”, conta Scandurra, sentado num vagão, dentro de uma sala com varanda, enebriado com o clima criado e pelo local escolhido. Chegou no meio da noite, vindo de um show em Campinas e não se furtou a adentrar o hall, lotando aos poucos e tirar fotos com quem o reconhecia. Do lado de fora quem estranhava a movimentação era Jorge, um morador de rua, vestido com uma surrada ceroula, catando bitucas pelo chão e ganhando bebida de alguns, num gesto de simpatia partilhado entre os dois lados envolvidos com o inusitado da noite.

Com o final do último show da noite, do outro lado da cidade, todos vieram para a estação e o local antes calmo, começa a ter uma brutal transformação. De um momento para outro a praça enche e circulam muito mais gente que os 350 convites distribuidos. A galera dos “sem convites” faz uma pressão e pouco a pouco vai conseguindo adentrar o local, uma vez que tudo é grátis. “A idéia é acomodar todo mundo, desde que o pessoal da segurança nos dê o aval. Se der, ninguém vai ficar de fora”, relata Vinagre. Com meia hora de atraso, Scandurra adentra o palco e com sua guitarra contagia a maioria do público. A casa bombou em questão de poucos minutos e continuava cheia lá fora. Até os músicos do Cachorro Grande e do Funk Como Le Gusta vieram para curtir o final da festa. Logo estavam enturmados e totalmente integrados. “Estou rodando todos os locais e esse é imperdível. A festa mais diferente da noite, estilo trash, gerando fotos maravilhosos”, conta Edward Albiero, arquiteto e nas horas vagas, participando de um grupo de fotógrafos, envolvidos com a retratação da cidade nos seus mais diferentes momentos. Já Tatiana Calmon, radiante com a movimentação, trouxe a filha, Dandara, de 14 anos e juntas, esbaldaram-se com o agito: “Ela se perdeu, ou sei lá se fui eu que me perdi. O fato é que revivi meus áureos tempos e gostei de voltar ao requebro. Dancei até”.

O clima foi esse até o final, por volta das 6h da manhã. No meio do show as portas foram todas abertas, mesmo com alguns receios, porém tudo transcorreu dentro da normalidade, sem nenhum incidente. Quando Scandurra parou de tocar definitivamente, após um bis onde improvisou com a guitarra o som de um trem, as luzes foram logo acesas e em meia hora, tudo estava vazio novamente. Na saída, ele de depara com uma cena surreal, a locomotiva Maria Fumaça, a do passeio matinal estava sendo acesa e deve ter saído pensando no seu dia que se encerrava e o de outros que se iniciavam. A desmontagem foi imediata e às 7h, quando as grandes portas foram fechadas, a rotina do lugar voltou novamente ao seu habitual, aquela do silêncio provocado pelo abandono.


Henrique Perazzi de Aquino, escrito em 19 de maio de 2008.

Um comentário:

Anônimo disse...

a virada virou minha cabeça, estive na nações e na estação e sai de lá maravilhado
abreu