domingo, 23 de fevereiro de 2020

MEMÓRIA ORAL (251)


O QUE VI NO "PROIBIDO" BLOQUINHO, O PERSISTENTE PÉ DE CACHAÇA NO PARQUE VITÓRIA RÉGIA EM BAURU
A proibição estava estampada numa nota divulgada pela Prefeitura Municipal de Bauru, sob as bênçãos da Polícia Militar e do Ministério Público, com divulgação pelos meios de comunicação disponíveis. A notícia correu de boca em boca: estava decretada a proibição do bloco estar nas ruas e de tudo o mais no local, isso dois dias antes do evento ocorrer. A história vem de longa data, quando um grupo de estudantes começa a fazer um roteiro entre as muitas repúblicas existentes no entorno do parque. Desse cortejo nasceu o Pé de Cachaça, mais conhecido como Bloquinho, hoje o maior bloco de rua da cidade, tendo já conseguido em alguns anos atingir mais de 8 mil participantes. O bloco explodiu, cresceu demais, deixou de ter o caráter anterior e passou a ser regido por outra ordem, quando alguns dele passaram a ter lucros. Vendiam canecas, abadás e as bebidas, culminando com o fato de ano passado tentar cercar o parque com tapumes e lá dentro promover a distribuição de bebidas, para quem pagasse pelas canecas. Foram impedidos, porém, sem conseguirem impedir o acesso da multidão de jovens ao local. Esses já entronizaram em suas mentes o fato de, nas tardes de domingo, ali ocorrer algo sui generis, um Carnaval dentro dos seus moldes, o de jovens e adolescentes querendo estar nas ruas nesses dias. Para muitos, a única opção de lazer, ou mesmo Carnaval nesses dias. Legalizado ou não, isso precisa ser levado em consideração.

Existem muitos lados na mesma questão e todos precisam ser levados em consideração. São poucas as opções de lazer para jovens, os daqui e de toda região, pois a afluência deixou também de ser local, atraindo jovens de toda região, esses chegando ao local de vans e ônibus. O bloco deixando de ter o caráter meramente festivo, tendo gente lucrando, nada como tirar desses a colocação dos banheiros químicos, limpeza e segurança no local. Pelo que vejo, o impasse se dá nesses quesitos. Negociação não avançando, proibição decretada, porém do outro lado, a imensa massa humana se dirigindo ao local, sem saber desses detalhes e ali encontrando bloqueio de ruas, policiais por todos os lugares, helicópteros sobrevoando o parque, proibição de ambulantes venderem seus produtos e um clima de bomba relógio prestes a explodir pairando no ar. Tudo foi feito para dispersar a massa humana, mas ela veio, não arredou pé, lotou o lugar e mesmo sem som, sem os ambulantes, ficou perambulando pelo lugar, dando o seu jeito de festar. Foram chegando aos poucos, logo depois das 13h e ali permaneceram até por volta das 23h, sem incidentes, muito vigiados, numa exposição de algo como uma fratura mais do que exposta dentro dos festejos carnavalescos na cidade. Como regulamentar essa festa dominical sem tentar dar cabo na livre manifestação desses jovens? Os mais conservadores insistem no viés da proibição, legislando nesse sentido, com leis aprovadas inviabilizando festas populares, concentrações humanas de grande vulto, opens bar e afins. Pressionada a Prefeitura cede, porém, os jovens nas ruas evidenciam a necessidade de uma solução para, não proibir, mas resolver a questão.

Circulei pelo local e questionei alguns dos jovens. Na chegada de um grupo, perguntei dos motivos de virem a pé de tão longe, pra lá do São Geraldo, mais de 6 km de distância. A resposta foi simples: “Vindo de ônibus não teríamos para beber”. Confesso, minha geração fez o mesmo décadas atrás. Quantos não vinham em grupo do Redentor, Nova Esperança, mesmo São Geraldo a pé para as boates do centro. Iam e voltavam assim, tudo para ter o contado dinheirinho, entrar e conseguir consumir algo. Nada mudou. Até o visual continua parecido. Hoje os meninos de bermudões e as meninas de shortinhos curtos. Ao vê-los caminhando para o parque, bateu o revival na mente, estalo de repetição de algo a ocorrer desde que me conheço por gente. Os tempos mudaram, mas as condições continuam as mesmas, as caras são outras, mas a mensagem cifrada sendo passada das ruas é mais do que parecida. No público concentrado nas ruas, meninos e meninas menores de idade, todos em busca de momentos de festa coletiva. Sem entrar em discussões outras, enxergo sob o prisma deles todos estarem buscando forma de estar juntos e isso não pode ser cerceado, ainda mais por imposição de legislação caolha, enxergando que tudo se resolve somente com proibições, impedimentos, restrições e repressão.

Agora me volto para as soluções. Um amigo da Cultura local me diz não entender como a negociação não ocorreu até a exaustão. “Faltou tato, gente qualificada para tanto e opções. A minha seria oferecer para tudo ocorrer no recinto do Sambódromo ou mesmo do Mello Moraes”. Outro ao ouvir me responde: “Não daria certo. Carnaval é pra ser feito nas ruas, se confinar num lugar fechado ele morre. Não sei porque, mas sempre que isso foi feito, ele fenece. Tem que deixar acontecer nas ruas”. Não tenho a resposta, nem a solução para o impasse, mas de algo existe a mais plena certeza, a proibição é a pior solução. Existe um público de aproximadamente 10 mil pessoas envolvidas e isso, por si só, denota entender dos motivos deles estarem nas ruas, procurando atender o clamor irradiado dessa concentração. A negociação precisa ser feita com os tais dirigentes do evento e se nada for conseguido, por que não a Prefeitura encampar para si o evento e dele auferir os lucros, não financeiros, mas de atendimento a reinvindicação popular? Sem acordo com a parte contrária, ela, a Prefeitura assumir a realização deste Carnaval, já mais do que consolidado, dando condições dele ocorrer sem os percalços atuais. Seria auspicioso para a cidade, para camada significativa dos jovens, dos comerciantes envolvidos, da cidade num todo. Bauru poderia se torna referência nessa festa de jovens no domingo de Carnaval, um dia praticamente morto na cidade dentro do evento carnavalesco. Todos ganhariam e o evento seria incluído no Calendário de Eventos Anuais.

O exemplo dos jovens ontem nas ruas é algo para ser não só registrado, mas entendido. Não ocorreram incidentes, mesmo eles sofrendo espécie de acompanhamento ao pé do ouvido da Polícia Militar, essa solicitada para ali estar e resolver a questão do que havia sido decretado em salas com ar refrigerado. Os jovens permaneceram no lugar, passaram pelas revistas, estiveram vigiados o tempo todo e só festaram, nada mais. Seria mais do que irracional parir da concentração ocorrida algo descambando para a violência. Tudo transcorreu dentro da normalidade, guardadas as devidas ressalvas, pois música, quando ocorreu, foi incipiente para atender a todos. Bauru e seus governantes vão ter que resolver esse imbróglio de uma vez por todas. Ou se dá uma conotação de autoritarismo, cara de quem resolve tudo na base da repressão ou se abre um diálogo desde já e para o próximo ano, a festa legalizada e bancada pela Prefeitura, essa verdadeiramente olhando para a cidade, sua gente e entendendo que essa parcela da população precisa ser olhada com outros olhos. A existência de pressão pelo lado mais conservador precisa ser vencida por ações ousadas, quando a população a ser atendida dará o respaldo e a resposta no momento exato.

O Pé de Cachaça é algo sem volta, esse Bloquinho é nossa maior manifestação de carnaval de rua, livre e espontânea, nasceu incipiente e hoje, precisa ser abraçado pela cidade. Os acertos para seu funcionamento são detalhes, todos eles podem ser resolvidos numa ampla mesa de negociação. Enfim, povo nas ruas é sempre salutar. Muitos abominam isso, medo mais que latente, mas é daí que nasce um Governo com olhos sensíveis, voltados para todos os segmentos de uma cidade. Falta isso nesse exato momento, mas ainda dá tempo de consertar. Basta querer...

3 comentários:

Mafuá do HPA disse...

COMENTÁRIOS VIA FACEBOOK:
João Winck - Sou teu fã. Teus comentários sempre ponderados. Volto a insistir: as questões de fundo são recorrentes. Envolvem a legalidade do consumo de álcool e outras drogas, do amor livre, da liberdade de manifestação e expressão e, sobretudo, da politização da revolta e da superação da miséria etc. e etc. e tal. Quem lucra com o proibido são sempre os mesmos: o crime organizado. Mas também lucram os produtores de alucinógenos lícitos e exploradores da libido de forma geral. Assuntos espinhosos para apenas 4 dias de transgressão "liberada". Os mais à direita de Deus pai querem a manutenção da moral e dos "bons" costumes sem, contudo, educar as crianças à liberdade responsável. Os mais à esquerda sonham com o "legalize já", com o "proibido proibir", sem propostas de políticas públicas de redução de danos. Os do centrão, como sempre, jogam a discussão para baixo do tapete e culpam o adversário de plantão. Idoneidade intelectual é sinônimo de civilidade. Idoneidade política significa revolução cultural profunda. Enquanto isso, nós outros ficamos a ver navios, nesse mar de desesperança e ares de fascismos de toda sorte, ou azar. Jogo duríssimo.

Marcele Tonelli https://www.jcnet.com.br/.../715433-parque-vitoria-regia...
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Parque Vitória Régia recebe 'concentração de Carnaval'
JCNET.COM.BR

Sivaldo Camargo - Henrique Perazzi de Aquino, eu não vi em nenhum momento a divulgação dos nomes dos responsáveis pelo Bloco, nem tão pouco eles se posicionarem sobre a proibição, posso estar enganado. Será que eles participaram da reunião em que foi decidida a proibição, se não participaram como falar em negociação em os organizadores estarem presentes.

Maria Cecilia Campos Sivaldo Camargo sua questão é super relevante. Será que alguém se reivindica como organizador do bloco? Em nome de quem? A quem representa?

Henrique Perazzi de Aquino Muito relevante e preocupante. Creio devam ser conhecidos, pois se existe alguém cobrando, esse alguém é identificável. Também gostaria de tomar conhecimento como se deram essas negociações. O pessoal da Cultura poderia nos informar,..

João Winck Segue o baile de máscaras, na base do salve-se quem for mais esperto.Te convido a fazer política real/oficial: só vamos apoiar candidatos que defendam abertamente a legalização dos bloquinhos em Bauru, como fizemos com a Parada da Diversidade. Topa?

Henrique Perazzi de Aquino - Topado...

Heloísa Alves Ferreira Leal 👏👏👏👏👏👏👏 parabéns aos jovens e ao bloco e parabéns por seu texto esclarecedor e propositivo. 🥰🥰🥰🥰🎵🎶🥳🥳🥳🥳🥳🥳🥳

João Winck Heloísa o Henrique sempre lúcido, sereno e lúdico. Sou fã desse maluco.

Anônimo disse...

Caro Henrique, a questão central neste debate é como e porque se dá o controle. Muitos se posicionaram como "cassandristas", e esperavam as tragédias acontecerem para então exporem suas idéias conservadoras. Em qual contexto histórico estão se dando estas manifestações? De um conservadorismo que espalha como uma praga por todos os tecidos sociais. Se as estruturas do poder e todas as instituições do Estado estão sustentadas por estas posições conservadoras, com certeza ocorrerão situações de beligerância. As políticas públicas expressam as posições de quem eventualmente está ocupando núcleos de poder e elas são propostas e aplicadas dependendo da correlação de forças que existe no mundo real. O João Winck cola como exemplo a questão da Parada da Diversidade, e como construímos a Lei que a legalizou. Foi um duro combate por dentro de uma estrutura conservadora, porém havia um elemento conjuntural de âmbito nacional wue nos permitiu este avanço, que foram ad lutas contra as opressões que ganhavam uma força exponencial. O carnaval e suas manifestações já sofreram e muito aqui em Bauru todo tipo de perseguição. Quando ocorriam as grandes festas de rua, as Escolas de Samba também sofriam repressão. Eu vivi e participei desta época. Veja o que ocorreu agora em relação as Escolas e Blocos. Para de fato se tentar construir uma politica pública wue reflita os interesses dos setores populares, da juventude etc, é necessário que haja disposição para o diálogo, o que não pide se dar sob ultimatos. Exemplos temos aos montes. É só observamos como ocorreu o renascimento dis blocos de rua em São Paulo, seu percurso nestes 9 anos. Soluções existem, e elas não passam por confinamentos institucionais. As cidades estão sitiadas pela politica de Garantia da Lei e da Ordem e isso é uma ideologia de poder e de controle.

Nenhuma novidade. Vou exemplificar Bauru. Nos anos 70 “movimento Black “, os bailes com música soul e as demonstrações da negritude, estiveram no rol de preocupações da ditadura militar que consideravam essas manifestações algo subversivo, contrário “à tradicional paz social e racial brasileira” e portanto contra o regime estabelecido.
Esta repressão se expressou também em Bauru. No cruzamento da Batista de Carvalho com a Virgílio Malta ater em frente às lojas americanas nós “negros nos reuníamos” aos sábados para ouvir música negra, dançar e receber e distribuir as circulares de ocorreriam os bailes em Bauru. A classe média da cidade dizia que aquele cruzamento era o “Planeta dos Macacos”, numa demonstração clara de preconceito estruturado no racismo estrutural.
O poder público tentava de todas as formas criminalizar nossos encontros aos sábados com objetivo de nos retirar das ruas. Servidores públicos iam ao local acompanhados pela policia e sabe o que exigiam: alvará da prefeitura, autorização da PM, nota fiscal de nossos rádios e gravadores, apreendiam nossas circulares e as vezes muitos de nós iam presos para averiguação. Nos chamávamos de transgressores. Queriam que ficássemos confinados em nossos bairros. Não capitulamos e todos os sábados tinha Black Soul.
Havia uma ascensão das lutas pelos direitos civis nos EUA que impactava aqui também, como por exemplo as greves de 78/79, a constituição do MN Movimento Negro Unificado em1978 que foi lançado publicamente sob forte controle dos aparatos militares, ou seja, a luta por liberdades exigia a transgressão. Não havia alvará oficial para isso. Esta liberdade não seria gestada no útero da ditadura civil-militar.

ROQUE FERREIRA

Mafuá do HPA disse...

Em Bauru sempre existiram conflitos entre seguir os trâmites impostos pela LSN, LGO e as necessidades de romper barreiras. Outro episódio marcante. 13 de Maio de 1982, o Núcleo do MNU e estudantes da Fundação Educacional de Bauru (hoje UNESP), lançavam a Revista Quilombo publicamente , e junto era apresentada uma performance teatral.
Quando Chegamos na Rua batista de Carvalho com a Rua 13 de Maio, fomos abordados por funcionários da Prefeitura dizendo que não podíamos nos apresentar er que deveríamos sair da rua. Não saímos e houve então um confronto com a PM, resistimos e conseguimos ficar. Por isso a esquina tem nome de “Esquina da Resistência”.

Era isso que ocorria na Famosa Batista de Carvalho. Pena não termos documentado . Fimes custavam caro. https://youtu.be/dKKQZ-d9bcg
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HOMENAGEM QUARTEIRÃO DO SOUL 2
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ROQUE FERREIRA