segunda-feira, 29 de março de 2010

BEIRA DE ESTRADA (02)

UMA LIVRARIA NA BOLÉIA - Meu novo texto edição Revista do Caminhoneiro, março de 2010 (Tiragem de 100.000 exemplares)

O baiano José eu conheci num restaurante, num posto, beira de estrada, estado do Rio, lá pelos lados da região dos Lagos, pouco depois de Rio das Ostras. Já se vão uns seis anos e dele gostaria de ter notícias. Foi inusitado o encontro, estava com muita fome, vinha do Rio sem qualquer parada e ali aportei devido a uma placa, com dizeres mais ou menos assim: “Comida Caseira – Preço Camarada - Confiram”.


Foi o que fiz. Adentro o cheiroso estabelecimento e dou de cara com uma cena a me encher os olhos de contentamento. Esqueci até da fome, a me roer as entranhas. Numa mesa, já quase no final de sua refeição, o tal baiano, rodeado de livros, espalhados em cima de sua mesa. Isso mesmo, comia e tinha ao seu lado, como companheiros na empreitada, uns vinte livros, alguns empilhados e outros abertos. Não havia como não notar o que ali se passava, pois ele dava garfadas em sua comida e virava páginas de livros, quase que instantaneamente. Lia com uma régua a lhe marcar a linha da leitura. Uma mão no garfo e outra na régua, os olhos em ambas as coisas.


Chamava a atenção de muitos. Fiz meu prato e escolhi sentar ao seu lado. De imediato percebendo minha inquietação, tanto que nem bem esperou estar sentado para perguntar:

- Gosta de ler?


Foi o bastante para iniciarmos uma animada confabulação. Eu tinha pressa, ele mais ainda, pois depois vim a saber, caminhoneiro, sua carga ainda estava sob o bruto. Seu depoimento foi algo marcante, nunca antes visto nas minhas andanças. Já havia presenciado caminhoneiros que gostavam de andar com um livrinho enfiado debaixo dos braços, mas esse passou dos limites, pela quantidade e exposição de suas preferências.

- Sou baiano e peguei gosto pela leitura desde meus tempos de moleque. Meu pai trabalhava na Prefeitura e mesmo não sabendo ler trazia livros para casa. Pedia conselhos para a moça da biblioteca e ela indicava os clássicos. Li todos ao longo de minha vida. Não parei mais. Virei caminhoneiro e não conseguindo viajar sem ter livros na boléia, sempre trouxe alguns na mala. As viagens tornaram-se mais longas e tinha sempre que trazer cada vez mais livros. Daí tive a idéia de trazer comigo muitos dos que já tinha lido e ir trocando. No começo foi difícil, tinha que parar nas cidades e descobrir quem poderia ir trocando comigo, mas hoje, muitos já me conhecem e troco por tudo quanto é lugar. Você nem imagina como tem caminhoneiro que gosta de uma boa leitura?


Não parou mais de falar. Foi pouco menos de uma hora de pouca argumentação, pois, sempre à procura de novos interlocutores, descobrindo-me interessado, fiquei sabendo de toda sua história, nos mínimos detalhes. Muito rica e sempre recheada de livros, muitos livros. Se hoje me perguntarem o que ele transportava não sei, mas alguns dos títulos ainda me recordo. Tinha, entre outros, um “Tocaia Grande”, do Jorge Amado, “Roleta Chilena”, do Alfredo Sirkis, “Cartas da Mãe”, do Henfil e “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, do Lima Barreto. Desse, me contou a história toda, ali em poucos minutos. “Me identifico com o funcionário público, o Policarpo, pois tenho muito dele dentro de mim, sou um brigador, como ele”, me disse.


Na saída ajudei-o a levar os livros até seu caminhão e como sempre carrego também alguns, efetuamos nossas trocas. Fico com um dele, o “Quem matou Palomino Molero?”, do Mario Vargas Llosa por um que não queria me desfazer, mas foi inevitável, o “Um diário do Ano da Peste”, do Daniel Defoe. Cheguei a pedir uma dedicatória, mas fui desaconselhado: “Prefiro não, pois dificulta mais as trocas. Se cada um for escrever nos livros, em pouco tempo não sobrará mais espaço vazio”. Tentei argumentar, mas o homem foi irredutível.

Mal deu tempo de me despedir, pois outro vinha até ele com um livro nas mãos. Anotei seu endereço, um telefone residencial, que se perdeu ao longo do tempo. Nunca mais o vi, nem dele tive notícia. Continuo com meu hábito de nunca viajar desacompanhado, sempre tendo livros como companhia e dessa forma, nunca me senti só. Pouco voltei para os lados onde o encontrei, mas dele trago boas recordações e toda vez que vejo algum caminhoneiro com um livro debaixo do braço, bate aquela saudade do seu José, um baiano que fez disso sua maior distração e alegria na vida. Por onde andará o livreiro das estradas?


HPA, 49 anos, professor de História, caixeiro-viajante e contador de histórias (e de estórias).

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