segunda-feira, 12 de maio de 2014

MEMÓRIA ORAL (160)


UM “FIM” QUE É O COMEÇO PARA PENSAR DIFERENTE ISSO TUDO

Toda vez que aporto aqui no Rio de Janeiro algum gaiato me questiona: “E não foi na praia?”. Na maioria das vezes respondo de forma lacônica com um simples e direto “Não”. E o faço não para confronto, mas numa clara demonstração que o mais gostoso e saboroso dessa ainda “maravilhosa cidade” não está em suas praias. É o que tento demonstrar nessas idas e vindas.

Ontem foi um domingão por aqui, nem muito calor, nem frio. Meio termo e assim sendo, ótimo para bater asas, oportunidades variadas e múltiplas, Dia das Mães, eu sem a minha e longe de casa. Dia de Fla Flu no Maracanã, o que faz qualquer um dar uma balançada, mas minha escolha recaiu sobre um outro evento. Desde que no sábado olhei a página de Cultura d’O Globo e lá estava em manchete “Invenção do Cais – Fim de Semana do Livro no Porto reúne manifestações cariocas na região em que a cidade nasceu”. O negócio me interessou de imediato por se tratar da Zona Portuária, uma região com um casario de séculos passados, vielas e reduto onde o samba nasceu. E mais, logo na foto uma das pessoas mais antenadas no quesito samba, o historiador Luiz Antonio Simas. “Os convidados são escritores que falam de carnaval, esquinas, capoeira e cachaça. Isso é tão importante quanto os que falam de realidades fantásticas”, disse Raphael Vidal, o idealizador do evento. Fui conferir os nomes dos convidados e para mim ali estava o que de melhor acontecia no Rio no final de semana e tudo gratuito. Sábado foi impossível lá estar, mas no domingo logo após o almoço me debandei e permanecei até o final de tudo, com o show de Fabiana Cozza, por volta das 22h. Foi bom demais e volto hoje para Bauru recarregado.

“Se o Rio é uma diversidade de cores, sons e palavras, é resultado das trocas que só existiram por conta do vai e vem interminável dos navios. Esse Rio de Janeiro nasceu pelo porto. O que há sob o chão da região portuária é a memória de todos nós. E esse memória é a certdião de nascimento da cidade”, defende Raphael Vidal para o Globo. “O clima é de botequim. E é nos botequins que a cidade fala. Nós enaltecemos os escritores alemães e não achamos importante falar sobre os compositores da Velha Guarda do Estácio. Todos os convidados do FIM são escritores. E escritores que falam de carnaval, esquinas, capoeira e cachaça. Isso é tão importante para a literatura e a cidade quanto os que falam de realidades fantásticas”, conclui.

“Para vivenciar a experiência do FIM de Semana do Livro no Porto é preciso andar pelas ruas da Região Portuária. É o estar no chão que une toda a programação. As mesas foram montadas a partir da percepção da cidade como um terreiro. Nela, ressoam os tambores das nossas formas de nascer, morrer, festejar, comer, beber, dançar, brigar, amar, matar, louvar os ancestrais e inventar a vida. Tudo isso, diga-se freqüentemente ocorre à margem das formalidades. Buscamos convidados que tivessem reflexões pertinentes e trabalhos vinculados a esse recorte cultural da cidade e da sua gente, longe da apologia gratuita do carioquismo e da demonização dos nossos mortos”, explica o historiador Simas, também entrevistado pelo Globo, repudiando o título de curador do evento. Acha mais adequado ser chamado de “combono”, um termo do candomblé que traduz o que venha a ser a pessoa que auxilia o trabalho das entidades no terreiro. Informe que estarei incorporando o termo para minhas atividades de auxílio coletivo a eventos realizadas na minha (sic) Bauru.

Parti em busca desse Rio, bem fora do imaginário das elites, que pouco enxerga de proveitoso os ares advindos da Zona Norte, bairros do borbulhante subúrbio. Felizmente para os organizadores do evento, nesse reduto ocorre justamente o contrário, aí é que se dá o Grande Encontro, o desabrochar da cara e identidade de um novo Rio, moderno, autêntico, nada artificial. Afinal foi dali que nasceu as maiores criações artísticas brasileiras do século XX: o samba urbano e o desfile das escolas de samba. Juntando isso e mais o que está proposto por eventos dessa natureza, eis um cadinho com um algo mais, uma miscelânea só possível com naturalidade nas regiões como ali no cais da Praça Mauá, na Pedra do Sal, Gamboa, Saúde, Santo Cristo e Prainha. No folder do evento uma explicação definitiva: “O bate papo do Fim não são debates acadêmicos, nem palestras, muito menos disputas de opiniões. São bate papos mesmo, conversas de botequim, sem mediador para interferir, com leveza e acaso. E sim, você está nessa: pode interferir a qualquer momento, como se o cotovelo estivesse no balcão, pedindo com gentileza o limão da casa. A idéia é simples: os escritores estão aqui e são como nós, não tenha medo. Gostou? Apareça na Casa Porto, no Largo de São Francisco da Prainha”. Fiz isso.

Na praça uma Feira de Livros tomava conta do lugar e quando fui conferir, descobri que ali não iria encontrar grandes editoras, muito menos as grandes livrarias, mas tudo alternativo, bem ao estilo do proposto. Ninguém pagava nada para expor e ali estar, todos convidados e por terem algo para mostrar. Tudo podia ser folheado, manuseado, enfim tocado. Além disso, uma praça de alimentação com produtos diferenciados, também alternativos e privilegiando muita gente da própria região. Gostei disso e mais, quando me deparei com um brechó, um maitre argentino, o Pablo produzindo um transado “hambúrguer vegetariano” (provei e aprovei), além da venda de camisetas com estampas bem transadas e gente do lado de lá do balcão querendo conversar e não somente te vender algo. O negócio de cara não era só ganhar dinheiro, mas mostrar outras possibilidades do Rio para gente do Rio e de fora dele. Das livrarias só a Folha Seca, do Rodrigo Ferrari, um que atua há décadas dentro desse espírito carioca de encarar o mundo, com uma temática baseada na trilogia que o tornou famoso, livros versando sobre carnaval, futebol e carnaval. E para quem queria conhecer um algo mais da região nada melhor do que parar na barraca dos “Viajantes do Território”, explicando a cartografia da região e levando gente para fazer um passeio afetivo pelos becos, sobrados, escadinhas e cantinhos que só quem mora li sabe de sua existência.

A ousadia na forma de mostrar a que vieram está no folder de apresentação com um título em letras garrafais, num formato de estandarte: “O FIM está próximo”. Na leitura do texto dos organizadores (não seria melhor desorganizadores?) a explicação: “Aquele papo no botequim na esquina, acompanhado de uma cerveja trincando e de um belisco sem igual sem igual, em que alguns amigos de longa data se unem a desconhecidos na troca de opiniões sobre assuntos de suma importância, como carnaval, futebol, malandragem, comida, botequim, macumba, violência, capoeira, jogo do bicho, festa e o que der na corriola. Se você mora na cidade maravilhosa com certeza já esbarrou – o já se enturmou – com essa cambada em algum momento. Mas se descobrisse que há uma penca de livros sobre isso tudo, escritos por quem respira e vive o espírito carioca nas universidades, terreiros, nas ruas, nos botequins, e que essas pessoas misturam Zé Pilintra, Lima Barreto e Pixinguinha na busca por entender umacidade com o mesmo ziriguidum que um bebum faz de um traçado para desanuviar a vida? Não seria bacana bater um papo, beber uma cerveja gelada e beliscar um petisco com esses escritores, pois escreveram livros, mas também antropólogos, livreiros, jornalistas, historiadores, carnavalescos, editores, fotógrafos, compositores, artistas e quejandos? E se o furdunço fosse num final de semana, com direito a conhecer o lugar histórico – ainda preservado – que nos remete ao surgimento do Rio de Janeiro, e de quebra conhecer seus saberes e sabores? É essa a experiência que levamos ao FIM de Semana do Livro no Porto, ou somente FIM, como carinhosamente é conhecida nossa celebração do Rio de Janeiro”. Irrecusável convite.

A região é isso mesmo, um reduto indescritível, pois ali no Morro da Conceição uma reunião incomum entre seus moradores, artistas, habituês e outros que escolheram gravitar por aquele mágico quadrilátero para promover criações, encontros e desencontros. O local está recheado de ateliês e residência de artistas. Quer dizer, a arte respira e transpira por aquelas ruas estreitas, pulsa como nunca e lateja para explodir, ganhar mundo. Não dá para circular por tudo, ou seja, impossível querer fazer tudo somente numa tarde de domingo, mas o inevitável ocorre a cada virada de rosto, com possibilidades saborosas de ver gente conhecida e com elas estabelecer um estreito contato de conversação. Diante de tantas possibilidades, escolhi algumas delas. Na primeira, após o passeio pela praça fui presenciar o bate papo com os professores Marcos Altivo e Luiz Antonio Simas, com o título “Um cantar à vontade”, ou “as histórias de um povo que busca, nas frestas da cidade oficial, inventar a vida nas festas entre batuques, danças, folguedos, sambas e gritos de gol”. Encantador, não?

Saboreei tudo com certa gula. “O mistério do Rio de Janeiro está na encruzilhada, o drible na navalha, na borda do tempo. O bom estilo do futebol livre, leve e solto é diferente de quem é criado para viver em gaiola. Somos criados hoje em dia para viver enjaulados, sem nenhuma liberdade corporal. A várzea morrendo e com uma criança indo para uma escolinha de futebol aos 8 anos onde já aprende tática, impossível lançar petardos dessa forma. Lindo conhecer a experiência de quem possui o estilo de jogar bola como se estivesse numa gafieira, tudo puladinho para lá e para cá, buscando a próxima FRESTA. A mercantilização transforma a tradição em falta de diálogo. O Rio é uma cidade de encontros. Facada pode ser um fatal encontro, mas eu busco outros, como no samba, por exemplo”, esse alguns dos diálogos de ambos, misturados, pois como pensam de forma parecida, nada melhor do que o que um disse estar ligado umbilicalmente ao que o outro referendou. Ainda perguntaram sobre o funk e Altivo assim respondeu: “Viciei meu ouvido, gosto de ouvir outras coisas. Não se precisa gostar de funk, mas respeitar uma expressão da juventude, uma linguagem comum de representação. Já o funk putaria é uma perversão”.

Depois dei de cara com o fotógrafo meio gaúcho, carioca e bauruense Rui Zilnet num botequim na esquina da praça, quando terminamos juntos de assistir o primeiro tempo do Fla Flu (Flu ganhou de 2x0) e depois fomos circular pela praça, quando me apresentou um especialista em capoeira, o Carlão, com uma proposta arrojada junto da comunidade e de utilização da Casa Porto, o local onde os debates ocorriam. Tomamos muitas stelas (a cerveja long neck, por favor) e presenciamos a chegada do pessoal para a palestra das 18h, a instigante “Saideira: Minha cachaça é a Imprensa”, um papo com um dos maiores ilustradores e caricaturistas do mundo, o simpático Cássio Loredano (ele confirma que outros três andam por aí) e o livreiro Rodrigo Ferrari, ambos com fardamento feito a mão, versão nada oficial da camisa oficial da Seleção Brasileira. Nada de tão sério, mas com muita risadas, saindo disso tudo o que de mais sério pude escutar em todo o evento e dito por alguém que não me lembro o nome: “Não temos mais espaço para publicar nossos textos e desenhos. E por que não fundamos um jornal?”. Rodrigo, meio sem querer e não medindo o tamanho do imbróglio onde se meteu emendou e foi aplaudido por todos quando sacou o nome, dito em alto e bom som: “Folha Seca”. O compromisso, pelo que entendi, está selado e sacramentado. Na reunião das forças ali presentes, quem sabe, mas que seria bom demais, isso seria.

De lá, Rui bateu asas (estelado dos pés à cabeça) e fiquei batendo um longo papo com nada menos que um dos tijucanos mais instigantes que conheço, Eduardo Goldenberg, o do blog Buteco do Edu. Assistindo a um espetáculo teatral no largo da Pedra do Sal e me vendo ali meio encantando com o lugar, olhando para todos os lados e cantos, me leva até a placa explicativa do lugar. O teatro de rua realizado ali na subida da ladeira era “Dona Mulata e Triunfo”, com um ator africano de Guiné Bissau e uma ótima brasileira (que não descobri o nome). Na seqüência todos os que estiveram envolvidos nos papos pararam tudo e foram assistir ao show de Fabiana Cozza, uma paulistana que canta e encanta com samba bem focado nas religiões de origem afro e que, junto com a poesia do pernambucano Marcelino Freire, declamada de um jeito único entre as músicas, seguiria noite adentro se não fosse o impedimento de tudo ter que chegar a um fim. Simbiose única, bela, única e divinal, encerramento com chave de ouro. Fabiana ia chamando ao palco gente da comunidade quando os viam ali ao lado, como uma dançarina, um que produzia um som de mar com uma castonhola de mão e nessa interatividade tudo deu muito certo e chegou teve que chegar ao FIM.

E eu, um bauruense perdido nessa noite carioca, explico assim dos motivos de ver pouco o mar, apesar de estar ao lado dele nas minhas andanças pelo Rio. Já penso em produzir algo parecido com esse Fim lá no sertão paulista, pelos lados da Feira do Rolo. Bauru abrigaria algo com esse formato? Penso que sim e tento bolar como isso pode ser possível.

3 comentários:

Anônimo disse...

Fui com meu filho no Domingo, fiquei manhã e tarde toda. Fiz o tour pelo morro da conceição e vi parte de um Rio que eu ainda não conhecia. Fiquei emocionada com os lugares e pessoas que vi. O dia realmente foi mágico, tudo conspirando à favor de todo o desejo que carregamos de ver essa cidade sendo maravilhosa pra toda a sua gente. Parabéns a todos!
Juliana Barreto - Rio RJ

Anônimo disse...

Aqui, a grande crônica do FIM.

Será que teremos finalmente um outro jornal carioca?

" … e presenciamos a chegada do pessoal para a palestra das 18h, a instigante “Saideira: Minha cachaça é a Imprensa”, um papo com um dos maiores ilustradores e caricaturistas do mundo, o simpático Cássio Loredano (ele confirma que outros três andam por aí) e o livreiro Rodrigo Ferrari, ambos com fardamento feito a mão, versão nada oficial da camisa oficial da Seleção Brasileira. Nada de tão sério, mas com muita risadas, saindo disso tudo o que de mais sério pude escutar em todo o evento e dito por alguém que não me lembro o nome: “Não temos mais espaço para publicar nossos textos e desenhos. E por que não fundamos um jornal?”. Rodrigo, meio sem querer e não medindo o tamanho do imbróglio onde se meteu emendou e foi aplaudido por todos quando sacou o nome, dito em alto e bom som: “Folha Seca”. O compromisso, pelo que entendi, está selado e sacramentado. Na reunião das forças ali presentes, quem sabe, mas que seria bom demais, isso seria".


MARIA HELENA FERRARI

Anônimo disse...

Bem perto de onde você passou o domingo, Henrique. no mesmo bairro da Saúde, um dos berços do samba, à Av. Barão de Tefé, fica o Cais do Valongo, o maior e mais importante sítio arqueológico do mundo da diáspora africana. Foi ali que comemoramos, em 14 de março passado, o centenário de nascimento do falecido ator, escritor, deputado federal e senador paulista (de Franca) Abdias do Nascimento. Fundador do Teatro Experimental do Negro, ele é considerado um dos heróis da resistência negra em nosso país, tido, por sua vez, como o que mais renega a sua negritude. Tive o privilégio de ser seu amigo.
Arthur José Poerner