sábado, 30 de abril de 2022

MEMÓRIA ORAL (280)


CRONICA DA NOITE COM AS CAMPEÃS DO CARNAVAL PAULISTANO
Sabe aquelas coisas que você ainda não fez na vida, tem vontade e diante da oportunidade de concretizar mais uma realização, cai de boca e vai até o fim, vendo onde vai dar? Até ontem, beirada de completar meus 62 anos, não conhecia o Sambódromo paulistano do Anhembi, aquele imenso bloco de concreto armado junto do rio Tietê e próximo do terminal rodoviário e do metrô do mesmo nome. Durante muito tempo acompanhei as excursões boladas pelo Valdemir Cavalheiro, o Mi, que conheci lá na hoje não mais existente escola de samba Azulão do Morro, do Jaraguá. Via as fotos do pessoal lá presenciando a festa dos desfile das campeãs, sempre na semana posterior ao desfile oficial e dizia para mim mesmo, “um dia ainda irei junto destes”. O dia chegou e na tarde de sexta, 29/5, 15 hs, micro-ônibus lotado, saindo da praça Rui Barbosa, em barco na aventura, ou seja, em mais um delas. Enfim, como repito sempre e já acometido de dores e impedimentos, nada como ainda realizar o que consigo, pois quando nada me for mais possível, daí só arrependimentos.

O Mi se esmera para que tudo dê certo e o pessoal ligado no Carnaval acaba se comunicando e como aqui por Bauru a festa esteve em baixa neste ano, eis a única oportunidade e extravasar neste retorno da maior festa popular brasileira. Reservou lugar para mim na turma da frente, junto de duas conhecidas carnavalescas da cidade, Denise Valim e Cristiane Ludgerio. A intenção era dormir na ida, para aguentar o tranco de dez horas presenciando oito escolas de samba desfilando, uma atrás da outra, com os tradicionais intervalos, que se dão entre o término do desfile de uma e o início de outra, mas não deu, pois sentar ao lado delas foi conversa carnavalesca o tempo todo. Bancos atrás Tobias Ferreira, o Tubinha e sua companheira de enroscos carnavalescos e no mundo da dança, junto de amigos. Nos últimos bancos, os quatro do fundão, a turma de Tibiriçá, comandados por Ana Paula Cosmo. Estava rodeado de gente com os pés fincados no mundo do samba, ou seja, estava em casa.

Mi pensa em tudo quando bota o pé na estrada e preparou lanchinhos, canapés, bolos e afins, mais água, cerveja e refrigerante, servindo para todos, após circular pelo corredor e ir falando do que lá encontraríamos. Chegamos bem, após parada no Rodoserv da Castelo para um pit stop. O lugar é amplo e os ônibus circulam, mas podem parar por poucos instantes nos lugares de despejo dos foliões e ficamos na boca de entrada de um amplo estacionamento coberto para veículos. O atravessamos e vamos dar numa bilheteria, onde somente uma atendente dava conta de todos. Era pouco mais de 20h30 e ao longe já se ouvia um batuque de couro sendo malhado, que daí por diante só teria fim quando o dia seguinte começava a clarear. Virei privilegiado, pois pago meia entrada. Mi e Valim nos reservaram lugares na arquibancada Setor B, bem defronte o recuo das baterias, entre dois eventos vips, bem na nossa frente. O local é mesmo bom, mais ou menos no meio do desfile, ampla visão e como não esteve lotado, ninguém se perdeu, mesmo com as idas e vindas de todos, num sobe e desce até a praça de alimentação no andar inferior. Desbravei tudo e ao sair já me considerava expert do Setor B.

Das recomendações do Mi para seus pupilos carnavalescos, estava trazer uma blusa de frio e capa de chuva, pois “difícil uma festa sem garoa ou chuva”. Não deu outra e na madrugada, aquele friozinho, suportável, mas acontecendo e muita garoa e chuva. Foi um festival de gente vendendo capas por todos os lados e preços diversificados. Levei a minha e nela me enfiei desde os primeiros pingos, sendo essa minha indumentária até o fim. Ludgerio sofria, pois mal terminava uma garoa, ela não se aguentando dentro do plástico, tirava e logo mais estava a coloca-la novamente. Tudo era curtido com bastante espírito carnavalesco e também coletivo, enfim, estávamos ali para nos divertir, curtir a noite e o espetáculo que se apresentava diante de nossos olhos. Tubinho e os seus se dispersam e vão para outro setor, enfim ele desfilou justamente na primeira escola a pisar na passarela. Foram oito ao total, na ordem: Nenê de Vila Matilde (21h30), Independente Tricolor (22h20) e Estrela do Terceiro Milênio (23h10), estas três subindo para a Divisão Especial, o grupo da elite do carnaval paulistano, depois na sequência de classificação, Mocidade Alegre (00h00), Unidos de Vila Maria (01h00), Tom Maior (02h00), Império de Casa Verde (03h00) e por fim Macha Verde (4h00), a campeã do carnaval com o enredo Planeta Água. Assisti a todos, mesmo os últimos, quando estive a ponto de balançar e quase dormir em pé. Resisti, insisti e persisti, conseguindo completar a maratona com tudo salvo e ao final só cansaço e sono, mas missão cumprida.

Que dizer do grupo do qual estava inserido? Não me recordo o nome de todos, ou melhor, de quase nenhum deles, mas suas fisionomias nunca mais me sairão da mente. Todos muito generosos e um disposto a colaborar com o outro. Congraçamento dos mais edificantes e todos, mais ou menos próximos, cada qual sabendo onde os demais se encontravam e assim, a noite foi fluindo, um tomando conta do outro. Todos dispersos, mas atentos, enfim, como o Mi alertou na entrada: “Se existe algum perigo ela está fora do Sambódromo, pois dentro a segurança é total”. E foi mesmo, impecável. Em nenhum momento dá para sentir algum receio de algo. A festa flui e aos presentes é possível ir deixando a maré de alegria ir contagiando o corpo e fluindo das maneiras mais diversas possíveis. Só mesmo a chuva nos desaglutinou por instantes, mas mesmo ela não impediu que todos estivessem debaixo dela na passagem das escolas. Não esteve forte, ou seja, suportável e como ninguém queria perder nada dos desfiles, a chuva era algo a ser enfrentado com a galhardia de quem veio para aproveitar a festa, sendo que nada podia estragar o brilho da noite. E assim se sucedeu o tempo todo.

Uma a uma as escolas desfilaram diante do público e algo foi perceptível para mim, comentando com a carnavalesca e entendida dessas festas e dos adereços todos nos corpos dos foliões: “No carnaval paulistano se vê cada vez menos corpos femininos desnudos”. A sua resposta: “Os enredos atuais comportam pouco do corpo nu, perceba como tem muito de festas populares e sincretismo religioso nos enredos”. Captei a mensagem e constatei, era isso mesmo. Não só pelos corpos nus, mas o carnaval anda mais comportado que dantes, o que não mensurei naquele instante se isso veio para melhorar ou é sinal de um comportamento, num todo, menos rueiro e mais contido dentro dos padrões conservadores do momento vivido pelo país e mundo. As escolas estiveram brilhantes, pelo menos para mim, cheias de brilho e com carros alegóricos por mim nunca vistos, imensos em comprimento e altura. A cada um novo diante dos olhos, algo novo, como um transatlântico desfilando diante de nós. Verdadeiras obras de arte ambulantes, o que inevitavelmente me faz pensar no destino dado para aquelas maravilhas após o cortejo, enfim, para onde vai aquelas obras de arte? O triste fim da reciclagem carnavalesca, quando alguns poderiam ao menos ser salvos e mantidos num mausoléu ou museu da festa. A disputa é sempre acirrada e chego a pensar que todos os idealizadores dos carros alegóricos bebem da mesma fonte, pois quer queiram ou não, seguem um mesmo padrão na realização dos arcabouços que movem os carros. O diferencial é o que vai na cabeça de cada carnavalesco.

Não me prendi aos enredos, enfim, o que faltou foi um folheto explicativo de cada tema do desfile, junto com a letra do samba. Seria pedagógico para todos, de grande utilidade, mas mesmo assim, todos tentavam aprender as letras e ao final de cada desfile, se via todos com o refrão já bem afinado na ponta da língua. Eu que, quando resolvi viajar, o fiz pensando em ver o desfile da Vai-Vai, essa a grande decepção da festa, pois ela foi rebaixada e ficou de fora da festa. De todos os carros, alguns me impressionaram mais do que outro, um com monstros da Independente, outro com o livro do Pequeno Príncipe viajando pelas festas populares nordestinas, o das águas com tigres bem azuis da Mancha, o que me num certo momento me fez pensar: Mas ela não é verde? Sim, mas a água é azul, né Henrique! De tudo ali na passarela, a criança ainda chama a atenção e um garoto passista, sambando como gente grande desperta o aplauso geral, num desfile em que, não houve ninguém assim chamando muito a atenção para si. Foi uma festa bem coletiva, com poucos destaques individuais, pelo menos para mim. Não discuti o assunto com as carnavalescas ao meu lado, pois talvez divirjam de minha modesta opinião e isso é assunto para mais de metro. No frigir dos ovos, festa bonita, bem comportada e dentro do padrão atual, contida dentro de envelopamento onde poucos fogem do trivial, ou melhor, mijam fora do penico. Tudo previsível, mas lindo.

As descidas para a praça de alimentação foi o divertimento da festa. Os preços nem sempre convidativos, alto para festas do tipo, parece também ser padrão. Cerveja de lata a R$ 8, pastel a R$ 12 e drink, em média, R$ 35. Cada um foi até onde deu, mas no final, pelo que vi, parece sobrou pouco, ou seja, consumiram quase tudo. A vestimenta do público carnavalesco é também um evento, vai do bem comportado ao que está ali para desfilar nas arquibancada com espécie de “bloco do eu sozinho”. Num destes intervalos, chovendo lá fora, grupo de sambistas, de algum bairro da cidade se reuniu nas escadas e passou a batucar sambas de antanho, entre palmas, numa cantoria contagiante, dessas que, gente como eu, oriunda do interior, parece descobrir ali na hora a existência de um forte e valoroso samba paulistano, todo construído nas comunidades todas. Vivenciei isso e gravei um breve vídeo dessa harmoniosa cantoria: https://www.facebook.com/henrique.perazzideaquino/videos/5365167650209070. Nos bastidores da festa, única noite da semana onde choveu, aproveitei ao máximo da experiência, trazendo comigo para daqui por diante, pouco mais das entranhas dessa ainda nossa maior festa popular. Vibrei com tudo e mesmo ao final, com alguns integrantes da Macha, no meio da plateia, espalharam aquelas fumaças verdes de cheiro horrível, em algo bem dentro do espírito de coma se dá a relação das torcidas organizadas, quando impõe o que acham certo, sem pensar nos demais. E agora, como teremos mais uma delas na constelação das grandes do carnaval paulistano, dessa mistura de futebol, torcida organizada e escola de samba, tomara continue vingando o espírito carnavalesco.

Ao final da festa, dia clareando, mais de 6h30 da manhã, o desfile dos que iam embora me chama a atenção. Gente de descompondo em praça pública, tentando manter um mínimo de compostura, pelo menos até chegar em casa e desmaiar. Cansaço nas fisionomias e nós, o grupo de Bauru, tentando encontrar nosso ônibus perdido no meio desse burburinho. Desencontros naturais de algo grandioso, mas todos sendo reagrupados e assim partimos de volta, num momento quando poderíamos até ter trocado confidências dos “achometros” da festa, o que cada um avaliou do que viu, mas isso não foi possível, pois como sempre, retirno silencioso, todos embalados pelo sono, até o Rodoserv, novo pi-stop, quando uma das integrantes do grupo ouve nosso motorista comentando com outro durante o café: “Odeio isso, odeio Carnaval”. A fala não estragou o final da festa de ninguém, talvez vindo de um profissional neopentecostal, sendo “obrigado” a ali estar, contrariado, resignado e fora de seu habitat. Quase meio dia, ônibus quebra passando por Agudos, último momento de conversa coletiva numa sombra fora do interior abafado por horas de viagem. Chegamos todos sãos e salvos e do Mi, o anfitrião, algo bem de reconhecimento: fez o melhor que pode, se deu, tentando proporcionar a todos uma viagem aprazível. Conseguiu seu intento, tanto que já penso nas próximas. Gente ligada ao Carnaval, por mais que possam existir desacordos pela agremiação, estão todos no mesmo barco, no caso, no mesmo ônibus e em busca de presenciar experiências outras. Voltamos todos satisfeitos e com algo mais para contar aos que ficaram. Saio dessas sempre querendo mais e achando que desfrutei pouco das conversas com o Mi, a Ludgerio e a Valim, gente que entende da festa como ninguém, enfim, estive rodeado, tive o prazer de ter o carnaval bauruense ao meu lado e dele desfrutei pouco. O Carnaval me envolve e dele não me afasto.

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