domingo, 26 de agosto de 2012

MEMÓRIA ORAL (126)

O PODER NÃO ESTÁ ONDE IMAGINAM – MURALISMO / O artista argentino Rep, que se vê como um resistente, exporá em Veneza – texto desse HPA publicado na seção Plural, revista semanal Carta Capital, edição 712 (29/08/2012), páginas 70 e 71.
Buenos Aires tem muito de São Paulo e São Paulo tem muito de Buenos Aires. Isso foi o que Miguel Rep, o famoso muralista argentino, 51 anos, fala sobre o conservadorismo de sua cidade natal, ao compará-la com a maior cidade brasileira. “Em toda metrópole há duas metades do bolo e na divisão, pendência sempre maior para o conservadorismo. Na Espanha, os partidários de Franco continuam representando parte significativa da população. Em Buenos Aires existem 40% de conservadores, 40% de progressistas e os outros 20% são voláteis, flutuando de acordo com a oferta eleitoral. São os fiéis da balança. Em Buenos Aires isso é mais evidente que no resto país, pois aqui existe uma direita classista, com medo do negro que vem das províncias. É um bastião branco, reacionário. A sorte é que não decidem sozinhos uma eleição presidencial, mas o que ocorre na Prefeitura comprova isso, MacrI, o prefeito é o típico populista”, diz.

Rep está mais do que inserido dentro dos 40% reservados aos progressistas. Autoditada, publica algo advindo do seu traço desde 1976. Expõe em mostras individuais e coletivas, em seu país e no exterior. Obteve prêmios nacionais e internacionais, tanto pelas tiras, charges, ilustrações, como pelo seu trabalho mais conhecido: o muralismo. Na Argentina, existem muitos a praticá-lo. “Aqui o muralismo está associado à prática política. Buenos Aires sempre foi muito politizada e isso uma de suas particularidades, uma apropriação, efetiva ação popular nos existentes espaços públicos. As ruas daqui sempre foram utilizadas para isso. Durante a ditadura, claro, houve restrição, mas hoje abundam por todo país. Isso não significa uma ação de qualidade, mas fazem. Pouca qualidade, pois poucos estudaram o tema. Diante disso, não sou considerado um muralista na acepção da palavra e sim, praticante, estudioso, resistente e persistente”, explica.

São três os seus mais importantes trabalhos em Buenos Aires. Um imenso painel no salão principal da Biblioteca Nacional, o Mural do Bicentenário conta a história do país dos primórdios até o momento atual. Parando diante dele observa-se cada detalhe da luta de transformação do país, desde tempos vindouro, até os panelaços, papel da igreja, dos oligarcas, chegando às Madres da Praça de Maio e no que propiciou os Kirchner. No pátio interno da Faculdade de Ciências Sociais, na avenida Córdoba, imenso mapa com o contorno de toda a América Latina, como se fosse um único país e um título mais do que explicativo: “Faltan ellos”. No terceiro, na Casa Garrahan, o mesmo ímpeto dos demais, a explicitude na demonstração das diferenças sociais existentes no país. Em todos Rep deixa claro ter um lado e mesmo sem ser radical, desses centrados somente no tema ideológico, não deixa dúvidas do lado escolhido. “Sou um humorista político, trabalho em cima da história real. Não tenho nenhum problema em mostrar minha ideologia. O que deixo claro, sem retoques é que o governo atual do meu país não está com o poder. O poder está do outro lado. Igual no Brasil, não?”, pergunta.

Isso ele demonstra diariamente numa tira na contracapa do diário Página 12, publicada desde sua fundação. “Ele é hoje o terceiro jornal do país em tiragem, mas o primeiro em influência. Não existe no país redação de rádio ou jornal que não esteja atenta ao que diz o Página 12. Durante muitíssimos anos o El Clárin e o La Nácion tinham benefícios diferenciados, impunham uma agenda a ser seguida e desde 2008 isso deixou de existir. Foi um corte, sentido por eles e a reação são os ataques a quem propiciou a perda de privilégios. Note que antes o poder era do Estado, hoje é da imprensa e exercida de forma cruel por esses grandes grupos. Tudo foi tocado de forma impune, foram se fortalecendo. Hoje se utilizam de todos os meios possíveis para se impor. Inventar notícias negativas é só o começo”, relata. Sua  explicação dos motivos de um grande embate nacional em pleno andamento é esclarecedor: “A Lei da Mídia, votada em 2008 e barrada até então pelo El Clárin entrará em vigor em 8 de dezembro e até lá tudo é um campo minado. A artilharia deles é feroz tentando reverter algo que lhes será prejudicial, principalmente aos negócios, a como executam seus negócios. Criam temas e ficam semanas martelando mentiras e falácias em primeira página, sempre contrárias ao governo”.

Ele não se cansa de falar da imprensa do seu país e do mundo. “A imprensa hoje, de uma forma geral emburreceu, ficaram muito ruins. Caiu a qualidade investigativa. Na Espanha, o jornal El País já não é nem sombra do que foi um dia. E na Argentina? É só o Página 12, mais nada. Os outros leio muito raramente, algumas vezes pego num café, mas cada vez mais me horrorizo”, diz. E diante desse cenário sombrio onde Rep consegue publicar? Ele mesmo explica: “Tenho a tira diária no Página 12, uma charge na única  semanal legível do país, a Vein ti Tres e por ter conquistado um espaço, viajo muito, mantenho muitas atividades. Virei um formador de opinião e mesmo sem divulgação na mídia, todas minhas incursões pelo interior lotam. Em Baía Blanca, local conservador, em algo minimamente divulgado só pela Secretaria de Cultura local e pela internet, o salão estava lotado. Isso se repete no país todo. Minhas palavras parecem repercutir e ela é minha força, além do traço. Pinto muito, tanto aqui, como fora. No final de agosto estarei em Veneza e sempre convidado”.

Na sua peregrinação pelos lugares onde é convidado, além do traço contundente, sempre a propiciar divagações e acalorados debates, fala muito e sabe que hoje, esperam isso dele. “As pessoas estão presas, reprimidas e aguardam ansiosas que alguém surja para acender o pavio. A história argentina é sempre contada com grandes golpes. Dou sempre a minha interpretação e não escondo isso das pessoas. Não temos que ficar esperando por iluminados, líderes de outra maneira, pois o capitalismo sempre foi e será cruel. Eles inventam palavras, como liberalismo, capitalismo selvagem, negócios predatórios, que no fundo é tudo a mesma coisa. O mural continua, diante disso, sendo um bom atrativo e pode ser visto de infinitas maneiras. É o que me instiga a continuar desenhando e provocando”.
Tudo que Rep desenha para a imprensa é produção do seu estúdio, montado num apartamento, adaptado a esse fim,  numa movimentada rua próxima do centro de Buenos Aires, a Amenales. Um refúgio, onde ele junta de tudo um pouco. Desde um boneco inflável com a fisionomia de Hugo Chávez a outro, de isopor, de um dos seus mais famosos personagens, Lukas. Livros estão espalhados por todos os cantos, esboços de prováveis desenhos, cartazes e pôsteres. Um ajuntamento aparentemente caótico, mas que de todo modo demonstra sua decisão por trabalhar sozinho e rapidamente. “Tudo o que vê aqui reunido faz parte de algo referente ao processo criativo no qual estou inserido. Um livro aberto, um recorte de jornal, um cartaz de algo que me despertou interesse, peças recebidas e até presentes. Trago para cá somente algo a me provocar e nada está totalmente perdido. Querendo e precisando, encontro tudo bem rápido”, explica. Rep não para e nesse momento negocia uma visita para setembro no interior paulista, outras para o interior do seu país e finaliza a arrumação de suas malas para viajar à Itália, onde a partir do dia 23 estará envolvido na criação de mais um mural, esse na Bienal de Arquitetura, em Veneza.

2 comentários:

Anônimo disse...

Esta todo bien, Henrique. Adelante. Gracias.
Miguel Rep

Anônimo disse...

Onde eu estava há meio século?
Há exatamente 50 anos eu estava neste lugar maravilhoso:

http://www.youtube.com/watch?v=XHthkSDQkeQ&feature=youtube_gdata_player

A igreja era enorme ("Era monstruosa", de tão grande, escrevi em algum lugar), o seminário era enorme... Tudo muito velho, antigo, antiquíssimo. Eu imaginava que era coisa lá do tempo da guerra - e era, começou a ser construído em 1943... Mas quando cheguei lá uma das alas ainda estava em construção, quase construída. Hoje parece tudo novo. Até a natureza parece nova. Parece, só parece. A natureza não tem idade. Era belíssima, deslumbrante. E o seu lado primitivo mais deslumbrava - as casas de madeira, construídas sobre estacas para fugir das enchentes anuais, as estradas de pedra e terra vermelha (de barro, na linguagem do lugar), as pessoas primitivas, como se pertencessem a um outro século (o XIX, talvez o XVIII), nas vestes, nos costumes, na linguagem - muitos nem falavam o português. Tive muitos colegas que foram aprender português quando entraram no seminário. Alguns falavam italiano (de Trento), outros alemão, outros ainda polonês. Era um outro mundo.

Foi em 1962 e 1963. Eu tinha 15 e 16 anos de idade. Que pena que a nossa memória seja tão pobre! Muito do que eu sou hoje começou a ser formado lá, naquele lugar fantástico. Até a minha vontade de ser poeta nasceu lá, quando eu li, entre tantos livros velhos da biblioteca do seminário, o livro Os Simples, de Guerra Junqueiro, e vi que gente simples, lugares simples, que as coisas que eu vivi e que eu conhecia podiam ser matéria de poesia. Já me disseram que isso não importa, eu seria poeta de qualquer maneira. Pode ser, mas foi assim que aconteceu. Foi entre aquelas paredes enormes que escrevi o meu primeiro poema, que era justamente sobre a figueira que havia em frente à casa da minha infância - havia e há, ainda está lá, mutilada por um raio, mas ainda grande e vigorosa.

Mas agora o assunto é Rio do Oeste, que eu conheci como uma cidadezinha de uma única rua de terra, à beira do rio Itajaí. A igreja lá em cima do morro, dominando tudo, como um castelo, talvez, como uma fortificação, ou como o santuário belíssimo que era, embora não branquinho como agora, brilhando, como se acabasse de ter sido construído. Atrás ficava o seminário, também grande, também pesado, mais pesado, escuro, medonho... A minha lembrança era de uma construção medonha, quase eu me esquecia da beleza estranha, absorvente, estranhamente pura, que o envolvia.

Veja: quando eu cheguei lá a cidade tinha apenas três anos de vida. Rio do Oeste foi elevada à categoria de cidade em 1959. Mas o seminário, como eu já disse, começou a ser construído em 1943. Tempos difíceis. Tempo da guerra. Lugar de gente muito pobre, que mal tinha o suficiente para se manter. Gente de coração grande, que dava até o que não tinha.

Eu o convido a viajar comigo. No tempo e no espaço. Na memória - que guarda tão pouco do que os olhos viram, do que o corpo e a alma viveu. Trago um pouco, ainda que muito pouco, desse lugar comigo. Viva a vida!

José Carlos Mendes Brandão