domingo, 13 de maio de 2018

AMIGOS DO PEITO (146)


MÃE E SOGRA - DIA DAS MÃES

1.) HISTORINHAS ENVOLVENDO MINHA FINADA MÃE

Acordo com vontade de escrevinhar umas mal traçadas sobre minha mãe, Eni Perazzi de Aquino.

Mãe é a única pessoa a desferir uns impropérios na cara da gente e deixamos por isso mesmo. A minha tinha o péssimo hábito de, me olhando bem na minha cara, nos anos que antecederam ao seu falecimento, quando voltei a morar em sua casa e me dizer assim na lata: “Você tá véio”. E lascava um acintoso e também afetuoso “Véio”. Eu hoje, passado quase uma década de seu falecimento, me olho no espelho e sou obrigado a concordar com seu vaticínio feito de forma antecipada. Virei um velho, ranzinza, chato e incomodado. Ela me enxergava melhor que tudo o mais, além do tempo.

Li outro dia de algum amigo versando sobre a própria mãe, o fato dela ser preconceituosa e um tanto conservadora. A minha era, confesso, e muito. Tentei de tudo para dissuadi-la deste horrendo hábito. Ela quando não ia com a cara do sujeito, seja político, amigo, ator de novela, qualquer um, podia ser o melhor dos caras, mas se não passasse pelo seu crivo sensorial, estava danado para ela. Descia a lenha em muita gente pelo qual tinha a maior estima e consideração, tudo por causa do que lhe vinha à cabeça como o certo. Seus pais não eram conservadores, meu pai também não, mesmo sendo indiferente com muito do que via ocorrendo no mundo, mas ela se sobressaia. De onde ela adquiriu aquele discurso conservador até hoje não sei mensurar direito, talvez do ambiente de trabalho ou mesmo da igreja, algo que ela com o tempo soube afastar de seus hábitos.

Dona Eni tinha por hábito não deixar passar o momento. Diante de alguém, se ela não tivesse afeto, não demonstrava o contrário, não sabia fingir. Tendo algo para dizer a alguém, não mandava recado. Pavio curto, dizia na lata e não se importando nem um pouco com a quantidade de medalhas que a pessoa ostentava no peito. Tascava e deixava a todos numa saia justa. Depois ríamos juntos da situação, mas na hora era complicado, não sabia onde enfiar a cara. Com o tempo larguei mão de pegar em seu pé por causa disso e passei a curtir o feito, enfim, para com muitos ela fez o que gostaria de ter feito, mas me faltava a coragem. Hoje, reconheço, ela o fez até por mim. Muito bela. Em tantos momentos gostaria tanto de ter o discernimento de fazer o mesmo, mas somos contidos demais da conta.

E tinha um coração bom demais. Distribuía comida para todos que passavam pedindo diante de seu portão. Criou romaria de mendigos à sua porta. Certa vez parou a rádio patrulha no seu portão e dela sai um policial não tão amistoso, reclamando ser ela a culpada dos mendigos fazerem ponto no quarteirão e pedindo para parar com o hábito. Ela não se faz de rogada, muito menos intimidada, enfrentando o engalanado se dizendo autoridade fardada e lhe disse, estava presente, vi a cena: “Se tu vê o sujeito passando fome e não faz nada, fica indiferente, eu não consigo. Dou comida e pronto e não me enche o saco”. E deu-lhe as costas. É minha heroína, para mim mais que Joana D’Arc e Anita Garibaldi.

Já aposentada fazia artesanato para distrair e juntar alguns a mais, salário sempre achatado de professora. O pai não possuía muito jeito para leva-la todo domingo montar barraca na feira no centro. Eu na época morava no distante Gasparini e saia lá de onde judas perdeu as botas, cedo, madrugando, juntava suas coisas e de dona Rose, eterna companheira nessas coisas de feira no porta-malas do carro e montava tudo na quadra da rua Ezequiel Ramos. Ela vendia de tudo, desde panos de prato pintados, bordados, vidros decorados, algo que trago até hoje guardados como recordação, peças únicas, o que de melhor tenho na estante da sala. Depois do meio dia voltava para desmontar tudo e só então o almoço ia ser preparado. Passo lá naquele quarteirão e me bate imensa e inenarráveis lembranças de tempo que, infelizmente, não volta mais.

Foi, sem sombras de dúvidas, o pavio mais curto que tenho notícias nesses 57 de vida. Estourada, nervosa, sei ter vivido muito menos que meu pai, exatamente por não ter a paciência com tudo o mais à sua frente. Cardíaca, sofria em duplicidade. Ela se avermelhava de nervoso, beirando à explosão e isso, com certeza, reduziu sua vida. Bem diferente do pai, o qual confesso, segui muitos dos passos. Ela quando o pegava num canto falava horrores para o encurralado. Ele ouvia do seu jeito quieto, sem reagir, o que a enfurecia ainda mais. Despejava o caminhão de melancia sob seus costados e ele ali, impávido, sem se alterar. Logo depois de ouvir aquilo tudo, ao virar a esquina estava fazendo tudo em desacordo com o que ela achava correto. Era mesmo de enlouquecer.

Eu sinto uma bruta saudade dela, dessas comendo a gente por dentro. Minha mãe é dessas que, mesmo pensando muito diferente desse macanudo, tenho por ela maior respeito, consideração e muita saudade. Tenho também histórias inenarráveis de minha atual sogra (sempre tive sorte com elas, as duas primeiras, amo de paixão Luzia e Antonia, ainda muito vivas), dona Darcy Soliva da Costa, falecida recentemente e se o dia de hoje não me for pesado, até o final da tarde publico historinhas com ela. Exemplos de vida.

2.) DARCY SOLIVA DA COSTA, A SOGRA E MÃE, ASSIM COMO EU, AMANTE DAS RUAS
Uma das conversas mais profícuas que mantive com minha sogra foi a sobre a minha ideologia e a sua religião. Ela sempre foi Batista, mas nas tantas vezes que esteve em Bauru não se acertou de frequentar nenhuma das igrejas daqui. Achava as daqui muito conservadoras e ligadas à linha do pensamento único. Preferia assistir o culto das suas pela internet do que ouvir os pastores de Bauru. No hospital, no mês que passei com ela antes de falecer, fazíamos comparações belíssimas entre a sua fé e o meu socialismo. “Ambos, a fé cristã e o socialismo são muito próximos, querem o bem do semelhante, andam praticamente juntos”, me dizia. E completou para meu deleite: “Os cristãos de hoje estão distantes dos reais ensinamentos de Cristo, pois estão mais preocupados com dinheiro e cada vez menos com o que de fato ele nos ensinou. É irreconciliável isso de amealhar dinheiro e ser cristão, não existe liga possível”. E fazia tudo lendo passagens da Bíblia, onde me afirmava ser cada vez mais difícil as pessoas desapegadas.

Dona Darcy foi fiscal de renda da cidade do Rio de Janeiro, mas antes de chegar ao cargo, camelou e muito, tendo começado como professora em Bangu, de onde viajava diariamente da Tijuca para lá, ida e volta, em algo em torno de mais de duas horas para ir e outro tanto para voltar. Contava sem se alardear, uma passagem das mais edificantes quando após o golpe de 64, alguns anos depois, ajudou o irmão do melhor amigo do seu Zé Pereira, ex-marido e pai de Ana Bia, minha esposa e fugir da perseguição dos militares, passando com ele abaixado no banco de detrás de seu fusca. Esse passou semanas escondido em sua casa de onde tempo depois partiu para o exterior. Ela foi das mais corajosas nesse período, não se omitindo em demonstrar estar do lado certo e sempre ajudando o próximo.

Eu e Ana em todas as idas para Sampa, onde morou por décadas com o Moacyr, e a resgatávamos para passeios homéricos por lugares pelos quais gostava imensamente de ir, mas frequentava pouco, primeiro pela perda gradativa da mobilidade, impossibilitando-a de ir sozinha aos lugares por onde tinha verdadeira adoração, desde museus, exposições, cinema, shows e eventos de arte. Era demais de lindo ver a expressão de felicidade estampada em seus olhos quando nesses lugares e o detalhamento de seu olhar clínico para exposições, na qual dedicava muito tempo, minuciosa nos olhares e depois nos comentários. Inesquecível as viagens país afora e ao exterior, quando alugávamos uma cadeira de rodas e com ela estripulias mil, andanças variadas que ela não faria a pé, mas empurrada por mim, fomos para lugares variados e múltiplos. E nos divertimos muito sendo privilegiados no acesso a museus sem necessidade de enfrentar filas.

Cozinhava como poucos e logo que me conheceu me arrebatou de vez com dois pratos inesquecíveis. Ainda no Rio, fomos para uma feira no Andaraí procurar língua de boi, que ela fez com um esmero desses de babar na fronha. Deixou a mesma limpa, lisinha, sem nenhuma pelanca e comi uma iguaria como nunca mais terei o prazer de provar. De outra feita lhe disse gostar muito de um pão meladinho que comprava numa padaria no Largo da Lapa e ela, sem o saber me fez em sua casa paulistana uma rabanada dessas de matar diabético. Só não morri, pois fui contido por ela e a filha, impedido de comer tudo. Foi de lamber os beiços. Nos últimos tempos Ana me dizia ter ela começado a se esquecer das receitas, sua memória já fraquejava, mas com a ajuda de seus muitos livros de receitas, sempre tinha novidades nas visitas, lá em Sampa ou cá em Bauru.

Algo memorável era a montagem de sua mesa diária para o café da manhã. No corre-corre do dia-a-dia não se tem mais tempo para montar uma mesa com tudo o que lhe é de direito. Era inconcebível para ela tomar café sem aquelas frutas todas picadinhas numa salada de frutas, a geladeira quase toda posta em cima da mesa com frios, iogurtes, geleias, bolos e guloseimas mil, além do pão esquentado na torradeira. Ela não tomava leite, mas nunca deixou de esquentar a parte que me cabia nas manhãs. Diante de tudo o que me proporcionava, sempre ficava encarregado de lavar os utensílios, pois se nada sabia fazer de gostoso, ao menos lavar eu sabia. Não me lembro de ter tomado um mísero café em sua café sem os rapapés de praxe, mesa posta e com colher, faca e garfo ao lado da xícara e com dois pratinhos, o da xícara e o para o pão e frios.

Luxo mesmo era sua coleção de CDs, livros e afins. Colecionava tudo o que saia em fascículos nas revistas e jornais. Assistia regularmente seus filmes cult, comprado sempre no mesmo jornaleiro e tinha um lugar só dela no canto da sala, onde passava horas diárias em leituras variadas. Não lia só algo sobre sua religião, onde era especialista, mas de tudo um pouco e em todas as vindas para Bauru, fazia questão de passar comigo na banca do Carioca, na Feira do Rolo onde sempre trazia (e ganhava) muitos livros. As conversas sobre essas leituras eram de um sabor inigualável. No centro da sala, muito mais importante que a TV estava o aparelho de som, onde diariamente escolhia algum CD para ouvir. Refinada e com apurado gosto, tinha tudo dos clássicos, como tudo de jazz, samba e MPB. Uma de suas preferidas era Selma Reis e um CD cantando só músicas cubanas, que por sorte, me deu de presente e o guardo como relíquia, assim como alguns dos seus livros. Devorava tudo o que via pela frente e nas visitas adorava conversar sobre o que havia lido, algo impossível fazer com os paulistanos, onde ninguém nutria os mesmos gostos.

Mantinha um título do América Futebol Clube, clube carioca da Tijuca, onde suas filhas brincaram na infância e mesmo sem mais ninguém frequentar o lugar, por pura paixão e dó em não ajudar o Ameriquinha, continuava a pagar regularmente suas mensalidades. Era uma conselheira para tudo quanto é tipo de necessidade. Ouvia tudo com uma calma difícil de encontrar hoje em dia e sabia orientar com aquela precisão só conseguida após muitos anos de reconhecida sapiência. Muitos como a amiga Leda Cantuária fizeram questão de repetir uma vida inteira algo sobre a forma como sabia se relacionar: “Devo muito do que sou a ela. Não tenho como pagar tudo o que fez por mim”. Fez por muitos, a vida inteira. Uma história das mais saborosas dentre todas as que ouvi dela é a do Carlão, um antigo colega de trabalho, amigo para uma vida inteira. Foram juntos certa feita para Cuba, numa viagem onde ela acobertava as aventuras do amigo com as cubanas. Relembrar essas histórias, ela muito detalhista, daria um livro. Eu mesmo tenho muitas, como duas noites passadas em Madri, eu e ela, Ana em Barcelona, quando perambulamos por tudo, dormindo num hotel bem no meio da zona de prostituição e ela me pedia para que a levasse com a cadeira circular no meio da movimentação ao redor. Não queria ficar detida num quarto de hotel, preferia, como eu, estar nas ruas e ver as coisas acontecendo. Tínhamos muito em comum. A amo como a minha própria mãe, algo que sei, ela preencheu o vácuo com a perda da minha.

Escreveria dela muito mais, pois ela só me propiciou bons momentos na vida. Sou mais que apaixonado pela dona Darcy.

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