quarta-feira, 5 de novembro de 2014

MEMÓRIA ORAL (169) -


O SOLITÁRIO DA TENDA URBANA – COMO VIVER ISOLADO DE TUDO E NO MEIO DE MOVIMENTADAS ARTÉRIAS URBANAS DE BAURU*
*O texto é meu e as seis primeiras fotos são do profissional do ramo, o chipriota ALEX MITA (Freelance Photojournalist, France Press e atualmente no Jornal da Cidade – Bauru SP), meu novo parceiro em algumas incursões pelo Lado B de Bauru e projeto de Memória Oral. Saio ganhando, pois as fotos do Alex são verdadeiras obras de arte. As três últimas são minhas e foram postadas para complementação, uma referente a cada parágrafo.

Alto da Avenida Moussa Tobias, quase chegando aos viadutos e acessos para a rodovia Marechal Rondon, quadrilátero divisório entre dois bairros, os parques PSG – São Geraldo e o PVA – Vista Alegre. Em um gramado entre duas movimentadas pistas automotivas, uma a adentrar e outra saindo de Bauru, bem debaixo da mais imponente e frondosa árvore no local, impossível não notar a presença de algo um tanto estranho e inusitado no local. Anexado à paisagem do lugar há alguns meses um vistoso barraco de lona. Lá um solitário morador, contrastando com tudo mais a sua volta. Isolada no meio do descampado, por si só ela chama a atenção. A curiosidade é ainda maior quando nos finais do dia, sol se pondo, o morador permanece, por horas ali, sentado num velho sofá branco, olhar meio que perdido e distantes de tudo o mais. Na repetição da mesma cena, do mesmo cenário, dia após dia, nada melhor do que ir conhecer quem é o solitário personagem.

Wilson José de Oliveira, 65 anos (08/03/1949), nascido e criado em Promissão, cidade conhecida nacionalmente por um dos pioneiros assentamentos de trabalhadores rurais sem-terra. Ele hoje é sozinho no mundo, um sem quase nada. “Não consegui é me aposentar, mesmo tendo trabalhado em variados lugares. Hoje não consigo mais emprego fixo e após anos e mais anos de labuta em firmas e lavoura, vivo com o que consigo. Uma mixaria.”, assim começa a contar algo sobre si. Seu trabalho hoje é como catador de rua. De tudo um pouco. Papel, plástico e garrafas, rodando a cidade com um velho carrinho de mão, conseguido a duras penas, esse o grande bem que possui no momento. Vai contando: “Além dele uma bicicleta achada no lixo, tudo o que tenho aqui foi a maioria achado no lixo e outro tanto, pouca coisa, ganhei. Meu ganho é pouco, muito pouco. Tenho que juntar bastante para dar um quilo. Cada 70 latinhas de alumínio dão um quilo. Na hora de vender sei que os caras me roubam no peso. A balança deles é enferrujada e o preço de cada quilo de lata são R$ 2 reais. Cada 100 quilos de papelão dá R$ 10 reais.”

Seu Wilson não tem vergonha nenhuma de sua situação. Fala de sua vida naturalmente, vai contando detalhes e mais detalhes de todas as dificuldades passadas ao longo dos anos. “Daqui até no depósito onde vendo o que cato na rua são uns 5 km para ir e outros 5 km para voltar, mais o que ando pela rua, catando as coisas. Depois chego aqui, descarrego as latinhas, amasso todas e separo para facilitar, bem mais fácil assim”. Vive sozinho, sem nenhum animal para lhe fazer companhia. “Não consigo nem me sustentar, como faria se tivesse um cachorro? Seria pior.” E, diz que nunca teve a companhia de uma mulher, nunca morou com nenhuma. A explicação é simples: “Gosto de mulher, mas não deu tempo. Tudo passou tão rápido em minha vida. Comprar uma mulher é muito caro. A mulher precisa de dinheiro e a gente também, mas como não tenho, não quero fazer essa loucura. Ela sem dinheiro não conseguiria viver ao meu lado”. Assim como nunca teve mulher, outra coisa que nunca teve foi morada certa, um lar para chamar de seu. Sua vida sempre foi assim ao léu, de lugar em lugar, no máximo morou em acampamentos de trabalho e lugares coletivos na roça.

Desde Promissão ganhou o “trecho”, como denomina, muito cedo. Foi mudando de lugar em lugar, primeiro com os pais e os irmãos. “Meu pai é mineiro. E, lá em Minas sei que ainda tenho tios, primos, mas nem sei mais onde e nem tenho motivos para ficar enchendo o saco deles. Estão tão apertados como eu. Posso até ir lá, nas cidades deles, mas e daí? Não vou poder ficar lá e nem tenho como chegar direito lá. Eu cansei disso tudo, sabia?”, me responde perguntando. Confirma que os irmãos também estão todos no “trecho”. Dois legítimos, outros dois só da parte do pai e nenhum deles sabem direito do seu paradeiro. Sabem que vive em Bauru, mas nunca estiveram por aqui e nem ele sabe ao certo onde cada um anda. Uma vaga idéia. Essa sua vida, esse seu passado, esse seu dia a dia, como vive, do que vive e quando senta na frente da barraca aos finais do dia é nisso tudo que pensa. “Penso também que já poderia estar aposentado e recebendo um bom dinheirinho, algo que me tirasse dessa situação”, confessa.

Sobre ter escolhido exatamente aquele lugar como ponto de parada, não tem uma definida explicação. “Parei para descansar. Estava muito cansado e quando me vi estava debaixo dessa arvore, sol quente e acabei ficando aqui uns dias, mais outros e estou até hoje. Já deve fazer uns três ou quatro meses; Te digo, vou ficar mais, porque para mim é melhor do que continuar correndo o trecho. Tudo o que tenho aqui eu achei no lixo ou me deram. Um cara da loja ali em frente (Casa Sol) me arrumou a lona, os plásticos eu mesmo arranjei na rua, as cordas para fazer a amarração, a mesinha dentro do barraco, o colchão, o sofá e até a bicicleta”, vai relatando. Vejo umas latas ao fundo e alguns tijolos empilhados e lhe pergunto se chega a cozinhar alguma coisa. “Sim, eu cozinho quanto tenho o que cozinhar. Quando me dão comida, faço no álcool. Compro um galãozinho pequeno, ponho na lata e assim faço a comida. Eu também peço, mas é mais difícil, pois trabalhando muito nem dá tempo. Trabalhar é uma coisa e pedir é outra. Não dá para fazer as duas coisas ao mesmo tempo e como prefiro trabalhar, peço pouco. Quando junto algum, vou lá no mercado ali no São Geraldo e trago o que mais preciso”.

Vivendo ali sozinho, pergunto se nunca teve problemas com outros moradores de rua, uns querendo lhe tomar o barraco, vir querer pegar algo seu: “Nunca tive problemas com os outros moradores de rua. Eu sou velho, muitos me respeitam. Lá de vez em quando aparece algum para me encher o saco. Mas sei como tratar com esses. Não dou muita bola e não deixo se folgarem comigo”. Seu barraco, tem o formato de uma tenda, feito assim para proteção natural da chuva e dificultar a entrada de água. Não possui porta, muito menos janela. A entrada é por um dos lados, levantando um plástico. Lá dentro, uma cama montada em cima de aglomerados de madeira e algo parecido com uma mesa noutro lado. Só isso. Nada mais. As roupas ele guarda numa caixa e numa bolsa tiracolo, juntos dos documentos, dessas que não se separa por nada desse mundo. “Quando some algo aqui eu nem ligo, pois logo consigo outro. O que não quero que roubem é meu carrinho e meus documentos. Quando junto muita caixa de papelão sempre some muita coisa“, diz.

Os documentos, todos tirados em segunda via e novos, foram recentemente conseguidos em Promissão, tudo de graça e através da Assistência Social daquela cidade. Guarda tudo com um cuidado extremado, dentro de um saco plástico azul e com um nó na ponta, para evitar que se molhem em caso de chuva. Ele senta no sofá, pega o saco dentro da bolsa, deixa fotografar tudo e ainda me explica um algo mais que nem imagina dele ter conhecimento. “Tá vendo aquela placa lá na frente. Dali para frente é que começa a fiscalização da cidade, aqui onde estou pertence ao DER (Departamento de Estradas e Rodagem) e já vieram gente dos dois lados aqui, mas até agora ninguém falou nada para ter que sair daqui. Eles sabem que se sair, não terei para onde ir. E assim vou ficando. Queria mesmo era me aposentar”. Essa, uma palavra que ele repete várias vezes ao longo da conversa, “aposentar”. Dita assim, com esse olhar sem saber o que fazer para conseguir seu intento. O tempo vai passando, ele ali numa rotina danada de pesada, frio, vento, chuva, calor, sol, mas mesmo assim encontra algo de bom nisso tudo. “Quando fico aqui sentado nos finais do dia, esse ventinho que bate é que é bom. Pouca coisa mais”, conta.

O lugar é limpo, não se vê lixo, nem sujeira, muito menos mau cheiro. Fico intrigado e lhe pergunto: “Como faz para tomar banho e fazer suas necessidades?”. Ele ri e me diz: “Banho eu tomo lá no posto ou trago água numa lata e tomo aqui. Mas tomo de calção, para que ninguém diga nada de mim. Xixi eu faço por aí e quando aqui, faço numa lata e jogo bem longe. Nunca no chão ou aqui por perto. Minhas necessidades eu faço bem longe. Nunca aqui, pois do contrário não agüentaria o cheiro forte. Lavo as peças de roupa lá no posto, quando estão para fechar ou aqui mesmo e uso os galhos da arvore como varal. Tudo aqui é muito arrumadinho como o senhor pode ver.” E vê-se isto mesmo. Tudo está no seu lugar. A bicicleta e o carrinho de mão amarrados com uma corrente e enlaçados no tronco da árvore. Por fim, vejo seu rosto escanhoado recentemente e lhe pergunto como faz a barba. “Foi hoje cedo. O cara ali do bar me deu um barbeador e me deixou eu fazer a barba lá. Ficou bom?” Digo que sim e nos despedimos com um forte aperto de mão.

OBS. FINAL ALÉM DO TEXTO: Com a publicação e divulgação desse texto, estou imprimindo e levando o mesmo diretamente para a Gerência Executiva do INSS (Instituto Nacional de Seguro Social) de Bauru SP, Josué Lopes Moreira Filho e buscando com os dados pessoais do Sr Wilson, ver o que pode ser feito referente à sua aposentadoria. Aguardando.

3 comentários:

Anônimo disse...

Henrique

Li este texto após seu post de hoje, fica como indicação, tem temas que se encontram com o "Lado B de Bauru":

http://www.suplementopernambuco.com.br/index.php/component/content/article/49-resenha2/1286-a-cidade-como-ideia-e-como-experiencia.html

Gabriel Duarte

Anônimo disse...

Henrique

Faz bem uns quatro meses que não retorno para Bauru e da última vez que aí estive esse senhor já morava aí. Ele deve ter perdido um pouco a noção do tempo. Deve fazer bem mais tempo do que ele pensa. Quando passei aí não o vi, mas vi a barraca e fiquei pensando depois como podia ser aquilo, alguém morando ali spozinho no meio daquelas avenidas. Pronto, voce já me explicou tudo. Acho que existe sim um jeito de vocês aposentarem ele. Vá lá no INSS e se informe direito. Depois conte aqui para nós.

Paulo Lima

Anônimo disse...

Parabéns mestre Henrique Aquino, pela excelente reportagem sobre os esquecidos
da sociedade capitalista.
Abraço.

Gaspar Moreira