terça-feira, 24 de junho de 2025



DOIS LIVROS LIDOS QUASE AO MESMO TEMPO, UM DE GARCÍA MARQUEZ E OUTRO DE JORGE AMADO

Em questão de alguns dias, devoro dois livrinhos, o terceiro e o quarto neste mês. Queria poder e conseguir ler muito mais, mas obrigações outras me impedem, retardam a diminuição da pilha – que só aumenta -, que se forma aguardando o momento exato para serem devassadas.
Conto primeiro de “RELATO DE UM NÁUFRAGO”, do colombiano Gabriel García Marquez, editora Record RJ, 39º edição, 2014, 144 páginas. Anos 50, ditadura militar colombiana e um navio cargueiro de sua Marinha naufraga e oito tripulantes são transformados em heróis, todos supostamente mortos. Um deles, resiste numa balsa por onze dias e no país não se fala em outra coisa, até o mesmo querer contar sua história para um jovem repórter, no caso o escritor e daí a revelação que a carga era tráfico. Resultado: o primeiro exílio de Gabriel e seu relato, transformando-se num famoso livro, destes produzidos por um saudoso jornalismo que ia até as vias de fato em busca de revelar o que estava por detrás de um fato dito como consumado.
Frases recolhidas:
- “...aura serena do herói que teve a coragem de dinamitar a própria estátua. (...) Penso que um velho marinheiro, que tenha viajado por todo o mundo, pode saber em que mar se encontra pela maneira do barco balançar”.
- “Uma balsa não tem popa nem proa. E quadrada e, às vezes, navega de lado, gira sobre si mesma imperceptivelmente, e como não há pontos de referência, não se sabe se avança ou retrocede. O mar é igual por todos os lados”.
- “Para um esfomeado marinheiro solitário no mar, a presença das gaivotas é uma mensagem de esperança. Geralmente, um bando de gaivotas acompanha os navios, mas só até o segundo dia de navegação. Sete gaivotas sobre a balsa significam a proximidade da terra. (...) Não seja mau. A gaivota para o marinheiro é como ver terra. Não é digno de um marinheiro matar uma gaivota. (...) É fácil dizer que depois de cinco dias de fome se é capaz de comer qualquer coisa”.
- “Todo marinheiro sabe que, às vezes, um bando de gaivotas se perde no mar e voa sem direção vários dias, até encontrar e seguir um barco que lhes indique a direção do porto. (...) ...quando a gente se sente à beira da morte, o instinto de conservação se aguça. (...) Apesar de tudo, a fome é suportável quando não se tem esperanças de encontrar alimentos”.
- “É possível se passar um ano no mar, mas há um dia em que é impossível suportar uma hora mais. (...) Não fiz esforço nenhum para ser herói. Tudo o que fiz foi para me salvar. (...) A primeira sensação que se tem quando se começa a ser importante é a de que, durante todo e dia e toda a noite, em qualquer circunstância, as pessoas gostam que a gente lhes fale de si mesmo.
Depois, numa só sentada, numa noite de insônia, li “O Menino Grapiúna”, do baiano Jorge Amado, também da editora Record RJ, 1ª edição, 1982, capa dura, ilustrações de Floriano Teixeira, 138 páginas. Devo já ter lido, mas com o passar do tempo, nada como fazê-lo novamente. A primeira impressão é de tratar-se de um livro para jovens, mas não, seu linguajar é para quem já tem vivência de anos de estrada. Nele, Amado descreve seus anos de juventude, quando se descobriu devorador de boa literatura, fez as escolhas que o arrebataram por um vida inteira, conta algo mais de alguns parentes e de lugares por onde esteve, como um seminário, do qual fugiu e as várias zonas do meretrício, onde praticamente se formou e buscou histórias, todas retratadas em seus muitos livros. Contagiante escrita, para mim, arrebatadora. As frases colhidas retratam muito bem como ele soube tocar sua vida e de que lado esteve ao longo dela:
- “A luta pela posse das matas de ninguém, se alastrava nas tocaias, nas trincas políticas, nos encontros de jagunços no sul do Estado da Bahia; negociavam-se animais, armas e a vida humana. (...) ...meu pai abandonara a cidade sergipana de Estância, civilizada e decadente, para a aventura do desbravamento do sul da Bahia, para implantar, com tantos outros participantes da saga desmedida, a civilização do cacau, forjar a nação grapiúna”.
- “A febre contentava-se em matar uns quantos, a peste enlutava as cidades e os campos, não havia remédio que valesse. (...) A bexiga e os bexigosos povoam meus livros, vão comigo vida afora. (...) Aventureiros vindos de todas as partes, mascates levantinos descansando as malas de mercadorias para instalar lojas e armazéns, um missionário de acento alemão tentando impor os mandamentos da lei de Deus a uma gente sem lei e sem religião, desregrada e indômita, infensa a qualquer autoridade, do céu ou da terra”.
- “A vida humana continuava a valer pouco, moeda com que se pagava um pedaço de terra, um sorriso de mulher, uma parada de pôquer. (...) ...é difícil estabelecer as medidas do tempo da primeira infância. (...) A morte, companheira de toda minha infância. (...) ...primeira infância de terra violentada, de homens em armas, num mundo primitivo de epidemias, pestes, serpentes, sangues e cruzes nos caminhos e, ao mesmo tempo, de mar e brisa, de praia e canções, meninas de doce enlevo”.
- “Na literatura e na vida, sinto-me cada vez mais distante dos líderes e dos heróis, mas perto daqueles que todos os regimes e todas as sociedades desprezam, repelem e condenam. (...) Em qualquer posição que assumam, em qualquer sistema de governo ou tipo de sociedade, o líder e o herói exigirão obediência e culto. Não podem suportar a liberdade, a invenção e o sonho, têm horror ao indivíduo, colocam-se acima do povo, o mundo que constroem é feio e triste. (...) O humanismo nasce daqueles que não possuem carisma e não detêm qualquer parcela de poder”.
- “Amigos dos vagabundos, dos mestres de saveiro, dos feirantes, dos capoeiristas, do povo dos mercados e dos candomblés. Mais do que isso, fui um deles. (...) O luxo cresceu com o poder e a vaidade dos coronéis, cada qual querendo exibir riqueza maior. (...) A heresia é sempre ativa e construtora, abre novos caminhos. O ortodoxia envelhece e apodrece ideias e homens. A longa e dura experiência ensinou-me, no passar dos anos, a importância de pensar pela própria cabeça. Para pensar e agir por minha cabeça, pago um preço muito alto, alvo que sou de patrulhamento de todas as ideologias, de todos os radicalismos ortodoxos”.
- “Sonho com uma revolução sem ideologia, onde o destino do ser humano, seu direito a comer, a trabalhar, a amar, a viver a vida plenamente não esteja condicionado ao conceito expresso e imposto por uma ideologia seja ela qual for. Um sonho absurdo? Não possuímos direito maior e inalienável do que o direito ao sonho. O único que nenhum ditador pode reduzir ou exterminar”.
Com estes dizeres de Jorge Amado, muitos deles, tento seguir tocando minha vida, ao sabor do vento, livre, leve e solto. Seu livro me tocou profundamente.

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