sexta-feira, 18 de junho de 2010

MEMÓRIA ORAL (87)

CAPELINHA, UM POSTO, UMA FESTA E A HISTÓRIA DE TIOZINHO
Capelinha é um posto de combustível dos mais famosos do interior paulista. Ali foram realizados famosas Festas do Caminhoneiro, que durante muitos anos levaram para o local, a estrada de Jaú à Brotas, 200 metros do trevo da entrada de Dois Córregos, milhares de pessoas, vindas dos mais diferentes lugares. O nome do posto veio de uma capela católica construída nos fundos, local de afluência de caminhoneiros e fiéis. O nome pegou e até hoje, poucos são os estradeiros que não conhecem algo sobre o local.

Histórias ocorridas durante as festas são muitas e algumas delas bem vivas na memória de Palmiro Guirro, 75 anos, seu proprietário. Numa delas, talvez a que faça questão de contar para todos é a de que Daniel, o cantor sertanejo, começou sua carreira, ainda menino e cantando sozinho ali numa das festas. Todos os grandes astros do mundo sertanejo por lá passaram. A idéia de fazer uma festa, iniciada em 1978, acabou vingando e virou um grande sucesso, mas acabou transformando-se num negócio colossal, assustando a todos. O local já não comportava mais as pessoas. “Tínhamos uma procissão de carros, que saia de Jaú e seguia até o posto, nuns 20 km de distância e numa das festas, me ligam de Jaú, que existia um congestionamento ainda do local da saída, ocupando toda a estrada. Não tínhamos mais segurança para as pessoas. Ficamos assustados”. Depois disso, a estrada foi duplicada e foi a pá de cal sobre o movimento no local.

Hoje, o posto não é nem sombra do que foi no passado. Comparando fotos do passado, com o grande movimento e tudo impecável, o atual situação nem parece real. “Vou mudar tudo por aqui. Quero transformar e modernizar o posto. Vou trazer muitas lojas para cá, numa espécie de mini-shopping. Aguardo resolver umas pendências aí para iniciar todo o processo”, conta Palmiro. Enquanto as pendências não são resolvidas, uma das histórias que mais rendem uma boa conversa é a de Tiozinho, um senhor negro, andarilho, que durante quase dez anos morou nas imediações do posto. Surgiu não se sabe de onde e foi ficando, chegando a morar em várias barracas, que foram sendo substituídas na lateral esquerda do posto, há pouco mais de cem metros de distância, junto a um canavial.

Tiozinho caiu nas graças de todos por ali, desde os funcionários, os caminhoneiros e principalmente, ao próprio Palmiro, determinando que lhe servissem diariamente duas refeições e um café da manhã. E assim Tiozinho foi ficando, sempre arredio de pouca conversa com estranhos e cheio de manias. Nunca aceitou dormir sob um teto de telhas. Quando chegou ficava debaixo de umas árvores no fundo do posto e depois montou uma pequena barraca no local citado. Caminhoneiros são solidários e ao verem a situação de penúria, sempre procuravam amenizá-la, com roupas, comidas e melhorias diversas, como a última, quando conseguiram uma lona impermeável e um local mais amplo. Tiozinho não alterou seu modo de vida, vivendo sempre sozinho. Saia de sua barraca pela manhã para o café, depois para o almoço e por fim, para a janta, acompanhando de um inseparável baldinho de plástico, comendo junto de um cachorro.

Maria José de Lima Pereira, ou simplesmente dona Zezé, 66 anos, trabalha há exatos 16 anos no local, num antigo hotel, hoje motel de alta rotatividade, localizado no lado direito do posto. É uma espécie de faz tudo, desde a limpeza dos quartos, como a lavagem das roupas e atendimento dos clientes. Chegou com a clientela em alta, ainda nos tempos das famosas festas e bem antes da duplicação da pista, vivenciando todo o processo de degradação do local. Dentre os atuaisfuncionários do posto foi a única que teve contato com Tiozinho, mais que isso, pois possui a única foto dele, tirada há muitos anos atrás, alguns antes dele falecer. “No começo ele tinha medo das pessoas, vivia escondido. Depois foi pegando confiança, fez uma pequena barraquinha e ela foi sendo melhorada com o passar dos anos. Odiava tomar banhos, mas os funcionários faziam isso regularmente, o que motivava alguns sumiços dele. Os caminhoneiros não paravam de trazer coisas para ele. Certo dia ganhou até uma sanfona. Vivia sempre com uns colares e pulseiras de ferro, que não sei como conseguia dobrar e retorcer. Foi uma tristeza quando ficamos sabendo de sua morte”, conta Zezé.

A história é complementada pela memória de Palmiro, que foi quem o ajudou durante os piores momentos, principalmente quando permaneceu quase mil dias internado. Recuperado, quiseram arrumar um local para morar, um asilo, mas não quis e acabou voltando ao posto. “Sua barraca estava ficando chique, cheio de melhorias e isso incomodou os pessoal da Centrovias (a concessionária da pista), que oficializou uma ação de despejo. Veio um oficial de justiça para executar a decisão judicial e vendo a situação não soube nem o que fazer. Ele só saiu daqui por causa de um tétano, provocado por excesso de bichos de pé. Levei-o de volta para o hospital e lá morreu. Até hoje, passado muitos anos de sua morte, sempre passam caminhoneiros por aqui e perguntam sobre o homem da barraca”, conta Palmiro.

Circulando pelo posto, o jovem frentista Leandro, não conheceu pessoalmente Tiozinho, mas conhece sua história e conta que seu pai, morador de um pequeno vilarejo ali perto, Guarapuã, vivenciou tanto as festas como uma proximidade com Tiozinho. Almoçando no posto, o caminhoneiro Soares, passa todas as semanas por ali e ao ver citado o nome de Tiozinho, abre um sorriso. “Que saudade tenho dele. Não tinha caminhoneiro que não ia bater papo com ele e trazia algo para colocar em sua barraca. Só não me lembro do seu nome”, diz. Pergunto a Palmiro e Zezé sobre nome de Tiozinho, afinal ele permaneceu por ali durante mais de dez anos. Ninguém nunca soube, ele nunca contou, nem de onde veio, nem contava histórias de sua procedência. Fugia do assunto nas tentativas de abordagens.
Tiozinho se foi já faz uns anos e esse pequeno resgate é de um antigo viajante, que passava sempre ali e via a barraca e seu morador. Perguntando sobre o fim da barraca, como muitos já o fizeram, relato aqui alguns detalhes da história de solidariedade para com um andarilho das estradas, um dos invisíveis deste mundo. Tiozinho foi um desses, muitos outros passaram por ali e hoje, Palmiro abriga outro hospede. Nos fundos do posto, numa parte não mais utilizada, mora outro andarilho, um senhor de muleta, que chegou e foi conquistando o pessoal do lugar. “Esse é de uma inteligência muito grande, conhece de tudo, fala de tudo. Guarda tudo em garrafas, desde arroz, feijão, açúcar e faz sua própria comida. Tem uma história difícil, pois chegou carregando um carrinho de mão com mais de 300 quilos. Subia a serra empurrando ao contrário, pois não conseguia puxar o peso. Esse eu consegui juntar os documentos e ele hoje recebe uma aposentadoria de um salário, que usa para comer. Pedi a ele para juntar outros na mesma situação, os com mais de 60 anos, para ver o que conseguimos junto à Previdência”, vai contando Palmiro, um senhor alegre, de bem com a vida, com uma expressão de dever cumprido. Palmiro, morador de Brotas, dono deste posto em Dois Córregos e outro em Jaú, uma cidade que lhe acolhe muito bem, onde foi presidente do XV de Jaú, o time da cidade, por quinze longos anos, todos recheados de histórias. Todas elas e as do andarilho de muletas precisariam de mais espaço e tempo. Quem sabe, qualquer dia desses.

4 comentários:

Anônimo disse...

Henrique

Admiro muito esse teu trabalho. Você como historiador é nota 1.000 mas em política vc é lamentável.

Anônimo disse...

Henrique, bom dia!
Vi a matéria sobre o Posto Capelinha e achei muito interessante. Gostaria de saber onde saiu publicada? Temos um jornal em Jaú e o assunto chamou atenção. Quem sabe possamos reproduzi-lo? É sua autoria?
Abç.

HAILTON MEDEIROS
Jornal Gente - Jaú SP

Mafuá do HPA disse...

RESPONDENDO AOS DOIS:

1. CARO ANÔNIMO: Que bom que goste dos meus textos, pelo menos... Quanto à política, deves estar ao lado de Serra e dos tucanos. Desses passo ao largo, pois sei o que fizeram com o país e o que estão loucos para voltar a fazer. Daí não nos entederemos mesmo...

2. CARO HAILTON - JORNAL GENTE DE JAÚ: Pode reproduzir a vontade, citando a fonte e me enviando um exemplar para guardar qui no mafuá.

Henrique - direto do mafuá

Elizani disse...

Parabêns pela historia, ja tive o prazer de escutar a mesma pelo proprio Palmiro, mas ficou muito boa mesma, um otimo trabalho. Ja a muito tempo nao ouvia sobre Jaú e essas historias encantadoras, tive o prazer de trabalhar com Palmiro em Mato Grosso em 2001.