segunda-feira, 12 de novembro de 2007

MEMÓRIA ORAL (11)

UM ASSENTAMENTO MAIS DO QUE LEGAL: LEGALIZADO

O acampamento dos sem-terra Associação Terra Nossa mudou de denominação após cinco anos instalado no Horto Florestal, entre as cidades de Bauru e Pederneiras SP, passando a chamar-se a partir de agora, pomposamente de assentamento dos com-terra. É que na última sexta-feira, 09/11, o superintendente regional do Incra SP, Raimundo Pires da Silva, o popular Bom Bril e o deputado federal Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho aportaram por lá e numa emocionante solenidade transmitiram a boa nova para todos os seus moradores. Num clima de festa, tudo foi celebrado antes de um almoço no barracão de eventos do assentamento, marcado para ter início às 14h, mas começando somente às 15h, logo após a chegada do deputado.

A comida foi sendo feita em vários locais diferentes e sendo transportada para o barracão no centro do assentamento. Desde a manhã, grupos ficaram encarregados de alguma missão, para nada sair errado. Tão logo a comida chegou, o cheiro de carne assada se espalhou pelo local, sendo o carro-chefe um cabrito, que colocado ao fundo da mesa de abertura do evento, fez com que se agilizasse o falatório. Isso mesmo, a solenidade aconteceu antes do almoço, montada numa grande mesa, com 15 convidados. Todos tiveram direito à palavra, todas rápidas, desde representantes das prefeituras das duas cidades, do INCRA e demais entidades que estiveram ao lado da luta da comunidade ao longo do tempo. Um emocionado depoimento veio do sindicalista Pardal, que arrematou: "A reforma agrária não sai no Brasil, mas sai aqui em Bauru."

As falas principais ficaram para os dois ilustres convidados e quem falou primeiro foi Raimundo, que anunciou a boa nova, de forma contundente: "Podem se considerar assentados, todos aqui tem agora os seus direitos garantidos, mas não podem se esquecer também dos deveres. Não podem arrendar essa terra. O INCRA agora tem cara aqui, com dois funcionários atuando diretamente com vocês". Mais tarde, discorre melhor sobre isso, enfatizando que "estão sendo liberados dois fomentos de crédito de R$2,5 mil para sementes e equipamentos, além de R$ 7 mil para que cada um construa sua casa de alvenaria."Quando o mestre de cerimônias, Celso da Costa, líder do assentamento anuncia Vicentinho, o faz chamando-o de "padrinho de todos nós", recebendo uma aclamação geral. O deputado fica em pé para falar e lembra as outras vezes em que lá esteve, o sofrimento e a luta que foi chegarem inteiros até aquele momento: "A conquista dessa terra é fruto da luta de vocês. Acompanhei o sofrimento de todos e no meio disso tudo vi gente produzindo. Tudo isso era claro sinal de vida. Eu posso ter a língua presa, mas não o rabo. Ou melhor, rabo preso só com vocês." Diz também, que está solicitando duas emendas para o Orçamento de 2008, a primeira de R$ 350 mil, para equipar o assentamento, via Prefeitura de Pederneiras e outra de R$ 200 mil, para restaurar estações ferroviárias de Bauru. Ao final, evoca todos para rezarem um Pai-nosso de mãos dadas, "a verdadeira oração dos oprimidos", diz ele.

Quando o almoço é anunciado, a alegria já tomava conta de todos e as pessoas foram se abraçando umas as outras, num sinal de que tudo aquilo tinha valido muito a pena. A luta deles pela posse definitiva da terra tinha sido vitoriosa e tudo estava sendo selado naquele almoço coletivo, onde cada um havia dado o seu quinhão. As pessoas que se apertavam dentro do acanhado salão, com paredes de bambus enfileirados, foram para o ar livre estravazar o contentamento. Rodas alegres se formavam, tendo, é claro, como assunto principal, o que acabara de ser anunciado.


Dentre os mais comunicativos está seu Toninho da Ave Maria, 62 anos, mineiro de Botelho e que recebeu esse apelido por rezar diariamente o terço, desde o falecimento de seu pai, quando tinha 9 anos de idade. Grande parte de sua vida foi metido em lutas sindicais e contagia quem dele se aproxima, pela fala amineirada e alegre. Quando lhe pergunto se era do sindicato rural, faz questão de me corrigir: "Nada disso. Sempre fui do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Olha como essa palavra soa bonito, é linda. Trabalhador". Tenho que concordar e prossigo a prosa, observada atentamente pelo professor Isaías Daibem, que pela primeira vez por lá aportou e diz do que ouve: "Seu Toninho é valente. Reza com toda fé do mundo e depois não perdoa, vai à luta, sem dó e piedade."

E é assim mesmo, pois nos disse que num dos enfrentamentos ocorridos ali com a Polícia Militar, parou diante de um dos que comandavam a operação, pedindo sua caneta emprestada e lhe disse: "Tá vendo isso aqui. Sózinha eu quebro fácil. Mas juntas, umas 20, 30, não quebra de jeito nenhum. Igual é com a gente." E quebrou a caneta, para espanto de todos. Hoje ri daquilo tudo, mas passou mal bocados, não tanto pelo físico mirrado, mas pela resistência inquebrantável, tanto que, um outro apelido, que tinha nos outros acampamentos que circulou era Marimbondo, tal o jeito de picar doido. Esse é daqueles que, fazem qualquer um esquecer de tudo ao seu lado, tal o poder de convencimento que possui, mas a tarde não é só dele e continuo circulando entre os grupos.

É de pessoas assim que são constrúidas as histórias de vida desse assentamento, em algo que Vicentinho captou muito bem, tanto que já havia citado em sua fala inicial, como os tais sinais de vida. Por falar nele, lá estão, ele, Raimundo e Leonan, também do INCRA almoçando uma macarronada e o cabrito. Num certo momento fez questão de chamar a cozinheira para elogiar o tempero da buchada: "Você é nordestina, minha filha?". Ela, rápida e fagueira lhe diz: "Sou não, Vicente. Sou é gaúcha. Aprendi com meu marido, que é e hoje faço melhor que ele." Circulando vejo sotaques das mais diferentes regiões do país, numa diversidade encontrada em todos os acampamentos espalhados por esse país. No fim da comilança, Vicentinho se junta ao violeiro Osvaldo Fatelli da Silva, 62 anos, coloca um chapéu na cabeça e entende mal o título da canção que entoariam juntos: "Essa eu conheço, venham aqui, que vamos cantar o Cio da Terra." Seu Osvaldo se vê obrigado a corrigi-lo: "É o Hino da Terra, seu Vicentinho". A roda se forma e a cantoria sai, principalmente nas frases mais fáceis de serem decoradas.

Se a alegria fez parte do cenário desse dia, ela não esteve presente em todos os momentos nesses cinco anos de ocupação. O local possui 2.520 alqueires, correspondendo a aproximadamente uns 50 Mary Dotas, o maior núcleo habitacional da cidade, distante uns 10 km dali. Hoje, tudo foi dividido em duas partes, a primeira com 150 assentados e a segunda com 3 núcleos, totalizando uns 250 assentados. Quem conta os detalhes da caminhada é o Celso da Costa, 27 anos, criador de porcos e estudante do 2º ano de Direito: "Muitos confundem a gente com o MST. Somos independentes, mas não nos vangloriamos disso. Somos parte de um grande movimento e a CUT está ao nosso lado, bem próximo. Tivemos momentos de muita tensão por aqui e numa delas os posseiros foram me ameaçar na faculdade. Para não comprometer a segurança no ônibus escolar, que a Prefeitura disponibiliza, tranquei a matrícula e fiquei mais alerta." Diz também que, hoje tudo está mais calmo e talvez volte a estudar no ano que vem, uma das prioridades da qual não abre mão.
As histórias de repetem e cada um possui uma mais emocionante. Quem agora se aproxima é uma alegre senhora, negra e com um chamativa calça vermelha. Vendo a máquina fotográfica em minhas mãos, pede para ser fotografada e quando pergunto seu nome, ela simplesmente diz: "Sou a Capeta da Parte II. Antes era a da I. Aqui já enfrentamos de tudo e não arredamos pé. O importante é não ter medo de cara feia." Esse fazer e acontecer está sob o olhar vigilante do atento marido, que não sai de perto um só instante. Quando os primeiros pingos ameaçam cair, todos já estão com as barrigas devidamente forradas e é nesse momento que, Celso aproveita para reunir os ilustres convidados, levando-os a um passeio pelo local dos agora proprietários de 5 alqueires de terra cada. O tempo lá em cima ameaça fechar e nada é mais propício para a dispersão.

Henrique Perazzi de Aquino, escrito em 10/11/2007

3 comentários:

Anônimo disse...

Belíssimo relato Henrique. Deu até vontade de ter presenciado este momento, já que presenciamos todos os momentos difíceis do Acampamento Terra Nossa. Me recordo que num dos momentos mais difíceis, o Coordenador da Subsede quase foi atingido por uma bala de "três-oitão". Mas o importante é que a história dessas famílias está se modificando. Passado o desafio que é reivindicar um pedaço de terra, se inicia um outro desafio, muito maior: O DA ORGANIZAÇÃO PELO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DO ASSENTAMENTO.

Dá um pulo na CUT para pegar umas revistas novas.

Um forte abraço,

João

Anônimo disse...

Estimado Henrique, estou contagiado com a emoção desta linda crônica.

Parabéns pela generosidade contida na mensagem.

Fraternalmente,
Vicentinho.

Enviado do meu BlackBerry®
Visite meu Site !
www.vicentinho.com

Anônimo disse...

CAro Henrique ,

Ficamos muito orgulhosos pelo que vc relatou sobre a nossa conquista,momento que não iremos esquecer nunca mais,a felicidade não poderia ser maior, ainda tivemos o previlegio de te-lo conosco neste momento tão nobre e enriquecedor para nos agricultores familiares do assentamento Terra Nossa

um forte abraço !
CELSO COSTA